terça-feira, 19 de junho de 2007

Estado "social-democrata" vs. "corporativo"

Substituam "França" por "Portugal" na maioria dos locais e tirem algumas conclusões.
Traduzido do livro de que falei aqui (p.56-7).

«Em França, a esquerda recusa a ideia que há desigualdade entre os empregos públicos e os empregos privados. A ideia de que a sobreprotecção de uns produz desigualdades em detrimento dos segundos é refutada em nome da recusa do nivelamento por baixo. Na Dinamarca, tal dicotomia é considerada como inaceitável porque profundamente injusta. Uma das características do modelo dinamarquês é de assentar sobre o princípio da continuidade das condições de emprego e de trabalho entre o sector público e o sector privado. Não apenas a função pública é mais limitada (4% dos assalariados contra 30% em França), mas tudo é feito para aproximar o funcionamento da função pública do do sector privado (...) Para além disso, a correspondência entre a função e o estatuto (...) não existe no sistema dinamarquês, onde apenas uma reduzida minoria de funcionários beneficia de um emprego protegido. A ideia de que o Estado deve dispor de um grupo de funcionários amplo e protegido para assegurar as suas funções centrais é totalmente estranho à cultura política de um país onde a grandeza do Estado não faz qualquer sentido. Porque não queremos renunciar aos estatutos, mas dado que não estamos em condições de os generalizar, em França, os trabalhadores que beneficiam de um estatuto e outros que a ele não têm acesso são capazes de exercer a mesma função. Este tipo de situação seria simplesmente inaceitável num país escandinavo, dado que isso simbolisaria a desigualdade construída não pelo mercado mas pelo Estado. A regra é por isso aquela do contrato único para todos os empregos, incluindo os públicos. (...) O modelo dinamarquês (...) é ao mesmo tempo muito liberal e muito protector, sendo que o conteúdo desta protecção é muito diferente daquele que atribuimos em França. [Na Dinamarca] protege-se para facilitar e mudança e não para a conter

Nota: na Dinamarca, as desigualdades sócio-económicas e escolares são mais baixas, o desemprego mais reduzido, o imposto sobre o rendimento muito mais elevado, os níveis de protecção social mais altos, os indicadores de desenvolvimento social e de capital social superiores, e o PIB per capita mais elevado do que na França.

12 comments:

Zèd disse...

De acordo, mas há aqui duas questões: a dimensão do estado, outra a desigualdade entre funcionários do sector público e do sector privado. Quanto à primeira, é desejável (digo eu) a redução do peso do estado. Quanto à segunda tenho uma dúvida: deve ser o sector público a aproximar-se do sector privado, ou deve ser o contrário? No sector público há por exemplo menos precaridade do que no privado, ela deve aumentar no público ou diminuir no privado?

Daniel Melo disse...

Aproveitando a boleia do Zèd pergunto: e, então, quanto às gritantes assimetrias salariais (e de regalias) existentes no interior do próprio sector público, há alguma coisa a dizer?
Atenção que não estou apenas a pensar em comparação com os gestores das empresas públicas e similares, mas dentro de qualquer simples organismo do Estado. Há funcionários públicos que ganham mal (independentemente do trabalho que desempenhem), e outros que têm cartões de crédito, telemóveis, motoristas, bónus, horas extras, etc.
E, depois, há outra questão: é sabido que por cá o funcionalismo é mais bem pago, mas há quem argumente que tal se deve ao facto dos seus funcionários terem maiores qualificações. Como é que se resolve este nó górdio? Exportando-os para um sector privado que, em regra, foge dos trabalhadores mais qualificados porque isso implica ter que pagar melhor?
Será que atacar apenas dum lado sem atacar dos outros lados é faz sentido?

Pedro Viana disse...

Nota à nota: na Dinamarca existem menos horas de Sol; não tem montanhas; a altura média é maior; são maioritariamente protestantes; faz fronteira com a Alemanha; etc. Qual é o propósito desta "nota à nota"? Chamar a atenção para o facto tão simples e óbvio que é o facto de Portugal não ser, literalmente, a Dinamarca. Ou seja, as condições sociais, culturais, económicas, políticas, em Portugal não são as mesmas que na Dinamarca. Portanto, elevar a Dinamarca a modelo a copiar cegamente é erro que nem os próprios dinamarqueses aconselham a Portugal. Se o Paul Nyrup Rasmussen percebe isso, porque não o Hugo?...

Por exemplo, será que na Dinamarca é comum haver favorecimentos (e desfavorecimentos...) políticos na administração pública, como acontece aqui na nossa terra tão amiga do compadrio? Agora imaginem que os nomeados políticos da administração pública podiam despedir a bel-prazer, ou não renovar contratos a bel-prazer... que regabofe não seria! Fez greve?! Tem o cartão do partido errado?!....

Hugo Mendes disse...

Zèd:

"No sector público há por exemplo menos precaridade do que no privado, ela deve aumentar no público ou diminuir no privado?"

As coisas devem ser vistas no seu conjunto. Primeiro, há uma questão de justiça. A esquerda é pela justiça social, e pelo "trabalho igual, salário igual", por isso eu não vejo como podem ser, à luz deste princípio, defendidas tantas assimetrias entre o sector público e privado.
Segundo, a esquerda é pela redistribuição financeira e dos riscos. Ora, o argumento do "nivelamento por baixo" não me convence, e dou um exemplo: outro dia, numa qualquer caixa de comentários, e numa discussão semelhante a esta, alguém perguntava jocosamente mais ou menos assim: "se formos todos muito pobres, e se alguns tiverem comida, vamos tirar aos que têm, nivelando por baixo?". A pergunta estava feita de forma a que a resposta fosse "não", mas para mim a resposta é obviamente "SIM": se a comida é pouca, e se somos todos iguais, então toca a redistribuir a comida por todos! Há uns que vão comer menos? Há - é o preço para que comam todos. O exemplo pode parecer trágico-cómico e totalmente longínquo da discussão, mas não é. Os riscos são para redistribuir, reduzindo aqueles que têm menos e fazendo subir os que estão mais em baixo. Se não fizermos, criamos dualizaçoes fortes, e, claro, reproduzimos as desigualdades entre os que não querem ser nivelados por baixo, e os que, cá fora, sofrem o preço disso mesmo. E atenção: estas desigualdades são criadas/reproduzidas pelo Estado, não pelo mercado (que é nestas coisas o suspeito do costume).
Mas há mais: o nivelamento por baixo nao ocorre assim como se pensa: o dinheiro que não é gasto nos salários dos funcionarios púlico é gasto na educação, na saude, no subsidio de desemprego, na formação profissional, etc. Nestes domínios, a Dinamarca gasta mais, por vezes muito mais do que a França, precisamente porque o dinheiro não está preso aos salários. Ou seja, este dinheiro não desaparece: é reinvestido em estruturas e serviços universais que beneficiam todos: funcionários públicos e trabalhadores do sector privado. Só faz sentido falar em nivelamento se esquecermos esta outra dimensão.

