quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A democracia também passa pela memória pública

A Lei da memória histórica foi hoje aprovada pelo parlamento espanhol. É uma lei de grande alcance histórico e político. Mais detalhes aqui.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O problema dos transgénicos não é ecológico, nem de saúde pública, é económico

Para concluir o post sobre transgénicos que escrevi há tempos, deixo aqui uma citação, da autoria de José Feijó. José Feijó, para além de um dos melhores professores que tive, é neste momento um dos mais bem sucedidos investigadores em Biologia Vegetal em Portugal, e tem vindo a público várias vezes no debate sobre os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). Esta citação consta de uma carta ao director, enviada ao director do jornal Público, há uns tempitos largos, e publicada naquele jornal.

"Saúdo por fim o seu editorial de J. Manuel Fernandes, que reputo de sensato e lúcido. Algumas pequenas correcções: as variedades trangénicas JÁ PASSAM POR TESTES DRACONIANOS para serem aprovados. Este é aliás um argumento circular já que, onde a priori se vê vantagem para o consumidor, foi um método usado e abusado pelos lobbies das multinacionais para arredarem deste mercado todo o tipo de "start-ups" e pequenas companhias. Este tipo de tecnologia é uma verdadeira apologia do "small is beautifull": vários laboratórios nacionais com menos de 10 pessoas produziram já variedades de plantas transgénicas. Apesar de terem a ver com espécies que nos dizem culturalmente respeito (oliveira, amendoeira, castanheiro, videira, etc.) e resolverem problemas concretos, nenhuma delas verá (provavelmente) algum dia os circuitos comerciais, já que as exigências de testes e verificações são incomportáveis para todos quantos estejam fora das grandes multinacionais. Desta forma, um controlo de qualidade draconiano, que poderá ser visto como um benefício, tem-se traduzida as mais das vezes no esmagamento de iniciativas de adaptação e melhoramento local, que sistematicamente leva a que apenas variedades de elevado lucro sejam lançadas no mercado. E o mais curioso é que grande parte destes testes e verificações não têm qualquer justificação em face dos riscos (por enquanto mínimos) das plantas transgénicas."

Ou seja, quando temos os governos pressionados por uma opinião pública que não está devidamente informada, mas que é bombardeada com desinformação temos a receita para o desastre. Por uma lado a pressão da opinião pública leva a que os governos imponham um controlo rigoroso sobre os OGMs, por outro impede que esses mesmo governos dêem, por exemplo, incentivos - subsídios, porque não? - a pequenas "start-ups" que podem fazer um bom uso da tecnologia das OGM (bom uso leia-se: serviço público). Assim os governos intervêm em força onde devem intervir com moderação e não intervêm de todo onde devem intervir para incentivar. As grandes multinacionais agradecem.
No post anterior comparei os OGMs às Farmacêuticas que processam os países do "terceiro mundo" por produzirem genéricos. Os dois fenómenos parecem-me ter bastantes paralelos: O mercado é livre e autoregula-se segundo o dogma neo-liberal, conquanto o monopólio esteja salvaguardado por uma patente.

Do blablablá dos beatos da direita ao papagaio-de-pirata (ou acima de tudo um desafio e uma paixão brasileira)

Sem concorrente em toda a América Latina, a Fifa não teve escolha se não a de decretar o Brasil como sede da Copa do Mundo de Futebol em 2014 (a segunda, pois a primeira foi em l950). Resta saber agora de como a burocracia corrupta e ineficiente do país vai se valer disso. Eu não tenho dúvida alguma de como isso se dará. Mesmo antes do parecer final da entidade máxima do futebol mundial, se falava por aqui de projetos faraônicos, como a construção de vários estádios, hotéis, aeroportos e et cetera e tal (quando apenas reformas e adaptações bastam). Proposta que atiça a voracidade de muitos políticos populistas e de empreiteiras que esperam com isso faturar em cima do dinheiro público, que deverá jorrar abundantemente a exemplo do que aconteceu com a organização dos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro

O orçamento para o Pan do Rio saiu de controle devido à má administração e, principalmente, à corrupção endêmica, tornando o preço final para o contribuinte brasileiro cerca de oito vezes mais caro que as estimativas iniciais, passando de 409 milhões de reais (quase 162 milhões de euros) para 3,7 bilhões (aproximadamente 1,5 bilhão de euros). Apesar das várias denúncias, até o momento nenhuma investigação foi feita. E com a Copa não será diferente, mesmo porque é tradição tupiniquim o futebol, a política populista e as falcatruas andarem juntos. E de mãos dadas como eternos enamorados.

