segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O céu pode esperar

As declarações pirómanas de Saramago no lançamento mundial do seu último romance, em Penafiel, tiveram o condão de atear uma polémica brava. Para o escritor ser-lhe-á indiferente, ou mesmo desejado, segundo a lógica de que o que é polémico chama mais a atenção e, logo, lê-se mais. Mas, atendendo à progressão errática que bafeja a história das polémicas, receio que nos percamos no estilhaçar aleatório de faúlhas (sobre isso escrevi em post anterior).
João Miguel Almeida diz-nos, neste estimulante post, que o problema das declarações do nobelizado é serem inconsistentes, e não politicamente incorrectas ou infelizes. E, para o provar, procura mostrar-nos a debilidade dalguns dos seus argumentos, independentemente da validade do debate dos assuntos aventados.
Vou por outro caminho: há que procurar nessas declarações um fundo. E o fio condutor que topei, posso estar errado, é este: a irracionalidade das religiões. Sobre isto, o debate será muito difícil, pois os argumentos serão nano-mini-micro, piquenos, médios ou grandes consoante a posição do leitor, a sua fé ou falta dela. Entendamo-nos: o que Saramago nos quer transmitir não é uma leitura literal da Bíblia, mas sim dizer que os livros sagrados foram construídos como instrumentos abusivos de poder, de dominação (simbólica e não só) dos outros, e sem ligação a uma argumentação, a uma persuasão racional. E, por isso, provocaram e instigarão medo, violência, obscurantismo, subjugação, monolitismo. Basta ver a evolução histórica da questão da laicidade. Na minha opinião, esta é uma opinião legítima. Eu discordo dela, acho-a excessiva (por estas e outras razões), mas também a considero legítima. E mais, não só a acho legítima como a acho pertinente para debater a questão do uso político, social e cultural das religiões.
PS: para quem quiser tirar o filtro jornalístico dos resumos com soundbytes e confrontar uma declaração directa e sem cortes de Saramago, pode ver esta sua entrevista à Folha de S. Paulo.

5 comments:

jrd disse...

São declarações pirómanas que provocam reacções "inflamadas" de quem tem um longa tradição em matéria de fogueiras.
Ao fim e ao cabo este é um fogo lento e antigo.

graciete ram disse...

O mal-estar ou polêmica - quando se trata da midia - se dá quando as pessoas não compreendem que narrativas míticas (como a Bíblia) são documentos históricos e usados, seja em que época for, como instrumento de poder. Bem sabemos que a Bíblia também é fonte de inspiração para grupos que contestam o status quo, como a ala da Igreja que apoia a reforma agrária.

A narrativa mítica é uma entre tantas criações humanas e portanto históricas, logo passível de questionamento e análise.

(:

Daniel Melo disse...

jrd, parece que sim, e já vem aí mais fogo: «Eurodeputado do PSD exorta Saramago a renunciar à cidadania portuguesa» (http://www.publico.clix.pt/Cultura/eurodeputado-do-psd-exorta-saramago-a-renunciar-a-cidadania-portuguesa_1406026).

Daniel Melo disse...

graciete ram, é isso aí que Saramago estava tentando dizer (enfim, descontando a parte das correntes contra-corrente na hierarquia).

jrd disse...

Daniel Melo,
Ao deputado/couve de Bruxelas falta-lhe a pátina do Lara.
(passe pelo bth).