Para resumir, das duas uma: ou pertencemos à "mesma sociedade" e arranjamos formas de partir o bolo dos dinheiros e dos riscos de forma minimamente equitativa, mesmo que isso signifique retirar a alguns para dar aos outros que têm menos (eu pensei que esta "lógica Robin Hood" fosse óbvia para a esquerda, mas parece que não (e não me refiro a ti Zèd, como imaginas a questão que levantaste surge muitas vezes, e estou a dar uma resposta geral, não dirigida à tua interpelação :)); ou então decidimos proteger os que já estão protegidos à espera que os outros, um dia, também apanhem uma "boleia" que os leve para cima. Simplesmente, essa onda não vem, porque não há hipótese de alinhar por cima todos os estatutos e todas as protecções. Temos que escolher o queremos: alimentar as desigualdades entre o Estado e o mercado e dentro do Estado (como salienta o Daniel), ou construir uma sociedade onde não ha estatutos de excepção, criando condições para haver mais crescimento económico e, a prazo, mais riqueza para redistribuir. A escolha pode doer, mas a política é precisamente feita de escolhas.

Daniel:
"quanto às gritantes assimetrias salariais (e de regalias) existentes no interior do próprio sector público, há alguma coisa a dizer (...) Há funcionários públicos que ganham mal (independentemente do trabalho que desempenhem), e outros que têm cartões de crédito, telemóveis, motoristas, bónus, horas extras, etc."

Há, claro. Estás-me a dar razão, esse é precisamente um dos pontos do argumento: precisamos de redistribuir (os riscos e algum dinheiro) não apenas do sector público para o sector privado, mas também no interior do sector público.

"Como é que se resolve este nó górdio?"
Privatizar o que não está a fazer nada senão a consumir recursos ao Estado e a alimentar a corrupção não era um mau princípio.

"Exportando-os para um sector privado que, em regra, foge dos trabalhadores mais qualificados porque isso implica ter que pagar melhor?"
Isso vai mudar, porque a economia está a modernizar-se. Pode demorar mais ou menos, mas vai acontecer. E uma das formas é colocá-lo sobre pressão, obrigando a racionalizar as práticas.

"Será que atacar apenas dum lado sem atacar dos outros lados é faz sentido?".

Qual é o outro lado que tens em mente?


Caro Pedro: obrigado pela recordação lapalisseana, mas a sua crítica falha o alvo. As comparações internacionais não servem para enxertar medidas
nem copiar modelos (e quem as lê como tal lê-as mal, tornando-as estéreis a priori). Servem para ajudar a pensar: pensar na diversidade de conceitos e das realidade, pensar na limitação dos discursos de justificação de sempre, pensar no que pode ser feito de diferente, etc.. É que nem 8 nem 80: nem estamos condenados ao isolacionismo nem podemos copiar a-criticamente o resto do mundo civilizado. Entre os dois pólos há muito que aprender e pensar. E sobretudo pensar de forma não dogmática e não mimética, que é algo que eu encontro com dificuldade à esquerda. E depois há quem se queixe do "pensamento único": pudera! :)
E já agora: a história muda-se com inteligência, vontade, e as medidas certas. Ou estamos entregues ao determinismo? Se sim, então podemos fechar a loja, e substituir a reflexão e a acção política por qualquer outra coisa. A Dinamarca - ou qualquer outro país - não "nasceu" assim: foi moldada pela política (ou outros factores que não controlamos, naturalmente, alguns que aliás o Pedro elenca) ao longo das décadas. A questão hoje é se queremos pensar e tomar as políticas certas ou as políticas erradas - ou não tomar medidas nenhumas (que é entre nós sempre a possibilidade mais forte).

Zèd disse...

Hugo,
Concordo globalmente com o que dizes, a minha pergunta foi mesmo só para lançar o debate. Mas não gosto da ideia do nivelar por baixo, quando muito nivelar pelo meio. Deve-se, na minha opinião, sempre dar prioridade à melhoria de quem está em piores condições (neste caso os trabalhadores do privado) mais do que diminuir as regalias de quem é "priveligiado". Mas claro que quando não dá para esticar mais a manta sem destapar do outro lado, tem que se tirar a uns para dar a outros. Interessa é saber se isto é realmente necessário, imperativo, para se acabar com as desigualdades. Não será possível "obrigar" o sector privado a dar melhores condições aos trabalhadores? Saber quando é possível fazer uma coisa ou outra é uma questão técnica e deve ser debatida também a esse nível. Mesmo sendo necessário "tocar" nos previlégios dos mais favorecidos - o que, repito, em princípio não sou contra, se for necessário - deve ser o estritamente necessário para redistribuir. Contrapondo o exemplo do Hugo (do não haver comida para todos) eu gosto de pensar no exemplo das barracas. Quando há pessoas a viver em barracas, qual é a solução para o problema? Pôr toda a gente a viver em barracas para acabar com as desigualdades? Não, a solução é habitação social, ou qualquer política que permita A TODOS o acesso à habitação. Pode passar por cobrar impostos a quem tem boas casas para pagar a habitação social, mas não por pô-los a viver em piores condições.

Caro Pedro Viana, faço minhas as palavras do Hugo. Devemos portanto resignar-nos à condição de país atrasadinho? Somos assim, seremos sempre assim e não há nada a fazer?

Hugo Mendes disse...

"Mas não gosto da ideia do nivelar por baixo, quando muito nivelar pelo meio."

Não se trata, de nivelar por baixo, mas de redistribuir recursos para todos, permitindo aumentar os fundos passíveis de serem investidos na educação, investigação, saude, protecção social. Isto já para não entrar nos argumentos de justiça.

"Deve-se, na minha opinião, sempre dar prioridade à melhoria de quem está em piores condições (neste caso os trabalhadores do privado) mais do que diminuir as regalias de quem é "priveligiado".

De acordo no princípio. Mas todo o problema empírico está aqui: o bolo é, num dado momento, limitado. Não podemos fingir que não é. E se é limitado, temos que saber como partimos os fatias.
Para dar um exemplo do que se passa em França no que toca à lei das 35 horas. Isso foi o tipo de medida que privilegiou os que já têm melhores condições, na esperança que um dia fosse generalizada aos trabalhadores desqualificados. Ora, como nunca vai ser, porque isso teria um impacto fortemente negativo na economia, acabámos de criar mais uma desigualdade, a somar Às outras existentes. Conclusão: como não podemos por toda a gente nas 35 horas, a única solução decente é retirar a lei.

"Interessa é saber se isto é realmente necessário, imperativo, para se acabar com as desigualdades. Não será possível "obrigar" o sector privado a dar melhores condições aos trabalhadores?"