Apesar disto, não sou contra o Brasil sediar a Copa, pois não podemos sacrificar o cachorro por ter pulgas. E neste caso, são bem gordas as danadas. A contrário. Gosto de futebol e desejaria ver (como a maioria dos brasileiros) uma Copa em Terras Brasilis. Sou, na verdade, contra o velho discurso da esquerda jurássica que ainda acha que futebol é o ópio do povo; ou daquele eterno blablablá de beato da direita civilizada para quem esse dinheiro deveria ser gasto com ações sociaiscomo se isso fosse capaz de resolver os profundos problemas da sociedade brasileira; ou o ufanismo ridículo de que o Brasil é o campeão antecipado.

Mesmo sabendo sobre o seu potencial para desperdícios e corrupção, o Brasil pode e deve sim sediar esse evento futebolístico com competência. Mas que o faça com dignidade, ética, rigor do poder público na fiscalização e, acima de tudo, dentro de suas possibilidades financeiras. E que venha a Copa-2014! OLÉ.

PS: E não é que a farra com o dinheiro público começou. A comitiva brasileira foi pra Zurique composta por 10 governadores, cinco prefeitos de capitais, vários ministros de Estado e o Presidente da República. Entre os ministros, estava a do Turismo, Marta Suplicy (sim, aquela que durante o caos aéreo disse para os usuários relaxarem e gozarem), que não podia ver uma emissora de TV entrevistar o presidente Lula para ficar com a cabeça sobre seus ombros como uma autêntica papagaio-de-pirata.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Nos sentámos a chorar*

Sobre a mais recente beatificação massiva do Vaticano só se pode considerar que é um ataque directo a um país que está efectivamente a separar as águas estatais das espirituais, entre dois Estado laicos podia ser considerado uma declaração de guerra. Não deixa, contudo, de ser penoso ver que a Igreja a qualquer perda de poder temporal reaja sempre com ofensivas cheias de rancor contra os «culpados» que vai enumerando numa lista que já tem alguns séculos e que se pode enunciar mais ou menos por esta ordem: a Reforma; a Revolução Francesa; a Maçonaria; a Revolução Industrial; o Marxismo; o Capitalismo. Todos estes processos históricos geraram, então, golpes profundos no status quo católico e que podem ser sumarizados nalguns pontos como a emergência das dinâmicas urbanas; alteração dos modelos familiares; a modificação de relações profissionais; o feminismo.
A Igreja, de tanto atacar, feriu-se, perdeu-se, parece incapaz de reflectir sobre si própria, e, sobre a suas origens que são urbanas, que vão contra uma série de constrangimentos sociais e de leis morais, sobre as propostas iniciais de renovação e libertação do ser humano, sobretudo do que está mais desprotegido e longe do poder. E enquanto mais não fizer que promover uns beatos fascistas à espera de um milagre de retorno a um Franquismo global, «junto aos rios da Babilónia nos sentámos a chorar».
*Salmo 137 - Salmo colectivo de súplica, no âmbito do exílio do povo hebreu na Babilónia.

As mãos da "hermanita" Cristina Kirchner

Apesar de não ter chegado ao final a apuração total dos votos, Cristina Kirchner será a segunda (#) mulher a presidir a Argentina. E fez ontem mesmo o seu discurso como presidenta eleita, quando foi recebida calorosamente no palco pela ex-candidata socialista à presidência da França, Ségolène Royal.

Cristina chega à Casa Rosada (sede do governo argentino) com a difícil tarefa de não deixar a bomba armado pelo seu antecessor e marido, Néstor Kirchner, explodir em suas mãos. Ou seja: elevados índices de criminalidade, corrupção generalizada entre os membros do governo, crescimento sem sustentabilidade econômica, taxa cambial irreal e inflação manipulada (oficialmente está em 8%, quando na verdade passa dos 20%) pelo seu cônjuge e seu maior cabo-eleitoral. Muy amigo...

no plano externo, Cristina tem acenado sorridente com la mano derecha a Bush e com la izquierda a Hugo Chávez . Resta saber, porém, com quais das mãos ela receberá o “hermano” Lula, uma vez que estará com as duas parcialmente ocupadas.

