segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A polémica antes do romance

Tenho uma certeza acerca de Caim: vou ler o romance e vou lê-lo em breve, abrindo uma excepção à disciplina auto-imposta de não perder muito tempo com leituras que não estejam directa ou indirectamente relacionadas com a minha investigação em curso. Vou lê-lo não por causa das declarações de José Saramago, mas apesar delas, confiante na capacidade narrativa e poética do escritor, atestada na leitura de outros romances como O Ano da Morte de Ricardo Reis e Ensaio sobre a Cegueira. O meu interesse foi aguçado pela leitura do início do romance, aqui. O problema com as declarações de Saramago não é serem politicamente incorrectas ou infelizes. A iconoclastia faz parte da tradição cristã. O próprio Cristo deu as suas chicotadas no templo e escandalizou muita gente. Luís Buñuel, que foi o realizador mais radical na sátira ao catolicismo, considerava-se «ateu pela graça de Deus» - cfr. O meu último suspiro, o livro de memórias do génio espanhol.
O problema é a inconsistência das declarações de José Saramago, que se podem ler aqui. Começa por não entender o estatuto do texto bíblico ao compará-lo ao Corão. Segundo a fé islâmica o Corão foi ditado por Deus. Os livros da Bíblia são testemunhos da fé, textos de sapiência, leis, cartas, etc. A carta de um apóstolo não tem o mesmo estatuto de um versículo ditado directamente pelo Deus. Essa é também uma das razões por que a exegese bíblica está muito mais desenvolvida do que a do Corão.
É irónico que Saramago cite Hans Küng, um dos maiores teólogos católicos, profundo conhecedor da Bíblia e que também escreveu um extenso volume sobre o Islão, para fundamentar as suas afirmações. Hans Küng pode ter dito que historicamente a ideia de Deus afastou as pessoas. Mas certamente a teologia que formulou não serve o mesmo desígnio.
Saramago ataca a ideia de inferno. Não sou eu que a vou defender. Há igrejas cristãs protestantes que não acreditam no inferno. Mas o exemplo que o escritor dá para refutar a ideia de inferno é ridículo: «Nós, os humanos somos muito mais misericordiosos. Quando alguém comete um delito vai cinco, dez ou quinze anos para a prisão e depois é reintegrado na sociedade, se quer.» Passo por alto pela hipótese da necessidade de perdão pregada pelo cristianismo ter influenciado a concepção da punição como forma de reabilitação do criminoso. Os humanos mais severos condenam, no máximo, um criminoso a quinze anos de cadeia? Então que pena é que devia ter Hitler? Ou, para citar um exemplo de Saramago, um instigador das Cruzadas? Na China, onde a influência judaico-cristã é mínima, a pena de morte é aplicada a crimes que nos parecem leves.
O romancista termina acusando de idiotia a concepção de que o mundo foi criado em sete dias, concepção que de facto se encontra na Bíblia, mas não é levada no sentido literal do termo nem pela Igreja Católica, nem pelo judaísmo, nem por várias igrejas protestantes.
Nota final: Saramago fala como se as pessoas fizessem guerras em nome de uma abstracção, de um ser nunca visto. Todas as teologias são antropologias e sociologias. E as ideologias ateias também. São concepções do homem e da sociedade que estão na origem dos conflitos. Se o trabalho intelectual pode evitar guerras ou atenuar conflitos é aí que tem de se focar.

3 comments:

José Leitão disse...

Totalmente de acordo.É possível fazer sempre diferentes leituras dos textos bíblicos.Com base na pergunta de Deus a Caim, "que fizeste de teu irmão ?" foram já desencadeadas campanhas contra a pena de morte.É verdade que há quem faça leituras literais dos textos bíblicos. Normalmente são cristãos fundamentalistas, mas não têm o exclusivo. Vale a pena discutir estas questões.

jrd disse...

Ensaio sobre a Lucidez.

jrd disse...

Porque o meu comentário pode parecer ambíguo, clarifico: Ensaio sobre a Lucidez do escritor.