Este post começou por ser um comentário ao post anterior do Daniel Melo, como o meu primeiro texto começou por ser um comentário ao JRD. Mas como o tema pedia um certo desenvolvimento decidi atirá-lo para a linha de frente do blogue. Esta entrevista que o Daniel Melo lincou não corresponde às declarações de Saramago no lançamento de Caim. Mas cá vai o meu comentário: acho piada o Saramago dizer que não se deve deixar a Bíblia nas mãos de um adolescente. Então um adolescente pode ler o Caim e não pode ler a Bíblia? Ou não pode ler nenhum dos livros? Isso não é um atentado à liberdade de informação e de formação? Segundo Saramago durante a minha adolescência não devia ter lido a Bíblia. Segundo algumas pessoas que conheci durante a minha adolescência não devia ler Saramago. Eu li ambos e por isso estou em condições de intervir sobre a polémica.
A visão da Bíblia como um livro repleto de violência não é nova nem é falsa. Basta pensar na personagem-narrador de Laranja Mecânica, a história de um jovem viciado na violência, na leitura do Antigo Testamento e na música de Beethoven, escrita pelo católico Anthony Burgess e levada ao cinema por Stanley Kubrick. Uma distopia em que a ambição de controlar o corpo e a mente não vem da Igreja, mas da ciência e em que a defesa do livre-arbítrio subjacente à narrativa se enraíza na formação católica do autor. Se pensarmos bem quem é que hoje em dia exerce maior controlo sobre o corpo dos portugueses: a Igreja Católica ou a ASAE?
Saramago tem toda a legitimidade para apresentar a sua visão da Bíblia, como eu tenho para o contestar. Vamos então às questões de fundo segundo o Daniel Melo: a irracionalidade das religiões e o seu carácter opressivo. A fé tanto pode ser um instrumento de dominação como de libertação. Uma das linhas narrativas fundamentais do Antigo Testamento é a libertação do povo hebraico do domínio egípcio e a busca da terra prometida. Mesmo dentro da sociedade hebraica descrita na Bíblia há uma forte tradição profética de denúncia dos abusos dos poderosos. Esta vertente libertadora das religiões não é exclusiva da tradição judaico-cristã. Recentemente os monges budistas têm desempenhado um papel importante na luta pela democracia no Myanmar, como se pode ler aqui (por acaso um site católico).
A condição humana tem um lado irracional. E as religiões, sendo vividas por humanos transportam essa irracionalidade. Há desenvolvimento religiosos patológicos, mas o que está na sua origem é uma busca de sentido. O que eu leio na Bíblia é um constante questionamento das razões de Deus – que tem um dos seus pontos mais radicais no Livro de Job – e das razões dos homens. Leio também na Bíblia uma racionalização da violência e uma apresentação das razões da não-violência. A primeira aparece de forma primitiva na lei do talião - «olho por olho, dente por dente», que era uma forma de interditar a morte ou a vingança sobre os familiares de quem partisse um dente ou arrancasse um olho a outra pessoa. O Novo Testamento vai mais longe ao propor «amar o próximo como a si mesmo» e «amar os inimigos.» Há outra frase que também se encontra por lá, da qual eu gosto muito e que não é estranha ao conceito de laicidade: «Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.»
A visão da Bíblia como um livro repleto de violência não é nova nem é falsa. Basta pensar na personagem-narrador de Laranja Mecânica, a história de um jovem viciado na violência, na leitura do Antigo Testamento e na música de Beethoven, escrita pelo católico Anthony Burgess e levada ao cinema por Stanley Kubrick. Uma distopia em que a ambição de controlar o corpo e a mente não vem da Igreja, mas da ciência e em que a defesa do livre-arbítrio subjacente à narrativa se enraíza na formação católica do autor. Se pensarmos bem quem é que hoje em dia exerce maior controlo sobre o corpo dos portugueses: a Igreja Católica ou a ASAE?
Saramago tem toda a legitimidade para apresentar a sua visão da Bíblia, como eu tenho para o contestar. Vamos então às questões de fundo segundo o Daniel Melo: a irracionalidade das religiões e o seu carácter opressivo. A fé tanto pode ser um instrumento de dominação como de libertação. Uma das linhas narrativas fundamentais do Antigo Testamento é a libertação do povo hebraico do domínio egípcio e a busca da terra prometida. Mesmo dentro da sociedade hebraica descrita na Bíblia há uma forte tradição profética de denúncia dos abusos dos poderosos. Esta vertente libertadora das religiões não é exclusiva da tradição judaico-cristã. Recentemente os monges budistas têm desempenhado um papel importante na luta pela democracia no Myanmar, como se pode ler aqui (por acaso um site católico).
A condição humana tem um lado irracional. E as religiões, sendo vividas por humanos transportam essa irracionalidade. Há desenvolvimento religiosos patológicos, mas o que está na sua origem é uma busca de sentido. O que eu leio na Bíblia é um constante questionamento das razões de Deus – que tem um dos seus pontos mais radicais no Livro de Job – e das razões dos homens. Leio também na Bíblia uma racionalização da violência e uma apresentação das razões da não-violência. A primeira aparece de forma primitiva na lei do talião - «olho por olho, dente por dente», que era uma forma de interditar a morte ou a vingança sobre os familiares de quem partisse um dente ou arrancasse um olho a outra pessoa. O Novo Testamento vai mais longe ao propor «amar o próximo como a si mesmo» e «amar os inimigos.» Há outra frase que também se encontra por lá, da qual eu gosto muito e que não é estranha ao conceito de laicidade: «Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.»
3 comments:
Ainda não li o livro "Caim".
Tanto os meus comentários como o meu simples (faz-se o que se pode) poste, resultam somente das declarações de Saramago.
Este seu poste é outro ensaio sobre a lucidez, a sua.
Não obstante,atrevo-me a dizer que, admitir que um adolescente pode ler Caim e outros de Saramago, é passar -confirmar- um atestado de menoridade intelectual à esmagadora maioria dos adultos, incluindo Cavaco, Santana, Sousa Lara, etc.
Concordo, João Miguel, as religiões não têm só um lado mau, sem dúvida. Mas também não foi sobre isso que eu falei: limitei-me a tentar interpretar o essencial do que pretendia dizer Saramago com as suas declarações no lançamento mundial do livro Caim. Podia ter ainda mencionado a questão do pecado ou do Inferno (este referiste-o tu).
A entrevista de que deixei link não corresponde, de facto, às declarações de Saramago no lançamento de Caim: na altura do post, não reparei que já estava disponível um video desse lançamento no site do Público, daí ter optado por uma outra que também aborda a temática.
Quanto à liberdade de leitura, acho que já estamos a forçar a nota, trata-se duma opinião de desaconselhamento por alguém que não tem qualquer tipo de cargo na política de leitura ou de selecções bibliográficas. Agora já esta opinião é de alguém que tem peso político: «Eurodeputado do PSD exorta Saramago a renunciar à cidadania portuguesa» (http://www.publico.clix.pt/Cultura/eurodeputado-do-psd-exorta-saramago-a-renunciar-a-cidadania-portuguesa_1406026).
Quanto a filmes sobre religião, ele há-os para todos os gostos, e o que tu referes é um bom filme, dum cineasta de referência.
Caro jrd e Daniel Melo,
Pois, mas alguns adultos são mesmo menores intelectuais. Não precisam de nenhum atestado da minha parte. O eurodeputado do PSD que exortou Saramago a renunciar à cidadania portuguesa «auto-atestou-se» como menor, para não dizer imbecil.
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