--------

(#) A primeira mulher a presidir a Argentina foi Isabelita Perón (María Estela Martínez de Perón, conhecida por seu pseudônimo artístico como Isabel). Ela assumiu o poder depois da morte do marido (era vice do general eleito Juan Domingo Perón), em 1º de julho de 1974, mas foi deposta por uma junta militar, comandada naquela altura pelo general Jorge Rafael Videla, em 24 março de 1976, quando também teve a sua prisão decretada.

domingo, 28 de outubro de 2007

and now is the time / you got the time / to realise / to have real eyes*

Faz hoje 30 anos que os Sex Pistols lançaram o álbum Never Mind the Bollocks.

Passou mais de um quarto de século sobre a faixa God Save the Queen, onde John Lydon gritou do fundo do seu Rotten being: there is no future / in England's dreaming. / No future / no future for you / no future for me.

Será que a Inglaterra ainda está a sonhar?

* I wanna be me, Sex Pistols, The - Great Rock'N'Roll Swindle, 1977.
adenda: magnífico texto de João Lisboa no Provas de Contacto aqui

sábado, 27 de outubro de 2007

Quem não sabe cozinhar sempre pode sonhar...

Dum romance histórico de Joaquim Mestre (esse mesmo, director da Biblioteca Municipal de Beja), retiro esta passagem saborosa sobre os sonhos dum homem que, à falta de destreza culinária, vai sonhando com a boa comida alentejana:
"Já é noite cerrada e Manuel Gasparim não sabe de Maria Galariana nem da mãe, que foram para a serra de manhã cedo. Está esfomeado pois desde o almoço que não come nada e a fome nunca foi boa conselheira. Dorme e sonha com iguarias especiais, como sopa de beldroegas com ovos escalfados; tengarrinhas com feijão-manteiga; açorda de espargos com carne de porco frita; açorda de coentros com carapaus fritos de véspera; migas gatas com poejos; caldo de peixe com poejos e hortelã da ribeira; cogumelos assados com sal, túberas com feijão branco, acelgas e chícharos com grão; gaspacho com sardinhas fritas; jantar de azeite com sopas migadas; esparregado de cunetas e de alabaças; salada de pimpalhos e agriões; bolos de amassadura com banha de porco; merendeiros com linguiça; tibornas; cavacas. Sonhou com todas estas comidas, dispostas numa mesa enorme, com uma toalha branca de linho toda bordada, cadeiras forradas a veludo e brocados orientais, jarras de alpaca com flores, talheres de prata, copos de cristal, pratos de porcelana, vinhos raros e perfumados, doces conventuais, licores esquisitos, criados de libré e casaca, música de Wagner ou corais alentejanos, que ele não conseguiu distinguir porque os sonhos são mesmo assim".
Joaquim Mestre
(O perfumista, Lisboa, Oficina do Livro, 2006, p.135/6)

Nb: imagem de ensopado de borrego alentejano no blogue Beja, onde tb. vem a respectiva receita, bem como da açorda & etc.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Em democracia o disparate é livre, James Watson faz bom uso!

