domingo, 28 de janeiro de 2007

A dimensão oculta

A propósito da discussão à volta de um post anterior, parece-me que convém salientar alguns pontos essenciais sobre as divisões da esquerda. Na verdade, perante a mobilização em torno de um programa comum, a esquerda parece que acaba sempre por se desmembrar no apoio a uma série de candidaturas e de figuras políticas. Esta situação não é específica de França. Por exemplo, nas últimas eleições presidenciais realizadas em Portugal verificou-se algo de semelhante. A direita conseguiu unificar-se em torno de um candidato, enquanto a esquerda se dividiu em quatro candidaturas, duas das quais oriundas do mesmo partido. Esta irracionalidade teve como consequência a vitória da direita logo na 1ª volta. Ainda não se reflectiu o suficiente sobre as causas destas divisões, mas estou plenamente convencido de que se as eleições se repetissem hoje elas voltariam a suceder.
O que leva a esquerda a não se entender e a não conseguir mobilizar-se em nome de programas e de candidatos únicos? Não tenho uma resposta clara, mas acho que esta reincidência passa por uma incapacidade em definir um mínimo denominador comum capaz de congregar diferentes posições. Este facto não se deve a um excesso de ideologia que esmiúça a discussão e o debate, mas a um deficit de pragmatismo incapaz de concretizar numa efectiva estratégia de mobilização e de congregação de interesses. Como é que se justifica que um partido como o CDS não tenha dificuldade em apoiar um candidato presidencial que se intitula social-democrata, enquanto o PS nem sequer consegue avançar com um candidato único?
Na verdade, perante a perspectiva de obtenção de resultados eleitorais a direita consegue pôr de lado as diferenças e realçar as aproximações. Fá-lo, não por ser mais pobre de ideologia, mas porque se esforça por anular as divisões em nome de um programa comum. Curiosamente, a esquerda que comunga de uma visão mais colectivizante da sociedade, deixa-se esfumar por idiossincrasias individuais e egoístas sempre que tenta empreender uma aliança entre partidos e programas. E falha quase sempre! Entra-se numa toada esquizofrénica em que as pequenas rivalidades parecem valer mais do que as grandes vitórias. É um fenómeno estranho, que provavelmente só pode ser verdadeiramente descodificado à luz da 5ª dimensão.

4 comments:

Zèd disse...

Há ainda mais um factor que, penso, talvez permita à direita com mais facilidade encontrar consensos do que a esquerda, a autoridade. Em geral à direita a autoridade tem um valor em si mesmo, o líder (ou o maior partido) têm uma autoridade intrínseca que os legitíma, e que permite as tais convergências em torno desse líder.
A esquerda é mais avessa à autoridade, e a legitimidade deve vir da argumentação, dos princípios, da ideologia (e aqui sim, há uma diferença entre a esquerda e a direita na sua relação com a ideologia, mas isso não é dizer que a direita não tem ideologia). À partida isto parece-me uma vantagem para a esquerda - assumo o meu proto-anarquismo - mas isso não deve, não pode impedir a esquerda de procurar consensos, denominadores comuns. A esquerda deveria, precisamente porque não tem esse apego à autoridade, fazer uso da diversidade ideológica, na altura de debater, mas de pragmatismo na altura de decidir. Falta à esquerda encontrar um substituto do papel desempenhado pela autoridade à direita.

Hugo Mendes disse...

"1) A incapacidade em se comprometer com um eventual programa a ser executado num órgão de poder (seja ele o governo ou a presidência). 2) A dificuldade acrescida em fazê-lo por intermédio de instâncias verdadeiramente democráticas."

