O conflito de personalidades que lhe subjaz diz mais da atitude de certas elites do que propriamente do eleitorado, mais poroso, comprovado na votação presidencial de Alegre e nas últimas eleições europeias (e como referiu André Freire em comentário na RTPN). Mas é justamente por ser poroso que o premiê resolveu ser agressivo como foi.
Sócrates preocupou-se mais em tentar descredibilizar e desqualificar o BE do que em apresentar as propostas do PS. E fê-lo não só pela estafada dramatização do «voto útil» (ou nós ou vem a direita; os resultados das europeias mostram que, apesar do PS ter perdido, a direita ficou apenas com 40%) como tentando provar que o BE é um partido radical, e, surprise!, um autêntico papão da classe média. Aqui foi ainda mais insistente do que com Portas, apresentando a proposta do BE de eliminação das deduções fiscais em sede de IRS como sendo um ataque à classe média. De nada valeu Louçã explicar que assim não era pois o BE propunha em paralelo a gratuitidade do acesso à saúde (extinguindo as taxas moderadoras) e educação (acabando com as propinas e ofertando os livros escolares) e a substituição dos planos de poupança reforma (vulgo PPR's) pela revalorização do aforro público (que o actual governo esvaziou). O líder do PS achou por bem repetir a 'denúncia' mais 2 vezes, pelo menos (é claro que o tema seguinte era o desemprego...). E Louçã esteve bem quando referiu que o IRS é um «sistema cheio de armadilhas», um puzzle kafkiano talhado para peritos ou para quem se disponibilize a contratar 'assistência técnica' (contabilista, advogado, etc.), pois só assim se consegue aproveitar de forma completa e sem dores de cabeça. Além da simplificação do sistema fiscal, o líder do BE defendeu ainda a necessidade dum imposto sobre as grandes fortunas, questão sobre a qual o PS é omisso. E devolveu os mimos a Sócrates, criticando o seu governo por falta de transparência e de rigor.
Outra 'denúncia' esgrimida por Sócrates foi a da alegada nacionalização da banca, seguros e energia proposta pelo BE. De nada valeu a Louçã referir que no programa estava tornar público ou reforçar a intervenção pública nestas áreas, dando como exemplo o facto da Caixa Geral de Depósitos dever reduzir as taxas de juro e tornar o crédito mais acessível para as PME (pequenas e médias empresas, o grosso do tecido empresarial) em vez dos esquemas com grandes empresários. Louçã criticou o facto da Galp ter sido privatizada por acordo directo com José Eduardo dos Santos e Américo Amorim, privilegiando interesses de poucos em detrimento das pessoas e das empresas, que têm de recorrer a energia mais cara fornecida em regime de monopólio privado; Sócrates justificou-se dizendo ter-se assim evitado «que a Galp caisse em mãos de estrangeiros», como se Angola ainda fosse uma colónia portuguesa. Outro caso de ajuste directo referido foi o do terminal de Alcântara, com Sócrates a dar novo tiro no pé dizendo que foi «a melhor forma de defender o interesse nacional».
Depois do ataque cerrado e das constantes interrupções, cortando o raciocínio ao oponente e ao arrepio das regras que impôs aos debates, o premiê pôs-se em tom de virgem ofendida acusando o BE de ter eleito o PS como o «inimigo principal» e de, em tempos de crise, apresentar com um programa radical, em vez de dar as mãos e pôr de lado essa coisa supérflua da alternativa política, imagina-se. Haja dó!
Louçã esteve ainda bem quando contrariou a euforia socrática do fim da recessão económica, dizendo que a recessão é o desemprego. O qual superou o meio milhão de desempregados, com certos grupos sociais sem protecção (jovens à procura de emprego ou com empregos de curta duração) ou com fraca protecção, como o caso do subsídio social de desemprego, que se fica pelos 240 euros num país em que o salário mínimo é de 450 euros. O único ponto de acordo foi o da necessidade de reforçar o investimento público para combater o desemprego (além da desastrada visita de Manuela Ferreira Leite à Madeira).