Nesta polémica sobre o James Watson e as suas declarações racistas, o mais patético é de facto defender-se que é uma questão de liberdade de expressão. Que eu saiba ninguém emitiu um mandato de captura sobre o senhor, ninguém o amordaçou, ninguém o impediu de se justificar nas páginas de jornais de grande circulação internacional, num comunicado difundido pela Associated Press. Ninguém o impediu de pedir desculpas e no mesmo passo repetir, ainda que eufemisticamente, os mesmos argumentos eugenistas, ninguém o impediu de criticar o "wishful thinking" na Ciência e escrever um texto que é "wishful thinking" de alto a baixo. Politicamente correcto ou não há uma diferença entre criticar ou discordar de alguém e limitar a sua liberdade de expressão (nem acredito que estou a escrever coisa tão óbvia). James Watson diz o que lhe apetece, quem discorda dele tem o direito de expressar igualmente a sua opinião, foi o que aconteceu até agora. Aliás só quem nunca ouviu falar de Watson, ou quem tem andado distraido, pode achar que alguma a sua liberdade de expressão tenha sido desrespeitada. Se há uma pessoa que ao longo dos anos tem podido fazer comentários racistas, misóginos ou homofóbicos sem que ninguém lhe corte a palavra, esse alguém é James Watson. Foi ele quem disse que um mundo onde a engenheria genética tratasse de fazer todas as raparigas bonitas seria um mundo maravilhoso, foi Watson quem disse que os negros têm uma líbido superior à dos outros (sem qualquer base científica), foi Watson que disse que uma mulher a quem fosse diagnosticado geneticamente que o seu filho seria homossexual deveria ter o direito de abortar. Nunca lhe cortaram a palavra e ainda bem, em democracia o disparate é livre.
Ah, mas há os que se preocupam com o cancelamento das conferências que estavam programadas. Permitam-me que utilize um argumento que os liberais de direita não vão desdenhar: O Museu de História Natural de Londres, e as outras instituições, são livres de convidar e desconvidar quem bem entendem. Não é qualquer Joe Shmoe que tem o direito de apresentar conferências em instituições académicas. Apenas quem estas convidam, e convidam geralmente com base em critérios de excelência científica e intelectual. Se os convidados revelarem que o seu mérito não está afinal à altura da excelência exigida nada mais natural do que serem desconvidados. Será isto a censura posta em prática pela tirania do politicamente correcto? Eu próprio, sabe-se lá porquê, nunca fui sequer convidado para dar uma palestra no Museu de História Natural de Londres, muito menos desconvidado, serei eu vítima da censura do politicamente correcto? Não me parece...

Adendas:
1) Quem quiser ler sobre o real contributo de James Watson para a descoberta da Dupla Hélice, vale a pena ler este post do maradona (na sua nova casa), ou melhor ainda este de Greg Laden (obrigado Rui, pelo link).
2) O prémio do melhor post da semana na categoria "Importa-se de concluir o seu raciocínio s.f.f.?" vai para este post de Victor Cunha (descoberto através do post do maradona).

Será que as crianças percebem?

Esta estória é veridíca, os nomes foram alterados para proteger a identidade dos implicados (na realidade é para me proteger a mim da identidade dos implicados). A Albertina (nome fictício, não sei se já tinha dito...) é uma amiga aqui em França, tem duas crianças, a mais velha, Gertrudes, mal tinha os cinco anos feitos à data dos factos. As coisas entre Albertina e Anacleto, o marido, não iam muito bem, não iam nada bem, e vai dai ela cai de amores por Norberto, pai de um colega de infantário de Gertrudes. Conheceram-se, Albertina e Norberto, à porta do infantário, nas horas de espera ao fim da tarde, no momento de ir buscar as suas crianças depois da escola. Das esperas passou-se às idas ao parque infantil a caminho de casa, para dois dedos de conversa, enquanto as crianças se divertiam nos escorregas. Tornaram-se amantes, Albertina e Norberto. Tudo, claro, na maior das discrições, para que ninguém se aperceba. Certo dia realizou-se no infantário o dia do livro. Cada criança tinha o direito de escolher um livro e de levá-lo para casa. Nesse dia calhou ao pai Anacleto a vez de ir buscar a filha Gertrudes à escola. Gertrudes sai a correr com o livro na mão, e, para grande desilução do seu pai, corre alegremente para Norberto mostrando-lhe orgulhosamente a sua escolha literária. O título da obra foi "J'aime mon Papa" ("Amo o meu Papá"). O que me parece estranho nesta estória, não consigo perceber, é porque razão Gertrudes, escolhendo um livro com um nome destes não foi a correr mostrá-lo ao seu pai, mas sim ao amante da mãe. Será que ela percebeu alguma coisa do que se passava? Será que estava a enviar a Norberto uma mensagem subliminar? A bem dizer, não sei, não percebo nada de crianças...

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Coincidências....E o buraco é mais embaixo.

Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o usuário de drogas no Brasil pertence à classe alta. A pesquisa "Estado da Juventude, Drogas, Prisões e Acidentes" feita com base em um estudo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2003, mostra que 62% dos usuários de drogas pertencem à classe A (com renda familiar acima de 9,5 mil reais por mês – aproximadamente 3,7 mil euros). Até , tudo bem e não apresenta novidade alguma, uma vez que outros estudos acadêmicos, realizados há muito mais tempo, tinham chegado à mesma conclusão.

O estranho dessa pesquisa é exatamente a “coincidência” (e eu não acredito em coincidências) de sua divulgação logo a seguir a polêmica criada em torno do filmeTropa de Elite”, que detonou uma forte campanha que responsabiliza os usuários de drogas pelo financiamento do arsenal do crime organizado e, por consequência, o aumento da criminalidade brasileira. O que sugere apenas ações policiais para combater a criminalidade, sem colocar em questão a necessidade de uma política pública de inclusão social. Será que não está na miséria e numa das piores distribuição de renda do mundo a mão-de-obra do narcotráfico? Pois bem, pensar não dói!

Não quero aqui fazer qualquer apologia às drogas, mas atribuir o grau de violência que se vive no Brasil somente ao seu usuário é uma visão muito simplista e moralista da questão . Pior. O que se pretende nas entrelinhas é desassociar a miséria da criminalidade urbana. É claro que todo o crime tem de ser combatido com rigor, mas mascarar a suas origens e tão criminoso quanto o crime em si, principalmente num Brasil hipócrita e cheio de preconceitos velados, onde o maior pecado é ser pobre.

Outracoincidência é que o filmeTropa de Elite começou a ser produzido logo depois de sancionada a lei que acaba com a prisão para usuários e dependentes de drogas. Lei esta, que abriu a discussão pra legalização total das drogas no Brasil.

Quanto à discussão sobre a legalização da droga, o problema maior é que ela está sendo profundamente ideológica e que depois de ouvirmos o lado favorável à legalização e o lado da proibição pura e simplesmente, não ficamos nenhum pouco mais esclarecidos. E o que precisamos é de um debate sem preconceitos moralistas e sem argumentos simplistas e rasteiros, pois assim não chegaremos a lugar algum.

O maior argumento entre os defensores da legalização é o de que atenuaria os índices de violência a que está exposta toda a sociedade. Tenho dúvidas sobre o resultado. Particularmente, acredito que a criminalidade tem de ser debatida sem colocar em causa o usuário de droga.

Em suma. Deixo aqui uma pergunta. Num país onde 10 mil crianças trabalham para o narcotráfico nas favelas do Rio de Janeiro, de quem é a culpa? Como se , senhores, parece-me que o buraco é mais embaixo.

O feminismo e a dona-de-casa


Camille Paglia, sempre polemista, considera que o movimento feminista do Ocidente marginaliza as mulheres que valorizam a maternidade e definem o cuidar dos filhos e do marido como missão central na vida. Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo (FSP)[1], esta feminista odiada pelas feministas (como diz o autor do artigo), manifesta a sua convicção de que o movimento perdeu a sintonia com o desejo da maioria das mulheres, ao defender a valorização da carreira em detrimento da maternidade. No seu entender, ao invés da veneração e atribuição do lugar mais alto à “mulher de carreira”, feminismo deveria ser sobre “mulheres terem oportunidade de avançar, não serem abusadas e terem direito de auto-subsistência económica para não depender de um parente homem”[2]. O autor do artigo lembra-nos que a escritora é considerada uma das principais teóricas do pós-feminismo e mantém-se sempre no centro da polémica, como ilustram, por exemplo, as constantes reacções ao seu livro “Personas Sexuais”, de 1990. Camille Paglia vê a emancipação da mulher moderna como produto da cultura capitalista ocidental, num momento particular em que, por causa da Revolução Industrial e do trabalho fora de casa, as mulheres se livram do controlo do marido, do pai ou do irmão. A escritora receia ver as feministas ocidentais destruir valores e tradições de culturas locais por não conseguirem lidar com a centralidade da maternidade para a maioria das mulheres do mundo.
Afinal, a centralidade da reflexão pós-feminista ainda não é dos pares maternidade/paternidade; mães/pais; mulheres/homens de carreira. Que dizer, então, dos unos, dos bi, dos homo e, enfim, dos múltiplos?

