Eu não queria, mas não resisto. Hoje é domingo e, escrevendo, deveria escrever sobre vinhos (ando para escrever sobre o Languedoc, mas vai ter que ficar para a próxima). Tratando-se de Wine-House, abre-se uma excepção, e aqui vai disto. Claro que quem vai a um concerto de Amy Winehouse deve saber ao que vai, não tem desculpa. Eu não fui, e se vier cantar aqui por estas bandas vai ser sem mim. Um CD de estúdio chega perfeitamente. A moça até tem uma voz interessante, diria mesmo uma boa voz, e tem sobretudo um repertório muito bom. Gosto bastante das músicas que canta, mas isso, mérito a quem é devido, é graças ao talento de compositores, letristas, orquestradores, produtores e músicos. Desconheço se Amy se dedica a alguma destas actividades, mas duvido. Óbvio é que a moça tem talento (como diz, e bem, o Manolo) para a auto-destruição, e para isso é que já não tenho paciência. Que se vá auto-destruir para casa, em privado. Mas pelos vistos há quem goste do espectáculo. Pior ainda, há quem idolatre a auto-destruição, e provavelmente há até quem tenha também muita peninha, que coitadinha a mocinha até sofre muito, pobrezinha. Eu não tenho paciência, mas se outros têm, enfim, paciência... assim seja.
Agora, que venham comparar Amy Winehouse a Nina Simone, ou Billie Holliday, isso é que já é um ultraje. Nem é preciso comparar biografias (talvez Simone e Holliday tenham tido vidas muito mais duras, e verdadeiros dramas pessoais que possam justificar o sofrimento, mas nunca fizeram do sofrimento um espectáculo, mesmo que faça hoje parte da lenda, mas não vamos por aí). Atente-se à música: quando Amy Winehouse fizer metade do que fizeram Nina Simone ou Billie Holliday - i.e. quando gravar metade da discografia, com metade da qualidade, e que exerça metade da influência sobre as gerações de músicos futuras - então aceito a comparação, e podemos conversar. Enquanto esperamos, e vamos esperar muito, porque afinal a carreira de Amy Winehouse está apenas no começo (embora esteja provavelmente já no fim), fica uma faixa de Nina Simone ao vivo, para amostra. A música é boa, mas Nina Simone habituou-nos a melhor, a qualidade da gravação é sofrível, mas dá para ver o que era Nina Simone ao vivo. Oiçam, e julguem por vós.
Mas o pior, o que me tira do sério mesmo é chavões do tipo "Genialidade sem excesso? Não temos". Claro que quando se procura o excesso, e se idolatra o excesso, e se confunde excesso com génio, é normal pensar que não há génio sem excesso. Puro engano. Dou apenas o meu exemplo preferido: Charlie Parker e Dizzy Gillespie. O Jazz moderno tal como o conhecemos hoje é o resultado da revolução formal que foi o BeBop, e o BeBop foi 90% o resultado da parceria entre Gillespie e Parker. Parker é muito mais conhecido do que Gillespie (para os que não se lembram é o trompetista das bochechas enormes). Parker morreu novo, com excesso de álcool, excesso de drogas, batia na mulher, e mais uma série de excessos. Dir-se-ia que o excesso faz parte do génio. Mas que tem tudo isso a ver com música? Rigorosamente nada. E pouco importa que tenha sido Gillespie o teórico do BeBop, quem desenvolveu os novos formalismos, progressões de acordes, relações acorde-escala, e outras miudezas (essas sim, relacionadas com música). Gillespie não foi propriamente um homem de excessos, e teve uma carreira que durou uns cinquentas anos, coisa pouca afinal. Os excessos de Parker serão sempre o Ícone. Chama-se a isso confundir o essencial com o acessório.
P.S. - Razão tem o Luís Rainha.
P.P.S. - Sobre Gillespie já escrevi aqui e aqui.
