sábado, 13 de janeiro de 2007

Porque o sangue importa

Gosto imenso de votar e de dar sangue. Para mim, são dois direitos/ deveres cívicos e éticos a que me entrego com verdadeiro entusiasmo desde os meus 18 anos. Tenho semelhante orgulho no meu cartão de eleitor e no meu cartão de dador.
Às eleições dedicarei um próximo post. Hoje «quero escrever o borrão vermelho de sangue / com gotas e coágulos pingando» (Clarice Lispector), de dentro para fora: o Instituto Português do Sangue continua a discriminar os dadores em função da opção sexual. Depois de inúmeras queixas e denúncias, a discriminação deixou de constar do seu site e do seu regulamento. Porém, no exame médico ao dador, a avaliação dos seus hábitos de vida pressupõe um juízo moral sobre a sua sexualidade. Quando um potencial dador afirma que faz amor com alguém do mesmo sexo é encarado como promíscuo e impedido de fazer a sua dádiva. Passou-se recentemente com uma pessoa minha amiga, a quem eu tinha pedido para dar sangue em nome do meu Pai. Quando ela me contou, fiquei entre o chocada e o incrédula, mas as notícias dos últimos dias vieram confirmar as suspeitas.
Na Wikipédia, encontrei referência à ética amoral de alguns heterónimos de Fernando Pessoa. Ricardo Reis, na ode «Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia», apresenta-nos dois jogadores de xadrez que prosseguem a partida mesmo sabendo que a destruição e a morte alastram na sua cidade, invadida pelo inimigo. E sentencia este heterónimo epicurista: «Quando o rei de marfim está em perigo / Que importa a carne e o osso / Das irmãs e das mães e das crianças? / Quando a torre não cobre / A retirada da rainha branca, / O sangue pouco importa».
Perante a ética moralista do Instituto Português do Sangue – quando os «bons costumes» estão em perigo, o sangue pouco importa (o mesmo é dizer, as vidas humanas pouco importam!) – temos todos que tomar posição. Quero continuar a dar sangue com a mesma alegria de sempre, mas exijo fazê-lo num serviço público que respeite todas as pessoas. Afinal, o sangue não tem fronteiras, idioma, ideologia, preferências sexuais.
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9 comments:

Fernando Martins disse...

"fazer amor" ?. Dar uma queca, fazer sexo, pinar, foder, etc., etc. Agora "fazer amor"? Sou casado, tive uma ou outra namorada e nunca "fiz amor". Que expressão mais hipócrita e insonsa! Se fizesse amor acho que já tinha desistido há muito do sexo!

Cláudia Castelo disse...

O cerne do meu post era a discriminação sexual por parte de uma instituição pública, o Instituto Português do Sangue.
Os vossos comentários passam ao lado do essencial.

vallera disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cláudia Castelo disse...

A qualidade do sangue nada tem a ver com a orientação sexual de cada indivíduo. Não há qualquer relação causal entre a orientação sexual e os comportamentos de risco. Tanto pode ter comportamentos de risco, um heterossexual, um homossexual ou um bissexual.
O IPS tem agido com preconceito (sem qualquer base científica) e contra o espírito e a letra da Constituição da República Portuguesa ao impedir que determinadas pessoas exerçam o seu direito de dar sangue, apenas porque se assumem como homossexuais.

Sofia Rodrigues disse...

Tenho seguido esta discussão com algum interresse, lendo os comentários de uns e de outros, até que hoje, com alguma incredulidade, vejo em C. (?) um espírito subitamente científico, leia-se estatístico. Gostaria, apenas, de saber que estatísticas são estas a que C. terá, com certeza, um acesso privilegiado e que o informaram sobre os comportamentos sexuais de heterosexuais, bisexuais (faltaram--lhe os transexuais)!?!
Acho espantoso que a questão que a Cláudia coloca possa causar este tipo de contestação. É da mais elementar justiça e até senso comum que não pode haver este tipo de discriminação em qualquer instituto público, discriminação essa que nem sequer tem esse fundamento estatístico como alguns tanto queriam...

Cláudia Castelo disse...

C.:
Por ter sempre considerado que os "receptores" (pessoas, entenda-se!) são os elementos mais importantes nesta história de dar sangue, é que afirmei que o IPS não se pode dar ao luxo de desbaratar sangue saudável (expressão menos prosaica?) só por ser de alguém que se assume como homossexual. Quando damos sangue, não é seguramente para ficarmos sem ele mas para que seja útil a outras pessoas. Qualquer dador só o é porque há quem esteja a precisar de sangue para viver.
Os toxicodependentes nunca foram referidos no meu post e posteriores comentários. Não deturpe as minhas ideias.
Concordo com o comentário de Sofia Rodrigues sobre o seu inesperado espírito científico (?).
Agradeço que me indique qual a entidade pública e credível que produziu as estatísticas a que se refere e onde posso consultá-las. Na Constituição da República Portuguesa, além do princípio da igualdade, está consignado o direito de informar e de ser informado. Pois bem, eu exijo ter acesso à informação estatística que prova (como diz) que os dadores homossexuais constituem um maior risco para os "receptores". Sem isso, não há mais conversa.

vallera disse...

Em todas as estatísticas RECENTES que tenho lido, a transmissão do HIV é actualmente maior entre a população heterossexual. Se um heterossexual pode doar sangue sempre, qualquer que seja o seu grau de promiscuidade, porque é que um homossexual não pode doar sangue, mesmo que esteja numa relação monogâmica?

mesmo que assim não fosse..
Embora me pareça que se possa alterar certos princípios para fins maiores (os princípios não são estanques nem imutáveis), não me parece que este seja, de maneira nenhuma, esse caso, precisamente porque parte de uma premissa falaciosa.

Anónimo disse...

Achei esta discussão muito interessante!
Vallera tem razão.
O que acontece é que o Instituto Português do Sangue parece ainda recorrer à classificação de "grupos de risco" para excluir dadores que poderão ajudar a salvar vidas. Ora, acontece que esta classificação é totalmente discriminatória e reconhece-se, actualmente, que faz muito mais sentido falar em "comportamentos de risco", e abandonou-se, felizmente, a anterior classificação.
A quem disse que ficam mais caras as análises que se têm de fazer ao sangue de um homossexual, permita que lhe diga que acho isso um disparate. Independentemente do dador, da sua orientação sexual, ou do que quer quer seja, o sangue doado no IPS é todo sujeito a análises completas, o IPS precisa certificar-se que aquele sangue está em condições de chegar a um receptor. Espero não precisar, mas se algum dia precisar não me interessa se o sangue que me salvar a vida é de um heterossexual, de um homossexual, de um português, de um chinês, de um americano. Importa-me sim a confiança que deposito nos serviços que se certificam de que o sangue pode ser recebido por alguém. Do mesmo modo que espero que o meu sangue seja submetido a análises quando o vou doar.
É tão óbvio que me irrita profundamente que, em pleno século XXI, em plena União Europeia, continuemos a assistir a espectáculos discriminatórios tão vergonhosos e sem fundamento!

Zèd disse...

Caro/a c.
Tal como a Sofia Rodrigues e a Cláudia Castelo, estou curioso sobre essas evidências empíricas que demonstram uma relação entre a homossexualidade e as doenças infecciosas (e já agora, todas as doenças infecciosas ou apenas algumas? Ou alguma em especial?). Tem conhecimento de algum estudo que queira partilhar conosco? Gostaria muito discutir essas bases empíricas, mas antes preciso de conhecê-las.