[1] Uirá Machado, “Para Paglia, feminismo erra ao excluir dona-de-casa”, Folha de São Paulo, domingo, 21 de Outubro de 2007.
[2] p.A26.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Pax iberica: o fim do mito marítimo

Lembram-se do mito da gesta marítima colado aos Painéis de S. Vicente, do infante D. Henrique, etc. e tal? Esqueçam. Esqueçam e ponham-me os olhos neste que é um dos livros sensação do ano: Onde estava vossa mercê nos painéis?, de Gonçalo Morais Ribeiro, numa cuidada edição da Som da Tinta.
A obra tem todos os ingredientes e mais alguns em seu abono: inventividade, sedução, rigor histórico e interpretativo, impressionante trabalho de imagem enquanto prova e acervo documental, uma invulgar atenção cirúrgica ao detalhe aliada a uma viva capacidade de contextualização e de problematização. Humor na forma e em forma. E, sobretudo, ousadia, muita ousadia para avançar por terrenos convencionalmente tomados pelo peso da tradição interpretativa e com muitos guarda-mores ciosos da coutada. Isto, ainda por cima num país propenso ao conservadorismo mental e comportamental, é obra.
O grosso do texto é um conjunto de 6 "entrevistas polípticas" (é o subtítulo da obra), numa simulação de contributos de algumas das personalidades da época: Diogo Gonçalves, Isaac Abravanel, D. Jorge da Costa, D. João D’Almeida, D. Leonor e D. Manuel I. Por eles tomamos contacto com muitos detalhes relativos à produção dos painéis, ao seu contexto político e social, bem como ficamos a saber a tese principal do autor, a de que os painéis foram um tributo do rei português D. Afonso V a Deus, como gratidão e desejo de manutenção da paz com Castela, e à sociedade, uma tentativa de apaziguamento das clivagens entre os poderosos.
Como nos ‘confessa’ o sacerdote Diogo Gonçalves, falando pelo autor, a chave do quadro está na clarividência do rei D. Afonso V e de seus próximos:
"O Espírito Santo indica o bom caminho para a Paz, num tempo de dificuldades para o reino, durante a guerra com Castela por causa da sucessão no trono. E o rei e o príncipe regente estiveram de acordo no princípio para fazer guerra, mas depois tiveram que estar de acordo para fazer a paz. E foi em nome de D. Afonso V mas quem ditava era D. João [II] que já era jurado e era como rei. E os dois estavam muito unidos para fazer e pedir para salvação destes reinos, porque como dizia o Boca Dourada, São João Crisóstomo, o Espírito Santo é um pacto: «Quando depois de uma longa guerra se estabelece a paz, as partes trocam prendas e reféns em sinal de amizade e de garantia. Nós também trocamos as nossas prendas com Deus, entregamos-lhe a nossa natureza humana para que Cristo a elevasse ao Céu, e Ele, como garantia, enviou-nos o Paráclito.»
E assim com a ajuda do Céu e garantia do Espírito Santo fizeram os homens a paz. Os portugueses e castelhanos em Alcáçovas do Alentejo assinavam o tratado e concordavam nas garantias escritas nas terçarias de Moura, e isto foi feito e assinado em 4 de Setembro de 1479, e em 6 de Março, em Toledo, confirmado no ano seguinte [por eles outros, e a 8 de Setembro, dia de Nossa Senhora, pelos nossos, porque logo a 16 era festa da chegada de S. Vicente e ele protegia o Infante D. Afonso na sua partida para Moura, como cativo em reféns"
(p. 16).
Só um homem da Renascença conseguiria fazer isto, e o autor é mesmo alguém que foi catapultado da Renascença para os dias de hoje, sem tirar nem pôr. Ele escreveu o texto como se fora em português dos séculos XV/XVI (mellhor seria dizer em galaico-português); ele viajou, por igrejas, museus e livros para comprovar todas as associações possíveis, incluindo a identificação de praticamente todos os figurantes nos painéis; ele ilustrou a obra com imagens quase em filigrana, como se fora um ourives antigo; ele misturou cousas antigas com cousas novas (começa logo pelo título, recriando o enigma dum livro-charada recente, Onde está o Wally?, num contexto antigo); etc., etc..
Foi preciso esperarmos 500 anos para termos um livro assim, desmistificador, ao mesmo tempo leve e sério. Valeu a pena esperar: longa vida à obra! Venham de lá, então, outras extracções.
O lançamento é na próxima 5.ª feira, às 18h30, no Bar A Barraca (Cinearte, Lg. de Santos, Lisboa). Se aprouver, segue-se uma ida ao Museu Nacional de Arte Antiga, ali mesmo ao lado, para uma visita comentada pelo autor aos Painéis de S. Vicente (na última 5.ª feira de cada mês o MNAA está aberto até às 22h; adenda: nesta 5.ª, porém, fechou mais cedo sem pré-aviso).