Podes fazer algumas coisas, a maioria delas com riscos grandes. Podes aumentar o salário mínimo - mas com cuiidado porque senão estás a aumentar a probabilidade do desemprego subir. Podes introduzir outras leis protectoras dos trabalhadores, mas num mundo tão precário como é o da grande maioria do sector privado em Portugal, as boas intenções, se não forem muito bem monitorizadas, podem criar ainda mais problemas. Esse voluntarismo estatal tem limites - e repito: não estou a entrar com questões de justiça, porque é sector privado que paga os impostos que pagam os salários ao público... -, e a melhor solução é arranjar fundo financeiro para melhorar e alargar serviços públicos e outras transferências sociais que beneficiem o maior número possível. O dinheiro tem de vir de algum lado, e com a dívida que temos...

Uma palavra sobre os "privilegiados" e os "privilégios". Esta é uma palavra que eu não usei nem nunca uso, porque se presta à demagogia, mesmo sabendo que não estás a fazer aqui. A palavra que eu uso é a que é corrente na literatura internacional sobre estas coisas, e que fala de um sector protegido. O sector público num país como Portugal é um "sector protegido". Isto é objectivo. Não preciso de fazer juizos de valor sobre se são isto ou aquilo ou etc.. As pessoas ficam zangadas, dizem que as estou a chamar "privilegiados". Eu limito-me a usar uma definição absolutamente consensual a nível académico, e não há motivo para ninguém se zangar: deviam era, pelo menos, na maioria das situações, admitir o óbvio.

"Não, a solução é habitação social, ou qualquer política que permita A TODOS o acesso à habitação."

De acordo: é preciso é haver dinheiro.

"Pode passar por cobrar impostos a quem tem boas casas para pagar a habitação social, mas não por pô-los a viver em piores condições".

"Cobrar impostos" já é pô-los a viver em "condições piores", já é redistribuir para baixo, e já cumpre o objectivo (mesmo que parcialmente - depois era uma questão técnica de saber quanto se pagava, etc.).

abraço

Pedro Viana disse...

Aqui e ali:

"A esquerda é pela justiça social, e pelo "trabalho igual, salário igual", por isso eu não vejo como podem ser, à luz deste princípio, defendidas tantas assimetrias entre o sector público e privado."

Um trabalho no sector público não é necessariamente o mesmo que no sector privado, mesmo que "pareça" o mesmo. Exemplos há muitos, mas vou dar um claro: um segurança privado e um polícia de rua cumprem essencialmente a mesma função. Devem por isso ter exactamente as mesmas regalias, direitos e deveres? Pode um polícia ser despedido tão facilmente como um segurança privado ou fazer greve como um segurança privado?

"Os riscos são para redistribuir, reduzindo aqueles que têm menos e fazendo subir os que estão mais em baixo."

Em que é que uma menor segurança de emprego no sector público beneficia os empregados no sector privado?! Prejuízo eu consigo ver: uma sociedade em que ainda mais prevalece o arbitrário e o compadrio; onde um trabalhador privado deixa de poder ver a adminstração pública como imparcial, mas sim sob o jugo do poder poliítico-económico do dia.

"Ou seja, este dinheiro não desaparece: é reinvestido em estruturas e serviços universais que beneficiam todos: funcionários públicos e trabalhadores do sector privado. Só faz sentido falar em nivelamento se esquecermos esta outra dimensão."

E o Hugo acha que se o peso do sector público na economia diminuisse em Portugal, o dinheiro assim libertado iria ser de algum modo redistribuído?! Mas, vive exactamente em que país ideal?...

"ou então decidimos proteger os que já estão protegidos à espera que os outros, um dia, também apanhem uma "boleia" que os leve para cima."

Hugo, porquê, porque é que os funcionários da função pública em qualquer país do mundo têm um estatuto, principalmente a nível de protecção laboral, não necessariamente a nível salarial, diferentes dos trabalhadores do sector privado? Não gostaria de esclarecer os seus leitores?

"criando condições para haver mais crescimento económico e, a prazo, mais riqueza para redistribuir. A escolha pode doer, mas a política é precisamente feita de escolhas."

Há quem argumente que o trabalho escravo aumenta imenso a produtividade, haveria imensa riqueza para redistribuir.... o problema, Hugo, é que o pragmatismo deve ter limites. É aceitável aumentar a taxa de emprego em 1% se isso tiver como consequência a criação de um ambiente de trabalho em que os empregados ficam completamente à mercê do patrão, prestando-se a todo o tipo de humilhações para não irem para a rua? O Hugo aprecia muito falar de estatísticas e números, mas nunca o vejo falar de princípios: o que é ou não aceitável para si. Sabe, uma sociedade não contém apenas uma vertente económica. É preciso ter em conta de que modo decisões aparentemente de carácter económico afectam as vertentes sociais, políticas, etc.

"A Dinamarca - ou qualquer outro país - não "nasceu" assim: foi moldada pela política (ou outros factores que não controlamos, naturalmente, alguns que aliás o Pedro elenca) ao longo das décadas."

Que pena não ter dito isso no seu post!... É que quem o ler fica com a ideia que aquilo que a Dinamarca tem nós também o podíamos ter sendo só preciso um pouco de "vontade"...

"A questão hoje é se queremos pensar e tomar as políticas certas ou as políticas erradas"

E isso faz-se pensando no que se pretende para a sociedade portuguesa, e de que modo se podem atingir esses objectivos dadas as características actuais da sociedade portuguesa.

"Caro Pedro Viana, faço minhas as palavras do Hugo. Devemos portanto resignar-nos à condição de país atrasadinho? Somos assim, seremos sempre assim e não há nada a fazer?"

Quem disse isso?! O meu ponto é: certas políticas públicas em certos países têm certas consequências não apenas pelas características dessas políticas mas também pelas características socio-económico-culturais desses países. As mesmas políticas aplicadas noutros países não terão necessariamente as mesmas consequências. Quem é determinista, e dado ao fado, é quem acha, qual estudante de economia recém-licenciado, que as consequências de políticas públicas são indendentes do contexto socio-económico-cultural.

"Para dar um exemplo do que se passa em França no que toca à lei das 35 horas. Isso foi o tipo de medida que privilegiou os que já têm melhores condições, na esperança que um dia fosse generalizada aos trabalhadores desqualificados(...)Conclusão: como não podemos por toda a gente nas 35 horas, a única solução decente é retirar a lei."

Certo. Suponho então que o Hugo é contra a limitação das horas de trabalho... pois se isso impende os mais pobres de se matarem a trabalhar para ganharem mais. Pergunto-me: alguém que não partilha ideias e medidas de esquerda (e a regra das 35 horas em França até faz quase o pleno no PSF, ou seja no centro-esquerda) pode-se considerar de esquerda? Alguém que parece concordar com a maioria da política económica que Sarkozy pretende implementar é de Esquerda?!...

"não estou a entrar com questões de justiça, porque é sector privado que paga os impostos que pagam os salários ao público..."

Certo. Os funcionários públicos são uns chulos que vivem à custa da economia privada. Insisto: onde é que ouvem mais este tipo de afirmação, será mesmo na Esquerda?...