Agora, que venham comparar Amy Winehouse a Nina Simone, ou Billie Holliday, isso é que já é um ultraje. Nem é preciso comparar biografias (talvez Simone e Holliday tenham tido vidas muito mais duras, e verdadeiros dramas pessoais que possam justificar o sofrimento, mas nunca fizeram do sofrimento um espectáculo, mesmo que faça hoje parte da lenda, mas não vamos por aí). Atente-se à música: quando Amy Winehouse fizer metade do que fizeram Nina Simone ou Billie Holliday - i.e. quando gravar metade da discografia, com metade da qualidade, e que exerça metade da influência sobre as gerações de músicos futuras - então aceito a comparação, e podemos conversar. Enquanto esperamos, e vamos esperar muito, porque afinal a carreira de Amy Winehouse está apenas no começo (embora esteja provavelmente já no fim), fica uma faixa de Nina Simone ao vivo, para amostra. A música é boa, mas Nina Simone habituou-nos a melhor, a qualidade da gravação é sofrível, mas dá para ver o que era Nina Simone ao vivo. Oiçam, e julguem por vós.
Mas o pior, o que me tira do sério mesmo é chavões do tipo "Genialidade sem excesso? Não temos". Claro que quando se procura o excesso, e se idolatra o excesso, e se confunde excesso com génio, é normal pensar que não há génio sem excesso. Puro engano. Dou apenas o meu exemplo preferido: Charlie Parker e Dizzy Gillespie. O Jazz moderno tal como o conhecemos hoje é o resultado da revolução formal que foi o BeBop, e o BeBop foi 90% o resultado da parceria entre Gillespie e Parker. Parker é muito mais conhecido do que Gillespie (para os que não se lembram é o trompetista das bochechas enormes). Parker morreu novo, com excesso de álcool, excesso de drogas, batia na mulher, e mais uma série de excessos. Dir-se-ia que o excesso faz parte do génio. Mas que tem tudo isso a ver com música? Rigorosamente nada. E pouco importa que tenha sido Gillespie o teórico do BeBop, quem desenvolveu os novos formalismos, progressões de acordes, relações acorde-escala, e outras miudezas (essas sim, relacionadas com música). Gillespie não foi propriamente um homem de excessos, e teve uma carreira que durou uns cinquentas anos, coisa pouca afinal. Os excessos de Parker serão sempre o Ícone. Chama-se a isso confundir o essencial com o acessório.
P.S. - Razão tem o Luís Rainha.
P.P.S. - Sobre Gillespie já escrevi aqui e aqui.
8 comments:
Subscrevo a 1000%
Caro Zed,
Parece que tresleste o que escrevi. Nunca comparei o génio musical de Nina Simone e Billie Holliday com o de Amy Winehouse. Seria idiota se o fizesse. Não há comparação possível. as duas primeiras são dois dos maiores génios musicais do século XX e Amy é apenas do melhor que apareceu na música popular nos últimos anos (o que, dado o estado da coisa, nem é assim tão difícil).
O que disse, e é bem diferente, é que Nina e Billie são "dois génios que não acabaram a sua carreira em condições muito distintas das actuais de Amy". Não comparei o génio nem a carreira. Mas não é por isso que é menos verdade que Nina Simone actuava quase sempre alcoolizada nos últimos anos da sua carreira (alguém que a tenha visto no pavilhão carlos lopes pode constatar isso mesmo) e que, até hoje, nunca foi editado o concerto de Holiday no Olympia, em 1958, porque os detentores das gravações quiseram preservar o nome de quem o merecia como poucas pessoas.
Não se trata de idolatrar a auto-destruição, de lhe achar mais piada, nem de ter pena ou não da pessoa. Mas não embarco é no moralismo que para aí anda na condenação da mulher porque estava sob o efeito de drogas ou de qualquer bebida alcoólica. Prefiro concentrar-me na sua música. De que gosto. Quanto ao seu caso pessoal, apenas espero que o consiga resolver a tempo.
