Está por fazer uma história social do aborto no Portugal contemporâneo, antes e depois do 25 de Abril de 1974. Essa história só poderá ser feita com recurso à história oral.
Sábado passado, à entrada do mercado de Benfica, numa acção de campanha pelo Sim no Referendo, ouvi algumas ‘confidências’ que me tocaram profundamente. Por momentos, antevi o desespero de mulheres trabalhadoras, sem recursos económicos nem acesso a meios contraceptivos, cujos maridos não aceitavam um «não», que, para conseguirem sustentar os filhos que já tinham, praticaram abortos sucessivos. À falta de dinheiro para irem a uma ‘curiosa’, induziam o aborto, recorrendo a métodos caseiros, com enorme risco para a própria vida. Nesses casos, o aborto foi o espaço (possível, íntimo e sofrido) de liberdade para mulheres, em tudo o resto, subjugadas ao poder discricionário dos homens. «Nós só dizemos se quisermos! Nem o marido, nem o padre, nem o juiz, ninguém consegue saber.» «Filha, o que se passa dentro de nós, é connosco»: duas falas de mulheres com mais de sessenta anos, quando lhes estendi o folheto do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo Sim e expliquei que era informação a favor da despenalização do aborto, por opção da mulher, até às 10 semanas, em estabelecimento de saúde autorizado.
Por defeito de vocação, parece-me urgente que os cientistas sociais portugueses se dediquem ao estudo desta temática e de outras correlativas (por exemplo, as relações de género, a sexualidade, a condição da mulher), numa perspectiva histórica. Faz falta um grande projecto de investigação multidisciplinar sobre a história do aborto em Portugal no século XX; faz falta uma recolha séria e vasta de testemunhos orais de mulheres portuguesas de diferentes origens sociais, de diferentes regiões do país, de diferentes posicionamentos políticos e credos religiosos que recorreram ao aborto nalgum momento das suas vidas.
Entre as reservas que muitos investigadores colocam à história oral destaca-se a carga subjectiva dos testemunhos. Ora esse óbice poderia ser uma mais-valia num estudo sobre o aborto, onde estão em causa vivências e emoções. As fontes documentais escritas, produzidas por entidades públicas como os Tribunais, a Polícia, os Hospitais, podem ajudar a compreender uma parte do objecto de estudo. Porém, apenas a história oral poderá introduzir-nos na história do aborto do lado do vivido na primeira pessoa.
Entre as reservas que muitos investigadores colocam à história oral destaca-se a carga subjectiva dos testemunhos. Ora esse óbice poderia ser uma mais-valia num estudo sobre o aborto, onde estão em causa vivências e emoções. As fontes documentais escritas, produzidas por entidades públicas como os Tribunais, a Polícia, os Hospitais, podem ajudar a compreender uma parte do objecto de estudo. Porém, apenas a história oral poderá introduzir-nos na história do aborto do lado do vivido na primeira pessoa.
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Imagem: Paula Rego, s/ título [série sobre o Aborto], 1997-1999.
1 comments:
É um excelente ideia, e se já tivesse sido feito o debate sobre o referendo seria bem diferente.
Aliás talvez nem seja inocente o facto de nunca terem sido feitos esse tipo de estudos. Segue a mesma lógica do satus quo actual - e defendido pelo NÃO - em que o aborto está liberalizado de facto, mas não pode é ser legalizado, não pode ser assumido publicamente, não pode ter legitimidade moral nem política. É para se fazer às escondidas, em sofrimento e em silêncio, e para ser expiada a culpa.
P.S. - Paula Rego é uma excelente escolha para a ilustração
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