Por sugestão do meu amigo Daniel, cá vai um texto mais longo sobre a actual contestação nas universidades francesas.
A actual contestação estudantil em França tem, como em anos anteriores, uma causa próxima e depois, por trás, um sentimento difuso de angústia e de apreensão em relação ao futuro. O descontentamento vem, assim, em vagas cíclicas, e por razões mais do que compreensíveis: as universidades francesas são a face massificada e degradada de um sistema de ensino superior que, como noutros planos da gestão da coisa pública neste país, é suposto produzir igualdade e acaba por produzir desigualdade. Os estudantes são os primeiros a senti-lo e, de tempos a tempos, explodem de indignação.
A causa próxima da contestação actual é uma nova lei sobre a gestão das universidades, à qual se tem chamado, talvez impropriamente, lei da autonomia universitária. Em boa medida, a autonomia agora aprovada consiste, em termos de gestão, num reforço dos poderes do presidente da universidade; em termos de financiamento, a universidade dependerá de contratos-programa assinados com o Estado e necessitará cada vez mais de recorrer a receitas próprias. Uma lei tão importante foi aprovada — à boa maneira Sarkozysta — em plenas férias de Verão. Houve umas negociações a correr com os reitores e com os sindicatos estudantis, umas cedências aqui e ali — e ala com a lei.
Dito isto, a primeira coisa que me chateia no movimento universitário actual é os estudantes serem contra a nova lei sem dizerem que o que é preciso é mais autonomia universitária ou um outro tipo de autonomia diferente desta. E que o que é preciso são garantias claras de que o Estado não vai deixar afundar, ao abrir o leque dos financiamentos universitários, os cursos de letras e de ciências sociais, como está a acontecer, e não só em França, mas em todo o espaço europeu.
(Dito isto, devo acrescentar que os professores universitários — nos quais me incluo — deviam estar na primeira linha deste combate que aqui reivindico. E não estão. Embora, neste preciso momento, tal luta se tenha tornado impossível)
A segunda coisa que me chateia é que a luta se faz essencialmente, tal como já tinha acontecido na grande contestação anti-CPE de 2006, através de bloqueios da universidade. Os alunos, que já têm enormes carências de base e semestres incrivelmente curtos, ficam várias semanas sem aulas. A actividade académica — colóquios, seminários — fica muito perturbada ou totalmente paralisada. E um lugar que é, ou deve ser, um lugar de vida e de inteligência fica fechado, bloqueado, abandonado. Os que fazem e defendem o bloqueio dizem-me que esta é a única maneira eficaz de luta, como se viu pela de 2006. Eu tenho as minhas dúvidas. Mas, de qualquer modo, não concordo com o método e nunca aderiria a uma luta que se medisse só pela eficácia.
A terceira, e principal coisa — e fundamental, e trágica — é a seguinte: os métodos da contestação actual são, demasiadas vezes, anti-democráticos e mesmo violentos. Para me referir ao caso da universidade onde ensino — a universidade de Ciências Humanas de Rennes —, uma clara maioria dos estudantes manifestou, por via de um referendo legítimo, a sua oposição ao bloqueio. Durante dois dias ele foi levantado, para recomeçar, imposto pela força de uma minoria, na segunda-feira seguinte. Os elementos mais activos do movimento de bloqueio da universidade de Rennes — uma parte dos quais não são estudantes — deram, além desta, várias provas de desrespeito pela vontade da maioria. No seu discurso, como tentei dizer aqui, aflora de forma explícita e muito inquietante o repúdio pela democracia — a mesma que, numa amálgama terrível, acusam de ter eleito Sarkozy.
(suspeito que uma das consequências da eleição de Maio passado tenha sido fazer passar uma franja da extrema esquerda para o horizonte da acção directa. Dizem lutar contra o sistema, mas a única coisa que estão a conquistar, neste momento, são umas instalações destinadas ao ensino de matérias tão relevantes para o Capitalismo mundial como História, Literatura e Línguas Estrangeiras)
Em Rennes, os bloqueadores ocuparam um dos edifícios da universidade e usam de intimidação em relação aos funcionários que lá trabalham. A presidência está a tentar, com dificuldade extrema e sem garantias de sucesso, levantar o bloqueio sem intervenção policial (que já ocorreu uma vez, na semana passada). Assim, a universidade, que já tinha sido alvo do mais longo bloqueio da contestação anti-CPE em França, vive talvez a maior crise da sua história. Por efeito da escassez de recursos e da concorrência real que existe entre as universidades de Letras pelo financiamento estatal, esta paralisação da actividade da instituição reflecte-se, para os anos seguintes, em perda de alunos, de lugares para professores e de receitas. Rennes é talvez um caso extremo, mas não é caso único.
É de uma ironia trágica que um movimento que se diz contra a precarização do ensino e das relações laborais contribua objectivamente, pela sua própria acção, para a precarização do ensino e das condições de trabalho.
P.S. No meio disto, a maioria dos alunos da universidade mantém uma assinalável lucidez. São pragmáticos e, apesar de desorganizados, não gostam de ser manipulados nem tomados por parvos. Mas sentem-se, compreensivelmente, abandonados. Hoje, os estudantes votam mais uma vez por via electrónica. Na segunda-feira, vamos tentar voltar a levantar o bloqueio, e há alguma esperança de recomeço de normalização. A ver vamos.