Pergunto ao Hugo: e o sector privado seria tão produtivo se não existisse funcionalismo público? Se todas as funções do Estado fossem privadas?... Porque não?...

"O sector público num país como Portugal é um "sector protegido". Isto é objectivo."

E o mesmo não se passa em qualquer outro país no mundo?

Hugo Mendes disse...

Caro Pedro, ponto por ponto entao:

"Um trabalho no sector público não é necessariamente o mesmo que no sector privado, mesmo que "pareça" o mesmo."

Não tem que ser necessariamente o mesmo para ter condições semelhantes. Basta isso para alinhar algumas das condições, não necessitam de ser todas. Mais uma vez, nem 8 nem 80.

"Pode um polícia ser despedido tão facilmente como um segurança privado ou fazer greve como um segurança privado?"

Esse exemplo é capcioso. A polícia é normalmente visto como das funções centrais do Estado. Até um neo-liberal concorda com isso.

"Em que é que uma menor segurança de emprego no sector público beneficia os empregados no sector privado?!"

Para além das questões de justiça, torna o mercado mais fluido. Quando este não é fluido, quem não tem emprego está numa situação de potencial exclusão, dado que é dificil criar novos empregos, e quem está de "fora" tende a ficar de "fora" (já para não dizer que os que ocupam os existentes dificilmente de la saem, independentemente da sua qualidade, competencia, produtividade, etc.).

"Há quem argumente que o trabalho escravo aumenta imenso a produtividade, haveria imensa riqueza para redistribuir"

Pedro, deixemo-nos de demagogia, ok? Ninguém falou em escravatura nem em situações afins. E, já agora, quem defende a escravatura em função da sua suposta eficácia, está empiricamente errado.

"O Hugo aprecia muito falar de estatísticas e números, mas nunca o vejo falar de princípios: o que é ou não aceitável para si."

Está enganado. Todo o meu post parte de um princípio, Pedro. Eu explicito: você acha que os trabalhadores que produzem a riqueza no sector privado devem ganhar menos (entre outras condições, etc.) que os trabalhadores do sector público? Por uma questão de JUSTIÇA, eu acho que não. É por isso que nivelamentos relativos (e isto acerta-se empiricamente, contextualmente) são mais do que justos e necessários. Este é um princípio que a esquerda NUNCA discute, et pour cause...É como se os impostos caissem do céu...

Quanto às questões das relações laborais: isso é importante, sem dúvida alguma. E está completamente enganado se não presto atenção a isso. Simplesmente, as pessoas nestas coisas gostam de ser fetichistas da lei. Acham que é por ter leis muito fortes contra o despedimento e o abuso de pessoas que as pessoas não vao ser despedidas e não vao ser abusadas. Isto é uma falácia completa. Não só elas acabam por ser despedidas se estritamente necessário - por vezes indo a empresa ao fundo por incapacidade de gerir a sua mão-de-obra - como, no limite, não são sequer contratadas, porque o empresário não se quer meter em sarilhos futuros. E se possível, contrata uma máquina para fazer o mesmo serviço - e temos o que se passa hoje, que é o fenómeno de "jobless growth". As relações laborais em Portugal, como aliás em França, têm que melhorar muito, e não há soluções de varinha mágica. Não há "shortcut" para nos tornarmos a Dinamarca de repente. Isso não invalida minimamente que olhemos para as boas práticas e pensemos seriamente em como reformar o sistema de relações laborais. E um bom princípio, à esquerda, é acabar com o discurso que o capital é para "combater". Isso não leva, nos tempos que correm, a lado nenhum, como não levou nunca. Os países europeus que são hoje mais ricos e têm uma protecção social mais generosa não o conseguiram com unm sindicalismo antagonista e conflitual. Conseguiram através da negociação inteligente. Para isso, precisaram de um patronato igualmente inteligente. Precisamos de construir os dois, e é este o desafio.

"É que quem o ler fica com a ideia que aquilo que a Dinamarca tem nós também o podíamos ter sendo só preciso um pouco de "vontade"..."
"Quem é determinista, e dado ao fado, é quem acha, qual estudante de economia recém-licenciado, que as consequências de políticas públicas são indendentes do contexto socio-económico-cultural."

Não, essa é a sua leitura. É legítima - mas é também precipitada. Acompanhe as coisas que eu vou escrevendo e depois voltamos a falar.

"Suponho então que o Hugo é contra a limitação das horas de trabalho... pois se isso impende os mais pobres de se matarem a trabalhar para ganharem mais.
Pergunto-me: alguém que não partilha ideias e medidas de esquerda (e a regra das 35 horas em França até faz quase o pleno no PSF, ou seja no centro-esquerda) pode-se considerar de esquerda? Alguém que parece concordar com a maioria da política económica que Sarkozy pretende implementar é de Esquerda?!..."

Passando a demagogia juvenil de "todos se matarem a todos", a explicação para as 35 horas, Pedro, é fácil, até mesmo para um estudante de ciência política recém-licenciado: as 35 horas são uma medida de classe média e média-alta de função pública, que é o grosso do eleitorado do PSF. É tão simples quanto isto - e é por isso que este eleitorado agradeceu. Já agora, a Ségolène queria rever a aplicação das 35 horas. Quanto à Sarkozy, o seu programa em economia está longe de ser economicamente liberal, tirando o corte de alguns impostos. O alinhamentos das reformas (ou seja, o fim dos estatutos sociais) que defende (faz algum sentido o condutor do metropolitano poder reformar-se aos 52 anos, como em França?) é, quanto a mim, uma medida necessária, e que a esquerda devia subscrever. O programa económico de Sarkozy tem várias coisas interessantes (com elementos proteccionistas, facilmente explicáveis: ele teve que roubar algum eleitorado a Le Pen, alias ex-PC), e teve a contribuição de inúmeros economistas que estão longe de ser neo-liberais (como Olivier Blanchard, do MIT): são, simplesmente, economistas que deixaram - et pour cause - de acreditar na "inteligência" (com muitas aspas) económica do PSF para fazer mudanças na economia francesa.

"Certo. Os funcionários públicos são uns chulos que vivem à custa da economia privada. Insisto: onde é que ouvem mais este tipo de afirmação, será mesmo na Esquerda?..."