Pedro Sales
Ia a comentar para dizer exactamente o que o Sales já disse. É evidente que ninguém quis comparar o génio de Winehouse com as duas outras divas. Só muita má fé ou muito distração poderá justificar esse entendimento
Olá, Zèd.
Claro que a rapariga tem lá um grande talento pra dar cabo de sua própria vida, porém não se pode negar o seu talento musical. Além de estar sempre rodeada de ótimos músicos (a apresentação de Lisboa foi um exemplo disso) e produtores de primeira linha, ela é responsável pelas composições (algumas em parceria) de todas as canções de seu CD (Back to Black). Entretanto, compará-la a Nina Simone ou Billie Holliday como querem alguns, além de ser muito prematuro é quase um atentado ao bom senso, um exagero. Como também foi um exagero as críticas de caráter moralista feitas a ela por se apresentar bêbada (ou sei lá o que).Se o festival leva rock no nome, qual a contradição nisso? Creio que há excessos dos dois lados.
Caro Pedro, caro Jorge
Pessoalmente não embarco nas críticas moralistas. Até gosto da música da Amy Winehouse, mas ao vivo a música é coisa que não se vê. Mas para não embarcar em moralismos não sou obrigado a embarcar na glorificação da decadência tampouco.
O problema pessoal de Amy Winehouse obviamente não me diz respeito, mas aqui trata-se de fazer da sua auto-destruição um espectáculo. E o facto é que a imagem comercial de Amy Winehouse vive mais desse espectáculo do que do próprio talento musical. As figuras tristes que Winehouse faz em palco é nada têm a ver com música, e a glorificação dessas figuras é, aliás, coisa que só interessa à imprensa cor-de-rosa (que de resto adora Winehouse, tanto quanto Spears, dois filões inesgotáveis para revistas de cabeleireiro).
A decadência de Billie Holliday e Nina Simone, que não faz parte do génio de nenhuma delas, não foi de todo o pilar em que assentaram as suas carreiras. Não sendo nada de admirar, não deve também apagar o talento das duas senhoras, nem a notável obra que deixaram para trás. Amy Winehouse não tem esse capital, e é por isso que a comparação não colhe.
Se isto é ser moralista, então sou moralista, não tenho problemas com isso.
Manolo,
Tem talento musical sim senhor, e não sabia que compunha (podia ter verificado, mas não o fiz). Reconheça-se esse talento também, porque as composições também são boas. Admito que não conheço o teor das críticas que se tem feito a Amy Winehouse. Ela pode até cantar completamente alcoolizada, desde que cante. Pelo que vi nos vídeos ele nem chega propriamente a cantar. Como dizes já é de esperar, toda a gente conhece a reputação de Amy Winehouse. Eu digo apenas que pessoalmente não irei ver um concerto dela, enquanto ela continuar a dar espectáculos destes.
Lindo filha! E, tão verdadeiro pra quem te conhece! Segue assim, tirando vida das mortes, tão pequenas diante de tudo que podes!
A decadência de Billie Holliday e Nina Simone, que não faz parte do génio de nenhuma delas, não foi de todo o pilar em que assentaram as suas carreiras.Creio que há excessos dos dois lados.
Apoio o Zed. E acrescento preocupação pelo sucesso que faz entre os mais jovens que se preocupam menos com a qualidade musical (muitos infelizmente nunca ouviram um jazz ou um blues) mas mais com o icon e o que a Amy representa: rebeldia. "They try to make me go to rehab but I don't go, go, go"...
Um jovem de 18 anos, acompanhado por um cão rafeiro, ébrio, com uma garrafa de vinho debaixo do braço e uma telas e umas tintas pode ser, pala alguns, uma imagem poética. Esse jovem passados 40 anos, com a mesma garrafa de vinho, o rafeiro e com uns "cobertores" de cartão será igualmente poético?
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