A propósito deste estudo referido pelo DN de hoje, que identifica uma forte correlação entre a qualificação dos pais e o ingresso dos estudantes do ensino superior nos cursos mais prestigiosos do ponto de vista social e económico, gostaria de relembrar uma das conclusões de um trabalho em que participei sobre as tendências reprodutoras (conforme o significado atribuído por Bourdieu e Passeron) deste sistema de ensino. O curioso desta investigação é de que na altura em que o inquérito nacional foi aplicado (1997), não tinhamos a mínima expectativa de que uma teoria social sobre o sistema de ensino francês, eleborada nos anos 60, ainda fizesse um tremendo sentido na sociedade portuguesa, mais de 30 anos depois.
«[Em Portugal] a lógica reprodutora continua a verificar-se, na medida em que o campo escolar, enquanto regulador da competição social, actua como um mecanismo de selecção social. Neste campo, as diferentes classes e grupos sociais agem em função dos seus recursos e competências, dos seus horizontes sociais e expectativas de status. Ora, o que se nota é que existem grupos sociais que tiram maior proveito deste jogo, na medida em que possuem recursos e capacidades adquiridas que lhes facultam uma inscrição no campo mais vantajosa, com beneficios em termos de capitais escolares e simbólicos».
11 comments:
Este tipo de estudos são interessantes, quanto mais não seja para confirmarem o que era esperado. Lendo a notícia do DN, dá a ideia que o jornalista ficou muito espantado com o que os dados recolhidos mostram, mas tudo aquilo bate certo no que é expectável nestas coisas.
O desafio é, perante este realidade, o que fazer ao nível das políticas públicas. É importante lembrar, por exemplo, que as desigualdades ao nível das escolhas e percursos o ensino superior não nos devem fazer esquecer que os alunos que aí chegam já foram alvo de selecção bem razoável, como os números do abandono escolar em diferentes momentos do ensino secundário bem mostram. As desigualdades são múltiplas, e revelam-se a diferentes momentos - e quanto mais cedo intervirmos na sua correcção, melhor. Nesse sentido, a proposta saída do Debate Nacional de Educação levado a cabo pelo CNE e que aconselha a alargar o esforço de cobertura da escolaridade para a faixa 0-3 anos é muito interessante. Devia ser uma das metas para as próximas duas décadas, este investimento público de qualidade num momento central do desenvolvimento da criança.
"Contudo, uma das questões centrais destes estudos é verificar que a massificação do acesso ao ensino não representou uma generalizada democratização das oportunidades".
É verdade, e em França hoje usa-se muito uma expressão cunhada pelo Pierre Merle para dar conta do que chama "democratização segregacionista". Aliás, vários estudos têm apontado para que hoje existe uma maior rigidez no acesso dos alunos de origem social mais dispriveligiada às grandes écoles do que acontecia há 30, 40 anos. Num certo sentido, o que Bourdieu e Passeron escreveram em 1970 (separando o argumento analítico da reprodução da dimensão metafísica e a-temporal que os autores lhe quiseram emprestar, num tique de alguma arrogância) continua a verificar-se hoje, e eles já falavam na segunda parte da obra de que a massificação não ia acabar com as desigualdades, mas iria basicamente implicar uma "translacção" das mesmas, agora importadas para dentro do sistema.
Eu acho que aqui devemos ser realistas e, sempre tentando que as coisas sejam melhores, ter em conta que as desigualdades a este nível existirão sempre. É preciso é ter olho clínico para a nível das políticas públicas sabermos quais são os nós da rede onde podemos intervir e melhorar as chances dos mais dispriveligiados. E, desse ponto de vista, aquilo que se passa antes de chegar ao ensino superior parece-me mais importante do que o que se passa depois a esse nível de ensino (o que não significa que não possa haver melhorias: eu se tivesse uma varinha mágica abolia as Grandes Écoles franceses, que era a melhor garantia de democratizar o acesso, escrutinizar o que lá se faz, e reduzir o efeito de "renda cultural" que a sua simples frequência/posse de título confere, a quem por lá passou, até ao fim dos dias. Isto é nociva herança do Antigo Regime que continua a marcar enormemente as desigualdades culturais e simbólicas (já para não falar das suas consequências económicas) na sociedade francesa.
O sistema francês é um caso extremo de estratificação (talvez por isso um bom "case study"). Para além das "Grandes Ecoles" tem outras particularidades, uma que me surpreendeu são as universidades dos subúrbios (das banlieues). Têm universidades diferentes para universos sociais diferentes, e naturalmente as prespectivas de quem sai de uma universidade de subúrbio não são as mesmas de quem sai duma universidade mais central, ainda que com o mesmo nível de estudos. Por exemplo nas universidades dos subúrbios não ha' escolas doutorais (nem investigação) e os alunos que queiram prosseguir os estudos para um doutoramente são obviamente menos considerados nas universidades mais centrais, sendo preteridos pelos que vêm de dentro dessas universidas. Quando saiem para o mercado de trabalho os empregos de uns e de outros também não são os mesmos, as universidades de banilieue dão em geral uma formação mais técnica (acabam por ser de certo modo um equivalente dos Poltécnicos, mas com um nivel de licenciatura e até mestrado, pelo critério de Bolonha) Também deste modo é um sistema que reproduz as desigualdades.