Eu não disse isto. Será que as pessoas não podem olhar as coisas de frente sem fazer um bocado de demagogia juvenil? É que assim não saimos da cepa torta. Sim, os funcionários públicos são pagos com os impostos que são extraidos ao sector privado, cuja riqueza aliás o Estado também ajuda a criar, como é a sua obrigação: o Estado deve ser "produtor", não "predador". É por isso que o sector provado paga impostos, e também por motivos filosofico-políticos de "solidariedade", de "responsabilidade" para com a sociedade. Podemos defender este princípio de esquerda e assumir, ao mesmo tempo, perfeitamente que o Estado não pode gastar estes impostos da forma que lhe apetecer e que sim, em certas circunstâncias, o Estado pode ser "chulo". Basta ver o que acontece em inúmeros países da América Latina e de Africa: o Estado pode ser perfeitamente cleptocrata. Não é preciso ser de direita para ver isto; basta não fazer como a avestruz, que mete a cabeça debaixo da areia. Portanto, o (centro-)esquerda, sobretudo o que trabalha para o sector público, tem que de ter a noção que: 1) as funções que cumpre, importantes para a economia e para a sociedade (e que deve cumprir com qualidade e eficiencia), são pagas pelos impostos extraidos ao sector privado; 2) que se o Estado crescer demais ou nao for rigoroso nos seus gastos, vai ter que extrair ainda mais ao sector privado; 3) que, quando isto acontece, ameaça matar a galinha dos ovos de ouro, cria uma crise fiscal, e, a prazo, perde o eleitorado que fora seu para o sector privado: chama-se "tax revolt". Um dia a esquerda acorda e tem o neo-liberalismo à porta. Pudera.

"E o mesmo não se passa em qualquer outro país no mundo?"

Não. A Dinamarca é diferente de Portugal, por exemplo, que é diferente da India, que é diferente do Botswana. Se o Pedro quiser perceber o que está em discussão, é o NÍVEL de protecção: não é acabar com o Estado.

"e o sector privado seria tão produtivo se não existisse funcionalismo público? Se todas as funções do Estado fossem privadas?... Porque não?..."

Pedro, sejamos sérios: leu em algum lado que eu queria acabar com o Estado? Deixe-me devolver a pergunta e a indignação: porque é que as pessoas não podem ter uma discussão são substituir os argumentos pela histeria demagógica?

cumprimentos
Hugo

Pedro Viana disse...

"Basta isso para alinhar algumas das condições, não necessitam de ser todas. Mais uma vez, nem 8 nem 80."

Então, afinal algum "privilégio", alguma "desigualdade" público/privado sempre é aceitável? Quem o lê diria que não pensa assim...

"Esse exemplo é capcioso. A polícia é normalmente visto como das funções centrais do Estado. Até um neo-liberal concorda com isso."

Pois era exactamente aqui que eu queria chegar. O que são funções centrais do estado e que tipo de "privilégios" devem ter os trabalhadores que possuem essas funções? Poruqe quem lê o Hugo, conclui que para o Hugo deve ser tudo igual: servidores públicos, essenciais ou não, não devem ter "privilégios" relativamente ao sector privado.

""Em que é que uma menor segurança de emprego no sector público beneficia os empregados no sector privado?!" - Para além das questões de justiça, torna o mercado mais fluido."

Mas que justiça?! O Estado deve ser visto como um qualquer outro empregador. Deve poder oferecer as condições que acha melhores para atrair o tipo de empregados que pretende. O Hugo não admite que numa empresa todos tenham contratos a 6 meses e noutra contratos a 10 anos (com indemnização total em caso de despedimento)?! Porque é que o Estado não pode oferecer, como qualquer empregador, seja porque razões for, condições "especiais" os seus empregados?...

"Quando este não é fluido, quem não tem emprego está numa situação de potencial exclusão, dado que é dificil criar novos empregos, e quem está de "fora" tende a ficar de "fora""

Esta afirmação não tem nada a ver com a função pública, mas sim a "rigidez" da lei geral laboral.

Pedro, deixemo-nos de demagogia, ok? Ninguém falou em escravatura nem em situações afins.

Entre a "liberdade" e a escravatura há uma infinidade de situações intermédias. Não é para mim nada claro quão importante é para o Hugo criar um clima em que as relações laborais estão o mais afastadas possíveis da situação extrema de escravatura.

"você acha que os trabalhadores que produzem a riqueza no sector privado devem ganhar menos (entre outras condições, etc.) que os trabalhadores do sector público? Por uma questão de JUSTIÇA, eu acho que não."

Não, não acho. Acho que devem ter uma protecção laboral maior do que os do sector privado. Até admito que em troca tenham salários um pouco inferiores (para a mesma "função"), como compensação. Quanto á JUSTICA... vide acima.

"Acham que é por ter leis muito fortes contra o despedimento e o abuso de pessoas que as pessoas não vao ser despedidas e não vao ser abusadas. Isto é uma falácia completa."

Nunca disse isso. Uma lei nunca acaba com dado comportamento, o máximo que consegue é dissuadi-lo. O que eu quero que o Hugo admita é que se tais leis não existissem, então o despedimento e o abuso dos empregados era ainda mais grave do que já é. E o Hugo não admite isso, apesar de saber que assim é, porque não quer admitir que aceita que um patrão humilhe os seus empregados em troca de "criar emprego".

"Passando a demagogia juvenil de "todos se matarem a todos", a explicação para as 35 horas, Pedro, é fácil, até mesmo para um estudante de ciência política recém-licenciado: as 35 horas são uma medida de classe média e média-alta de função pública"

Como disse, e o Hugo não negou, parece claro que para o Hugo a existência na lei dum limite ao número de horas que se pode trabalhar por semana (seja 35, 40, ou 50) é prejudicial a um trabalhador não-qualificado, "classe-baixa", e por isso devia ser abolido....

"Quanto à Sarkozy, o seu programa em economia está longe de ser economicamente liberal, tirando o corte de alguns impostos. (...) O programa económico de Sarkozy tem várias coisas interessantes (...) e teve a contribuição de inúmeros economistas que estão longe de ser neo-liberais (...)"

Tanta coisa só para dizer que afinal, pensando bem, o Hugo até concorda com a maioria do programa económico de Sarkozy?... Seja mais frontal e honesto para com os seus leitores.

"Sim, os funcionários públicos são pagos com os impostos que são extraidos ao sector privado, cuja riqueza aliás o Estado também ajuda a criar, como é a sua obrigação:"

Claro. Custa assim tanto escrever direito... quem faz demagogia é quem "conta apenas uma parte da história", literalmente induzindo em erro o leitor.

"o Estado deve ser "produtor"

Diria melhor: co-produtor. O Estado não tem necessariamente de produzir nada, por exemplo em termos industriais ou agrícolas. Alías, no paraíso neo-liberal, o Estado não produz mesmo literalmente nada.

"o Estado não pode gastar estes impostos da forma que lhe apetecer"

Claro. Todas as despesas devem ser plenamente justificadas. Isso não quer dizer que necessariamente sejam pequenas. Olhar para o peso percentual do sector público na economia e dizer: isto parece-me muito, vamos cortar tanto; é que é completamente irracional e movido pela cegueira ideológica.

"Portanto, o (centro-)esquerda, sobretudo o que trabalha para o sector público, tem que de ter a noção que(...)"

Claro. Mas o Hugo em algumas das suas afirmações parece partir do princípio que um Estado que gasta muito é mau, quando os seus exemplos (países nórdicos) até provam o contrário. Ou seja, eu acho que é perfeitamente razoável que o Estado se proponha obter ainda mais impostos para custear as suas despesas, desde que tal se justifique. Não sou eu que tenho fetiche por números, tipo, acima de tal % o peso dos impostos na economia é "brutal"... mesmo que haja países extremamente bem sucedidos onde esse peso é real...