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Feminicídio na República Democrática do Congo

‘‘Volto do inferno. Procuro desesperadamente uma maneira para lhes contar o que vi e ouvi na República Democrática do Congo. Procuro uma maneira para lhes narrar as histórias e as atrocidades, e, ao mesmo tempo, evitar que fiquem abatidos, chocados ou afetados mentalmente. Procuro uma maneira de lhes transmitir o meu testemunho sem gritar, sem me imolar ou semprocurar uma AK 47.’’
------------------

Depois de viver uma das mais cruentas guerras da África, a Republica Democrática do Congo (Congo-Kinshasa) ainda convive com cicatrizes profundas na sociedade. Mais de 3,5 milhões de pessoas foram mortas e há pobreza e desnutrição por todos os cantos, onde a violência sexual ocorre por toda parte, o que também contribuiu para a rápida propagação AIDS (SIDA).

A dramaturga e ativista, Eve Ensler, esteve recentemente e nós descreve de forma impressionante e realista os crimes sexuais cometidos contra as mulheres (desde crianças até as mais velhas). “Mas a maior crueldade é a seguinte: soldados soropositivos organizam comandos nas aldeias para violar as mulheres, mutilá-las. Há relatos de centenas de casos de fístulas na vagina e no reto causadas pela introdução de paus, armas ou violações coletivas. Essas mulheres não conseguem controlar a urina ou as fezes. Depois de serem violadas, as mulheres são também abandonadas por sua família e sua comunidade’’, descreve ela.

Caso tenhas nervos de aço, leia a íntegra do artigo, reproduzido pela revista eletrônica ViaPolítica.

Defina-me primeiro doença s.f.f.

Através deste post do Arrastão cheguei a este curioso texto de Maria Fernanda Barroca ao que parece publicado no "Diário do Minho" (e aqui uma versão ligeiramente diferente). Diz-nos a autora que "A homossexualidade não é uma fatalidade", que pode ser "tratada", cita até um psicólogo holandês (suponho que o simples facto de citar um psicólogo holandês seja sinónimo de credibildade científica). Pode ler-se no segundo texto que o trabalho do tal Psicólogo holandês se encontra publicado na revista "Studi Cattolici", que como o nome indica deve ser uma das revistas internacionais de referência em Psicologia Clínica.
Todo o artigo de Barroca é baseado no pressuposto que a homossexualidade é uma doença. Comecemos então pelo princípio: o que é uma doença? Não há uma definição absoluta e incontroversa de doença, mas é consensual que uma doença implica sofrimento, incómodo grave, ou morte permatura. Como é consensual que uma doença é causa e/ou consequência de disfunções orgânicas; um orgão que não cumpre devidamente a sua função ou um processo fisiológico que é perturbado. Assim sendo a segunda questão que se coloca é: A homossexualidade é uma doença? Não me parece que a homossexualidade per se cause sofrimento (curiosamente em inglês a palavra "gay" significa "alegre, contente, divertido"), que eu saiba não causa morte prematura, nem tão pouco envolve disfuncionamentos orgânicos.
Claro que a Sra. Barroca menciona a ligação entre homossexualidade e SIDA, como seria previsível. Esqueçamos momentaneamente que o contacto sexual entre homem e mulher, ou o sangue, podem também transmitir a SIDA. Mesmo que houvesse uma ligação entre homossexualidade e SIDA, a doença é a SIDA, não a homossexualidade. Pode continuar a ser-se homossexual sem transmitir a SIDA, conquanto haja preservativos disponíveis.
O texto todo tenta fazer passar a mensagem que os homossexuais podem deixar de o ser, mas a questão não é se podem ou não, mas sim se querem ou não. E porque razão haveriam de querer?