Em lugar de argumentar e expor, Sócrates privilegiou o ilusionismo e o amedrontamento. O aproveitamento da proposta de eliminação dos benefícios fiscais (que até o social-cristão Bagão Félix já quis acabar: vd. aqui um post oportunamente repescado por Daniel Oliveira) foi tiro ao lado. Já a má formulação programática do tema das nacionalizações, bem como a carga controversa que este ainda tem devido ao ocorrido no PREC, pode ter amedrontado algum eleitorado ainda indeciso. No geral, porém, o premiê pode ter ganho em termos de ofensiva, mas perdeu em termos argumentativos e de exposição do seu programa. Embora tenha sido o debate mais animado, não foi o mais esclarecedor.
E os comentadores pós-debate das tv's (SICN e RTPN), já por hábito predominantemente de direita, voltaram a sê-lo, o que se torna ainda mais ridículo sendo este um debate supostamente decisivo à esquerda, tal como bem relembram Bruno Sena Martins e Daniel Oliveira.
4 comments:
É sintomático que Sócrates se tenha limitado quase só ao programa eleitoral do BE...Para além disso, apenas o velho papão da esquerda radical, com as deduções fiscais em pano de fundo.
Sem dúvida que tal postura (do nosso pm) acabou por se traduzir em vantagem para Louçã...não obstante os tais comentadores encartados que pululam pela Sic Notícias.
O Sócrates venceu nitidamente o debate com o Louçã naquele que foi o melhor frente a frente até agora, demonstrando que o verdadeiro debate só pode ser feito à esquerda. Fora de qualquer partidarismo, venceu porque fez algo a que o Louçã não está habituado – ser desviado da esfera de quem critica, o acusador, para passar a ser o inquirido. No entanto, a defesa da gratuitidade da educação e da saúde incarna a melhor medida de um verdadeiro Estado Social; não obstante o investimento público, ancorado num Estado regulador, ser mais “fiável” do que a nacionalização de todos os sectores estratégicos. Mas o Louçã não conseguiu explicar com clareza, enterrou-se na “economia dos casos pontuais” e o Sócrates venceu-o. Algo raro, mas pelos vistos possível. É óbvio que interessa à direita que o Louçã tire votos ao Sócrates, mas começa a tornar-se nítido de que por mais freeports e manuelas Guedes ou Leites – com esta última a enterrar-se por completo na defesa do Regime Democrático da Madeira e a demonstrar (como se isso fosse novidade) a sua natureza – o Sócrates não só vencerá as próximas eleições como não é de excluir uma nova maioria.
Luís Marvão,
concordo consigo quando se refere às folhas fluorescentes de Sócrates e ao papão do comunismo, agora recauchutado na forma de papão das deduções fiscais, o que deve dar qualquer coisa como um primo do Monstro das bolachas dos Marretas.
Quanto à vantagem para Louçã, aí não sei, acho que cada um levou a água ao seu moinho, embora o tom agressivo e deselegante de Sócrates seja dificilmente compaginável (adoro esta palavra) com uma urbanidade mínima. É a minha opinião. Agora, cabe a cada cidadão avaliar aquilo que considera indispensável na intervenção política.
Raf Sandor,
para quem se apresenta apartidário, o desenlace final da maioria absoluta parece ligeiramente deslocado, mas isso sou eu e mais uns quantos cépticos desmancha-prazeres.
É um cenário possível, no reino dos cenários, claro, mas pelo que me tenha apercebido não tem sido falado de há uns meses para cá, parece que a partir duma coisa que dá pelo nome de eleições europeias.
Quanto aos pontos da sua análise, destaco os seguintes:
1) «o verdadeiro debate só pode ser feito à esquerda»: os debates, quando feitos com argumentos e com respeito pelo adversário, são sempre úteis, independentemente do posicionamento no hemiciclo parlamentar das partes em contenda.
2) «a defesa da gratuitidade da educação e da saúde incarna a melhor medida de um verdadeiro Estado Social»: então e o PS quanto a isto? Orelhas moucas ou distração momentânea?
3) Louça “enterrou-se na economia dos casos pontuais”: parece que ainda veio à superfície, pelo menos ouvi-o falar das deduções, das nacionalizações, do desemprego, etc..
Enviar um comentário