"E o mesmo não se passa em qualquer outro país no mundo?"

Repito: o sector público em qualquer país do mundo tem ou não maior nível RELATIVO NO CONTEXTO DE CADA PAIS de protecção laboral que o sector privado? O Hugo não quer responder porquê?...

"Pedro, sejamos sérios: leu em algum lado que eu queria acabar com o Estado? Deixe-me devolver a pergunta e a indignação: porque é que as pessoas não podem ter uma discussão são substituir os argumentos pela histeria demagógica?"

Porque o Hugo vive de generalizacões, e portanto eu levo ao limite as suas generalizações. Não quer ser específico no que acha que deve ser o nível de protecção laboral do sector público ou as suas funções? Ok. Então não se chateie se as pessoas interpretarem as suas generalizações, tipo condições sector público = sector privado, como quiserem.

Hugo Mendes disse...

"O Hugo não admite que numa empresa todos tenham contratos a 6 meses e noutra contratos a 10 anos (com indemnização total em caso de despedimento)?! Porque é que o Estado não pode oferecer, como qualquer empregador, seja porque razões for, condições "especiais" os seus empregados?..."

Interessante, esta é uma lógica tipicamente de Estado-empresa. Como calcula, isto é COMPLETAMENTE diferente do Estado que temos hoje. Se eu tivesse defendido isto, imagino o que me teriam chamado.

"Esta afirmação não tem nada a ver com a função pública, mas sim a "rigidez" da lei geral laboral."

Claro: e se ela for muito diferente entre o privado e o público causa as dualizações que referi.

"Não é para mim nada claro quão importante é para o Hugo criar um clima em que as relações laborais estão o mais afastadas possíveis da situação extrema de escravatura."

Sim, tal e qual como na Dinamarca, onde o nível de capital social é dos mais elevados do mundo...por favor, é preciso má fé...O sindicalismo de massa, Pedro, é o que dá força aos trabalhadores sem criar dualizações entre eles, não é a lei apenas per si, quase sempre facilmente contornada e, no limite, gerando contextos de mercado negro: falou de situações de quase-escravatura, não foi? Aí as tem.

"Acho que devem ter uma protecção laboral maior do que os do sector privado. Até admito que em troca tenham salários um pouco inferiores (para a mesma "função"), como compensação."

Espantoso: não divergimos muito, então. Só não percebo qual o escândalo relativamente ao que escrevi desde o início.

"E o Hugo não admite isso, apesar de saber que assim é, porque não quer admitir que aceita que um patrão humilhe os seus empregados em troca de "criar emprego"."

Pedro, desculpe lá, mas não tem o monopólio do coração. Eu não sou contra as leis, sou contra as leis inúteis e que jogam contra as pessoas que deviam proteger. Isto parece-me bastante simples. Quanto à humilhação, não há nenhuma lei que a evite. Mas já que coloca as coisas assim, então deixe-me dizer isto: um sistema hiperegulado, onde o subsidio de desemprego é baixo e uma futura entrada no mercado de trabalho se um dia tiver que cair o desemprego difícil (ou seja, onde o desemprego de longa duração é uma praga) tem o efeito de amarrar precisamente os trabalhadores aos empregos onde ele são quotidianamente humilhados. Há vários estudos que mostram que o mercado de trabalho frances é aquele onde os trabalhadores são mais anxiogénicos relativamente ao desemprego. Serão eles paranóicos, tendo eles das leis de protecção laboral das mais fortes? Não: é absolutamente natural: eles têm medo de, se um dia perderem o emprego, não consigam voltar a ser contratados e tenham que ficar com um subsídio de desemprego miserável. E por isso aguentam todo o tipo de humilhações. E se quiser ver como esta questão é para mim absolutamente fundamental, veja o livro que eu destaquei anteontem no "Veu da Ignorancia2": http://veu-da-ignorancia2.blogspot.com/2007/06/le-capitalisme-dhritiers.html: "Le Capitalisme d'Héritiers" do Thomas Philippon, que trata precisamente da centralidade das relações laborais e da incapacidade da excessiva regulação para resolver os reais problemas - isto quando não os agrava.

"o Hugo até concorda com a maioria do programa económico de Sarkozy?... Seja mais frontal e honesto para com os seus leitores."

É engraçado isto: concordar que o Sarkozy não é um "diabo" e tem propostas que a esquerda devia subscrever é uma espécie de crime de lesa-majestade. Eu francamente não tenho paciencia para este sectarismo primário. E digo mais: pelo menos ele tem a coragem de acabar com as reformas dos estatutos especiais que francamente não percebo como é que a esquerda os defende (ou concorda com as reformas completas aos 52 quando toda a gente trabalha até mais tarde? Mais uma vez a questão da justiça...). Quanto ao resto, o seu programa económico pisca o olho aos ricos "à la Bush" e as suas reformas no mercado laboral são de esperar para ver. Pior do que aquilo já está, duvido que se possa fazer. Mas discordo do pagamento das horas extraodinarias, por exemplo, acho que não vai ajudar a criar emprego.
Como vê, Pedro, eu gosto de analisar os items um a um.

"Todas as despesas devem ser plenamente justificadas. Isso não quer dizer que necessariamente sejam pequenas. Olhar para o peso percentual do sector público na economia e dizer".

Esta a confundir Estado-empregador com Estado social. O primeiro não precisa de ser grande, precisamente para que o segundo seja maximizado. Quem me dera viver na Suécia, onde o Estado gasta perto de 60% do PIB

"Mas o Hugo em algumas das suas afirmações parece partir do princípio que um Estado que gasta muito é mau, quando os seus exemplos (países nórdicos) até provam o contrário. Ou seja, eu acho que é perfeitamente razoável que o Estado se proponha obter ainda mais impostos para custear as suas despesas, desde que tal se justifique. Não sou eu que tenho fetiche por números, tipo, acima de tal % o peso dos impostos na economia é "brutal"... mesmo que haja países extremamente bem sucedidos onde esse peso é real..."

"...O Hugo parece em algumas das suas afirmações...": mas oh Pedro, desculpe lá, mas voce leu MESMO o que escrevi? Já reparou que eu estava precisamente a defender a DINAMARCA, um estado de matriz SOCIA-DEMOCRATA, dos que gasta mais de 50% do PIB, etc.? Acho que perdeu completamente a ligação com a discussão inicial...Daqui a nada está-me a pôr a defender o Chile! As suas sobregeneralizações dão logicamente nisto: na mais completa tresleitura.

"o sector público em qualquer país do mundo tem ou não maior nível RELATIVO NO CONTEXTO DE CADA PAIS de protecção laboral que o sector privado? O Hugo não quer responder porquê?..."