P.S. - Acho as Grandes Ecoles mais uma herança Napoleónica do que o Antigo Regime, o que vai dar ao mesmo, ou pior...
Ja se vai ouvindo falar em acabar com as Grandes Ecoles, e nem deve ser de agora, mas não me parece que aconteça num futuro próximo.
Comentário a este post no DESCRÉDITO !
Renato, tens razão, essa excessiva dicotomização é nociva tanto analitica como politicamente e é preciso descobrir e intervir na dimensão meso, ou, se quiseres, na escola como "organização". Daí que no outro dia num comment disse que era muito importante, quando se fala de "escolas", distingui-las dos professores tomados individualmente.
Zed:
"Acho as Grandes Ecoles mais uma herança Napoleónica do que o Antigo Regime, o que vai dar ao mesmo, ou pior...".
Mas repara, Napoleão apenas prosseguiu o legado anterior.
"Ja se vai ouvindo falar em acabar com as Grandes Ecoles, e nem deve ser de agora, mas não me parece que aconteça num futuro próximo."
Pois: é que toda a classe política, para não falar nas elites económicas sairam delas. Não as estou a ver a matar a galinha dos ovos de ouro. Mas, como referes, já há vozes mais corajosas e lúcidas. Eu acho que com o - muito tempo - tempo elas ganharam outra força.
PS - Caro Pedro Sá, podia ajudar-nos a credibilizar um bocadinho isto, não? Um comentário mais construtivo e com outra qualidade seria bem vindo.
"Epá andas a concordar muito com o que escrevo. Será problema meu?"
Não, não, eu é que acho é que levamos noutras situações muito (talvez demasiado) a sério o que o Simmel falava do potencial de sociação do conflito :))
Noutras vezes, se calhar concluímos simplesmente que não dizemos coisas assim tão diferentes.
Caro Pedro Sá: alertado pelo Renato, agora percebi. Li o seu posto no Descrédito e o que diz não contradiz necessariamente o Renato. Aqui ñestas coisas não há o lado certo e o lado errado, mas há multiplos lados. Um deles é obviamente a diferença motivação, expectativa, ambição de pais e alunos; outro pode ser como os sistemas educativos estão desenhados, no lado formal, e/ou funcionam na prática, para reforçar ou corrigir as desigualdades de partida (aquilo a que suponho que chama "natureza das coisas") (basicamente, é esta a dicotomia que funda o conflito Boudon-Bourdieu na literatura francesa das desigualdades perante a escola).
Felizmente, ambos os lados - o das expectativas e do desenho/praticas do/no sistema são reformáveis e melhoráveis, com políticas inteligentes e persistentes, ao longo do tempo.
"Mas repara, Napoleão apenas prosseguiu o legado anterior."
Sem dùvida, mas como muitas coisas ainda existentes na França actual, reformou-as e deu-lhes um cunho Napoleónico, levou-as para um nivel "superior". Aliás o legado Napoleónico na sociedade francesa actual é fascinante, mas isso é outro debate...
"Pois: é que toda a classe política, para não falar nas elites económicas sairam delas."
Verdade, e ainda para mais também se segregam umas às outras, na Ecole Normale por exemplo os investigadores chefes de equipa são todos antigos alunos da Ecole. Também ja me disseram (não sei até que ponto é exacto) que mesmo nas empresas, quando os quadros são predominatemente vindos de uma determinada escola os novos quadros recrutados vêm da mesma escola. Falando em reproduzir e prepetuar padrões, o caso francês é mesmo um caso extremo a ter em atenção, de preferência para não o reproduzir.
O teu comentário fez-me lembrar um livro engraçado (mas antigo, de 1973) que descreve esse tipo de situações por dentro, chama-se muito apropriadamente "La Mafia polytechnicienne":
http://www.amazon.fr/Mafia-polytechnicienne-Jacques-Antoine-Kosciusko-Morizet/dp/202002196X/ref=sr_1_73/171-0575069-9631411?ie=UTF8&s=books&qid=1175610654&sr=1-73
O que referes das empresas é verdade, em particular nas empresas públicas, cujo recrutamento depende muito das lógicas de associação dos ex-alunos da escola Y.
Esqueci-me de dizer que isto do Renato e do Hugo estarem de acordo me parece um mau precedente, muito mau. Vamos la a cabar com esta estoria, sim?
Renato,
Um comentário feito no ruído tempo, sem um conhecimento do estudos, mas baseado nas minhas reminiscências escolares.
Eu penso que um estudo deste natureza faria mais sentido se privilegiar-se momentos distintos no tempo, ou seja se tivesse uma perspectiva diacrónica.
Com efeito, não basta dizer que a estrutura do ensino português é largamente reprodutiva, até porque a desigualdade de oportunidades enquanto dado da existência não desaparece num ápice. Mais interessante, seria medir ao longo do tempo, e ver se esta estrutura largamente reprodutiva foi ou não atenuada. Porque atenuar, já é alguma coisa, pode ser até o principio de uma outra coisa. mas isto raramente é feito, e o que permanece sincrónico acaba destituído de sentido.
Um abraço,
Luís Marvão
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