Lavagante. Encontro desabitado. Assim se intitula o texto inédito de José Cardoso Pires que abre a colecção «Mil Horas de Leitura» das Edições Nelson de Matos. Um excerto da obra foi publicado em Dezembro de 1963 na revista O Tempo e o Modo, com uma nota indicando-o como um capítulo do próximo romance do autor. A publicação do texto em livro, 45 anos depois, excede as expectativas. Era de esperar uma escrita com a qualidade e as marcas do estilo enxuto, preciso, denso de Cardoso Pires. Mas não surpreenderia que se um autor tão consagrado em vida não chegasse a publicar uma obra fosse por a considerar inacabada. O leitor teria portanto acesso a uma narrativa fragmentada, a episódios de ligação discutível, a uma história abruptamente interrompida. Não é o caso: estamos perante uma história contada em catorze pequenos capítulos, encadeados de modo a saltar-se rapidamente do fim de um para o seguinte. Uma revisão escrupulosa deu origem a apenas três notas o que, num livro de 89 páginas, é insignificante.
Podemos especular por que é que o autor não se decidiu a publicar o livro em vida: porque o concebeu como romance e saiu-lhe um texto demasiado curto; por causa de eventuais coincidências entre ficção e vida real (hipótese induzida pelo virtuosismo do autor em “imitar a vida”); por as alusões a acontecimentos que parecem ser a crise académica de 62 implicariam a apreensão certa do livro na década de 60 e tornavam-no desactualizado após o 25 de Abril. A certeza é que estamos perante uma história à qual poderá ter faltado uma última revisão, mas não um desfecho.
Os sinais de um tempo muito particular da História portuguesa caracterizam, situam as personagens e o enredo, sem as fechar no passado, pois é da natureza humana que aqui se trata, tratando-a com técnicas narrativas sofisticadas e com uma das mais antigas artes do mundo: a de contar histórias, melhor, a de contar fábulas. O lavagante alimenta o safio na toca até ficar tão gordo que já não consegue sair e se torna presa das suas garras afiadas. E por isso torna-se arquétipo de um perfil humano, como o delfim, o dinossauro excelentíssimo, o sapo, o galo. Mas o homem não é apenas um animal, e por isso é mais animalesco do que os bichos, pois faz por perversidade o que num animal é apenas instinto: «Neste caso foi o safio que se libertou pela mão do lavagante. Questão de táctica, pura questão de táctica. Para ganhar uma presa é necessário às vezes soltar a outra. Todos os bichos sabem isso, e o lavagante também» (1).
(1) José Cardoso Pires, Lavagante. Encontro Desabitado, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008, p. 83.
Podemos especular por que é que o autor não se decidiu a publicar o livro em vida: porque o concebeu como romance e saiu-lhe um texto demasiado curto; por causa de eventuais coincidências entre ficção e vida real (hipótese induzida pelo virtuosismo do autor em “imitar a vida”); por as alusões a acontecimentos que parecem ser a crise académica de 62 implicariam a apreensão certa do livro na década de 60 e tornavam-no desactualizado após o 25 de Abril. A certeza é que estamos perante uma história à qual poderá ter faltado uma última revisão, mas não um desfecho.
Os sinais de um tempo muito particular da História portuguesa caracterizam, situam as personagens e o enredo, sem as fechar no passado, pois é da natureza humana que aqui se trata, tratando-a com técnicas narrativas sofisticadas e com uma das mais antigas artes do mundo: a de contar histórias, melhor, a de contar fábulas. O lavagante alimenta o safio na toca até ficar tão gordo que já não consegue sair e se torna presa das suas garras afiadas. E por isso torna-se arquétipo de um perfil humano, como o delfim, o dinossauro excelentíssimo, o sapo, o galo. Mas o homem não é apenas um animal, e por isso é mais animalesco do que os bichos, pois faz por perversidade o que num animal é apenas instinto: «Neste caso foi o safio que se libertou pela mão do lavagante. Questão de táctica, pura questão de táctica. Para ganhar uma presa é necessário às vezes soltar a outra. Todos os bichos sabem isso, e o lavagante também» (1).
(1) José Cardoso Pires, Lavagante. Encontro Desabitado, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008, p. 83.
2 comments:
Grande gancho, João Miguel, sê bem-vindo!
O Cardoso Pires é um dos meus autores preferidos. Gostei muito do Alexandra Alpha e do Lisboa, livro de bordo, bem como das crónicas dele no Público, a maioria também ecos da sua mocidade lisboeta. Quanto a O delfim, pareceu-me um livro difícil quando o li, ainda que importante, naquela mimetização da degenerescência final da ditadura.
Continuação de boas postas!!
Cá estou. Mais um peão neste blogue. Espero que a minha inspiração esteja à altura das expectativas.
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