Tem por vários motivos: um deles, perfeitamente justificado, que é pelo facto de o Estado desempenhar funções centrais e nobres, que variam de Estado para Estado. Outro motivo é porque os sindicatos, em alguns países, são mais fortes no sector público, e por isso fazem uma chantagem com o governo que nao conseguem fazer com o sector privado. É bastante simples. E, neste caso, podem facilmente surgir dualizações sem justificação que não seja a da maior capacidade para chantagear: o que não me parece uma justificação particulamente forte do ponto de vista normativo. Quando os governantes aceitam o negócio - como fez Cavaco Silva -, a prazo emergem problemas nas contas públicas. Quando estas dualizações se aprofundam e os paises entram em crise fiscal, o sector público tem de sofrer cortes. Mais nada. Nem tem sequer que haver nivelamento total, nem eu em lado algum defendi isso, e se quer que lhe diga não tenho nenhuma solução mágica nem estudada. O que tem que haver é um evitar do aprofundar das desigualdades criadas pelo Estado. Este o princípio; as aplicações são outra conversa.

"Porque o Hugo vive de generalizacões, e portanto eu levo ao limite as suas generalizações."

Por um lado sou o fanático dos números, depois sou o fanático das generalizações...

"Então não se chateie se as pessoas interpretarem as suas generalizações, tipo condições sector público = sector privado, como quiserem."

Sabe qual é o problema? É que as pessoas não sabem discutir os problemas abertamente. É que quando uma pessoa faz um post de suposta discussão - mesmo provocatória -, a aparece um "tresleitor" como o Pedro - que imagina coisas fantásticas onde elas não existem ao ponto de inverter a intenção inicial de quem escreveu -, a minha obrigação passa a ser a de apresentar uma espécie de "teoria geral comparativa das relações entre as remunerações e as condições laborais entre o sector público e privado"....Se anda freneticamente à caça de neo-liberais pela blogosfera, veja lá se acerta bem no alvo. Há-os às centenas por aí.

Pedro Viana disse...

"Interessante, esta é uma lógica tipicamente de Estado-empresa. Como calcula, isto é COMPLETAMENTE diferente do Estado que temos hoje. Se eu tivesse defendido isto, imagino o que me teriam chamado."

Acho que não me está a interpretar bem... ;) O objectivo do Estado não é o mesmo duma empresa, donde aquilo que o Estado pode e deve oferecer para atrair funcionários de qualidade será muito diferente do que uma empresa faria. Portanto, não pode ser um Estado-empresa no sentido dum Estado a funcionar como uma empresa. Há aqui apenas a constatação duma analogia argumentativa.

""Acho que devem ter uma protecção laboral maior do que os do sector privado. Até admito que em troca tenham salários um pouco inferiores (para a mesma "função"), como compensação." - Espantoso: não divergimos muito, então. Só não percebo qual o escândalo relativamente ao que escrevi desde o início."

Parece-me que o Hugo às vezes nem leu bem o extracto de texto que colocou neste post. Todo o extracto ataca a ideia de que o emprego público deva ser mais protegido do que o emprego privado. O próprio Hugo consistentemente nos comentários clama contra a "desigualdade" de tratamento em termos de protecção laboral. Ora, o que eu disse foi: essa "desigualdade" é justificada e deve existir, em particular a nível de protecção contra despedimento. O Hugo, concorda? Óptimo! Ou afinal não e sempre divergimos (muito)?... Quanto a diferenças ao nível salarial, é uma questão à parte.

"Mas já que coloca as coisas assim, então deixe-me dizer isto: um sistema hiperegulado, (...) tem o efeito de amarrar precisamente os trabalhadores aos empregos onde ele são quotidianamente humilhados."

Só se é humilhado se se temer represálias. Num sistema regulado essas represálias são minimizadas. A humilhação não resulta duma agressão. Resulta da constatação da incapacidade de responder a uma agressão.

O sistema que o Hugo sugere, obviamente, é muito menos negativo que uma simples liberalização do despedimento. Se alguém não temer ficar no desemprego. com baixo apoio financeiro do estado, então mais facilmente reagirá a agressões, mesmo que tal o leve a ficar desempregado, evitando a humilhação. No entanto, as pessoas são naturalmente conservadoras, em particular a partir de certa idade, do que resulta que mesmo que a mudança seja facilitada, a ansiedade a ela ligada evitará que muitos a coloquem como hipótese de fuga a agressões contínuas que resultam em humilhação pela incapacidade de resposta devido ao receio da mudança associada à perda de emprego.

"É engraçado isto: concordar que o Sarkozy não é um "diabo" e tem propostas que a esquerda devia subscrever é uma espécie de crime de lesa-majestade. Eu francamente não tenho paciencia para este sectarismo primário."

O Hugo caracteriza-se a si próprio como sendo de Esquerda, mas depois acaba por apoiar medidas que são rejeitadas pela esmagadora maioria das pessoas que se dizem de Esquerda e apoiadas por uma maioria de pessoas que se dizem de Direita. É legítimo alguém dizer-se de Esquerda nestas circunstâncias?... Mais: o Hugo correntemente fala do modelo económico-social vigente como se ele fosse a única possibilidade realista, como se não houvesse de todo alternativa. Esta táctica de "imposição lógica" dum modelo económico-social de certa forma pós-ideológico sempre foi apanágio da Direita:não há nada a fazer; não há alternativa. O Hugo fala como se a evolução económico-social fosse um comboio em marcha sobre qual não temos nem devemos querer ter qualquer controlo, estando nós limitados a alterar a decoração interior durante a "viajem". Insisto, porque é que o Hugo se acha de Esquerda? Porque defende alguma redistribuição da riqueza? E a Direita, não? Quantos partidos de Direita, por exemplo, acabaram com escalões diferenciados do IRS, impondo uma flat tax? Se o Hugo acha que entre a Esquerda e a Direita há apenas uma questão de gradação, então está muito enganado.

"Tem por vários motivos: um deles, perfeitamente justificado, que é pelo facto de o Estado desempenhar funções centrais e nobres, que variam de Estado para Estado."

Ok. Obrigado. Então afinal há "desigualdades" entre sector público e privado que se justificam. Se tivesse deixado isso claro desde o início...

"Nem tem sequer que haver nivelamento total, nem eu em lado algum defendi isso,"

E nunca deixou claro que não era isso que defendia.

"O que tem que haver é um evitar do aprofundar das desigualdades criadas pelo Estado. Este o princípio; as aplicações são outra conversa."

O princípio que imoorta é ter um Estado que funcione, e que pelo seu funcionamento reduza a desigualdade a nível global na sociedade, mesmo que para tal o sector público precise de ter "previlégios" relativamente ao sector privado.

"É que quando uma pessoa faz um post de suposta discussão - mesmo provocatória"

Se o Hugo não quer que um texto provocatório origine respostas "provocatórias" seja mais humilde nas suas afirmações. O que fez foi colocar um texto que peremptoriamente ataca o conceito de função pública, rematando com uma nota em que dá a entender que quem o escreveu tem muita razão porque a Dinamarca é um paraíso económico-social e por comparação Portugal e França são zonas de desastre. Se talvez, quiçá, tivesse mencionado que o modelo dinamarquês até pode ter alguns problemas, particularmente se fosse literalmente transplantado para Portugal e França...