Será isto próprio da esquerda? Não vejo em que é que a direita seja diferente. Reagan e Thatcher, apesar do radicalismo da retórica, não fizeram sequer metade daquilo a que se tinham proposto.
Quanto à falta de democraticidade interna, parece-me que há diferenças suficientemente latas entre os partidos para nao reduzir tudo ao mesmo estereótipo (e isto sem discordar em nada do que dizes sobre o BE e PCP); de qualquer forma, a democraticidade será sempre relativa e nunca "verdadeira"; os partidos - ou outras organização com alguma dimensão - vivem de hierarquias e acabam facilmente por degenerar em oligarquias. O que o Robert Michels (http://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Michels) disse a propósito disto há quase um século não foi desmentido por nenhuma organização política de alguma dimensão.

A questão da autoridade colocada pelo Zé parece-me nao ser negligenciável; o anti-autoritarismo é uma marca forte de uma série da tradições de pensamento à esquerda (derivadas em parte, mas não só, do anarquismo), e se isso não gera necessariamente partidos mais democráticos - porque nao gera -, pode gerar mais fragmentação inter-partidária (que é o que estamos aqui a discutir).

Hugo Mendes disse...

O que esta questão pede é menos uma ida à cartomante (a tal quinta dimensão :)) e mais um olhar sobre a história do século XX no que toca à divisao da esquerda: o problema é estarmos a tomar o caso frances (e o português num dado contexto histórico) como paradigma da fragmentação política à esquerda. Mas a verdade é que os problemas que encontramos em França, Portugal e em parte na Italia nao se repetem historicamente na Suécia, na Inglaterra ou na Alemanha. Porquê? Por histórias políticas e institucionais diferentes, e pela forma que certas correntes ideologicas conseguiram cristalizar-se (ou nao) em partidos com forte apoio eleitoral. A variável mais forte parece-me a presença ou nao de um forte Partido Comunista num dado país. Onde o PC é forte (e cala, ou procura calar enquanto pode, toda a dissidência à esquerda) e os partidos trabalhistas/sociais-democratas são fracos, o esquerdismo tenderá a explodir mais cedo ou mais tarde e a fragmentar a esquerda em inúmeras famílias desavindas. A fragmentação que se conhece do caso francês é a consequência directa de o PC frances ter sido durante 3 décadas depois de 1945 o maior partido comunista na Europa ocidental e do partido socialista/trabalhista/social-democrata correspondente ter vivido décadas a fio à sua sombra. Na Suécia, Inglaterra ou Alemanha, nao temos nem PC forte, nem esquerdismos fragmentários. Temos partidos trabalhistas representantes da classe operária e da classe média alinhada à esquerda e com capacidade para mobilizar largas fatias do eleitorado. E enquanto a esquerda francesa esteve fora do poder entre 1936 e 1981 (o PC participou num governo logo a seguir a 1945 - curiosamente ao lado de De Gaulle - mas aquilo caiu pouco depois), na Suécia teve no poder meio século quase sem interrupções. Portanto convém nao generalizar de forma intemporal nem sobre a tendência inevitável da esquerda se fragmentar, nem de ser incapaz de se alinhar por detrás de um poder político.

Uma palavra apenas sobre a questao da autoridade. No caso frances, o problema da autoridade é verdadeiramente importante, dada a forte tradição proudhoniana de recusa das hierarquias e dos partidos políticos. Em mais nenhum país europeu a tradição anarquista deixou um legado tão poderoso, e isto nao pode deixar de continuar a alimentar, à esquerda, uma cultura política geradora de fragmetnação e de incapacidade de construir alianças à esquerda.
Mas, e aí concordo, convém nao exagerar o alcance desta explicação independentemente dos contextos históricos.

Hugo Mendes disse...

"Talvez devêssemos apontar para um individualismo metodológico de esquerda."

Já há: Jon Elster, John Roemer e a restante companhia do marxismo analítico americano.

"O que é contraditório com o posicionamento ideológico que aponta (e defende) conceitos como o de 'bem comum'."

Pois, o "gap" entre a ideologia e as práticas é sempre maior do que pensávamos. Mas também é verdade que à esquerda muitas corentes, em particular as devedoras ao anarquismo, não têm o bem comum como ideal regulador - e que por encaram qalquer mobilização colectiva como opressora.