Hugo Mendes disse...

Pedro, o meu post era uma citação, que considero uma forma humilde de colocar as coisas, não era um tratado pessoal sobre o que deve ser o Estado ou natureza/dimensão da função pública. Se se presta à confusão, paciência. O texto defende a aproximação a vários níveis em função das diferenças que existem. O facto de estar descontextualizado da discussão do livro pode ajudar a interpretações erradas, talvez, mas daí a afirmar e a questionar algumas coisas que o Pedro diz parece-me uma distância abismal.
O que pretendia era discutir, apresentar "modelos" mais ou menos concretizados na realidade: não diz que há modelos perfeitos, nem normativa nem empiricamente (por exemplo, leu em algum lado que o modelo dinamarquês é perfeito e que os outros são uma desgraça completa? Não leu porque não está lá). Mesmo na Dinamarca, o nivelamento não é total, portanto ninguém está a defender que o nivelamento no sentido da eliminação todas as diferenças. Estamos a discutir ideais-tipo. E se queremos/temos que mudar, vale a pena pensar para onde queremos ir. É para isso que as comparações internacionais servem: não para emoldurar mundos perfeitos, mas para apontar possiveis alternativas, relativamente melhores do que outras.

"o Hugo correntemente fala do modelo económico-social vigente como se ele fosse a única possibilidade realista, como se não houvesse de todo alternativa. Esta táctica de "imposição lógica" dum modelo económico-social de certa forma pós-ideológico sempre foi apanágio da Direita:não há nada a fazer; não há alternativa."

Mais uma vez, isto vai precisamente contra aquilo que o post quer transmitir. Eu transcrevi esta citação precisamente para mostrar o contrário: é que as entre o modelo corporativista e modelo neo-liberal há formas diferentes de conceber a relação entre o Estado e o mercado que não passem pelo "tudo Estado" nem pelo "tudo mercado". E que há exemplos históricos que mostram a variedade de economias políticas, aliás com sucesso a vários mais elevado que paises como a França ou Portugal (com as devidas diferenças, naturalmente); não venha por favor com o discurso do "modelo unico" que é muito de "direita". Posso aliás transformar o argumento no seu inverso e dizer que alguma esquerda é que tem um "pensamento único" e que qualquer coisa que se desvie do "mais Estado possível" significa uma cedência ao "neo-liberalismo". É perante este "pensamento único" que a invocação de alternativas de geometria variável parece uma cedência de "direita" e o derrapar para a defesa disto e daquilo (a escravatura e o resto).

"O Hugo fala como se a evolução económico-social fosse um comboio em marcha sobre qual não temos nem devemos querer ter qualquer controlo, estando nós limitados a alterar a decoração interior durante a "viajem"."

De novo, isto é imaginação sua. Se o Pedro projectasse menos as suas dúvidas e certezas no que os outros pensam, talvez não fosse má ideia. Reparou no que escrevi na resposta ao seu primeiro comentário? Foi a defesa da política e da capacidade e necessidade de tomar as decisoes certas e inteligentes, de forma a moldar e a construir a história futura. Mais uma vez, releva da sua imaginação, uma vez que defendi PRECISAMENTE o contrario.

"Só se é humilhado se se temer represálias. Num sistema regulado essas represálias são minimizadas."

Mas eu defendi um sistema não-regulado em algum lado? Onde está a defesa do laissez-faire? Eu apenas disse que há regulações que, pretendendo proteger uns, jogam contra os outros, e que o dever da solidariedade entre trabalhadores DEVE reconhecer estas perverões, quase sempre involuntárias. A discussão não é sequer entre a regulação ou a não-regulação, mas entre a boa ou má regulação.

Quanto à "esquerda" e "direita". Sabe qual é a minha esquerda: é a que pensa primeiro nos desfavorecidos, e não uma esquerda de classe média à la PSF, que nunca foi um partido com inserção na classe operária, que sempre foi um feudo do PCF. É por isso que as suas propostas são tantas vezes "biased" para um certo eleitorado, sem se preocupar com os impactos negativos nos mais desfavorecidos (e olhe que as criticas de esquerda à lei das 35 horas são mais que muitas; de uma volta por vários autores da "République des Idées", alguns dos quais apoiaram a Ségolène nas eleições: isto é uma prova suficiente de esquerda?...)
É por isso que, historicamente, muitas propostas do PSF são enganadoras, e são de uma esquerda de classe média, que trabalha para o Estado e não tem em conta sequer das preocupações dos que vivem e têm que sofrer os constrangimentos do mercado. Aliás, muita desta esquerda não sabe efecitvamente o que é um "mercado", como funciona, nem sabe que os seus salários são pagos por esse mercado. A solidariedade de esquerda está por vezes bem longe dos interesses destas pessoas, que podem ter um currículo impecável de "esquerda".
Se o Pedro está mais interessado na etiquetas, então tudo bem: esta é uma esquerda de classe média. Os partidos trabalhistas/social-democratas dos paises escandinavos ou da Alemanha, por exemplo, esses sim, tiveram que responder aos interesses dos trabalhadores. Essa é, se quiser, uma esquerda que não tem o que eu chamo as "prioridades desajustadas": ao falar em nome de todos os trabalhadores (mesmo aqueles que de 'trabalhador' não têm nada, mas são profissionais muitissimo bem pagos) e ao querer elevar o nível de todos, acaba a defender os interesses dos que mais se mobilizam para o efeito: precisamente as mais activas das fracções da classe média-alta.
Como sabe, há várias esquerdas: eu não sou purista nem estou interessado em encarnar a "verdadeira esquerda". A minha vocação é Rawlsiana (já que disse que não ligo aos princípios): os mais desfavorecidos primeiro, mesmo que a classe média e média-alta tenha que apertar um pouco o cinto nas alturas difícies para evitar a exclusão do último terço (e a alta também, naturalmente).
Se isto não é esquerda o suficiente para si, paciência. Garanto-lhe que não vou entrar numa guerra de etiquetas; saber quem é "mesmo" de "esquerda" sempre me pareceu um exercício espúreo e, historicamente pelo menos, quase sempre fratricida.

"Quantos partidos de Direita, por exemplo, acabaram com escalões diferenciados do IRS, impondo uma flat tax".

Isso é uma longa discussão, mas se não o fazem não é por questões meramente ideológicas, mas por acomodação à história e à necessidade de pagar uma série de serviços estatais que a sua clientela eleitoral aprendeu a valorizar. É, em alguns casos, mais uma cedência eleitoral mais do que qualquer outra coisa (falo da direita liberal; a direita em vários países europeus, França incluída, não é liberal, mas republicana ou democrata-cristã; a sua diferença com a esquerda foi, historicamente, muito mais mitigada...Ou isto também é sacrilégio dizer?).