Museu do Neo-Realismo

Guiada por uma crónica de Silva Melo no Público rumei há já dois anos, com amigos peões, a Vila Franca de Xira para ver a exposição «Um tempo e um lugar: dos anos 40 aos anos 60, dez exposições gerais de artes plásticas» (23 de Setembro a 16 de Dezembro 2005). A mostra de artistas ligados à Sociedade Nacional de Belas Artes, encontrava-se instalada no Celeiro da Patriarcal, mas era já um projecto do Museu do Neo-Realismo, em colaboração com a Câmara Municipal.
O museu, começou a ser projectado a partir dos anos 70, diz a história que no próprio enterro de Alves Redol, para ser inaugurado este fim de semana, quase quarenta anos depois. De acordo com o Instituto de Museus e Conservação, «museu especializado no movimento que lhe dá o nome, de vocação interdisciplinar, com uma missão de incorporação, conservação, investigação e comunicação do património neo-realista nas áreas da Literatura, Artes Plásticas, Arquitectura, Música, Teatro, Cinema, Fotografia, História e Filosofia, e respectiva documentação para fins de estudo, educação e lazer.»
Por tudo o que já vi nas notícias e, sobretudo pela programação cultural, já disponível até Dezembro de 2008 e que inclui sessões de leitura e poesia, uma exposição antológica de Júlio Pomar e outra sobre a Mulher na estética neo-realista, Vila Franca de Xira vai entrar no meu roteiro.
P.S. - O percurso cultural deve ser acompanhado de prova gastronómica no restaurante Redondel, sito na praça de touros e de passeio no jardim/marginal junto ao Tejo.

Viggo

Eastern Promises de David Cronenberg vai estrear em Lisboa no dia 29 de Novembro.

Depois de A History of Violence, Viggo Mortensen volta a trabalhar com o realizador David Cronemberg. Viggo é um dos mais surpreendentes actores da actualidade, and he has the looks. Depois do péssimo Alatriste (2006) de Agustin Díaz Yanes, Viggo está de volta.
No inominável G.I. Jane, onde, curiosamente, contracena com outra grande actriz americana, Anne Bancroft (que viria a morrer oito anos mais tarde), Viggo surge tão sexy como a própria Mrs. Robinson. Anne e Viggo são dois fortíssimos candidatos a actores mais sexy's da história do cinema.
Nos filmes de Cronemberg, Viggo desdobra-se em papéis fascinantes, difíceis, e que sempre nos conseguem surpreender.
foto: Frames de Eastern Promises.

Sicko, ou os limites do «cada um por si»

Acabei de ver Sicko, o último documentário de Michael Moore, em ante-estreia no DocLisboa (a estreia será daqui a c.10 dias).
O filme é uma apologia da saúde acessível para todos, centrando-se na denúncia do péssimo sistema de saúde nos EUA, que deixa sem qualquer protecção c.50 milhões de norte-americanos e obrigando os restantes a pagar custos elevados. Um dos problemas da ausência dum serviço nacional de saúde universal é precisamente o excessivo poder que têm as companhias seguradoras de saúde, cuja obsessão com o lucro as leva a recusar pagar operações a pessoas seguradas mesmo sabendo que estas morrerão ou ficarão muito prejudicadas na sua saúde. E isto com a assinatura de médicos. As farmacêuticas tb. cobram preços elevados pelos medicamentos, sem qualquer comparticipação. E vários doentes são simplesmente expulsos dos hospitais e despejados por táxi em associações de apoio.
Aproveita para comparar este sistema com os congéneres canadiano, inglês e francês (haverá algum exagero no extremar dos casos, mas tb. é verdade que a comparação consegue focar-se em aspectos básicos). E com humor, apesar de tudo.
No fim, vai até Cuba com vários heróis voluntários da evacuação pós-11/9 nas Torres Gémeas a quem foi recusado apoio no seu país, e aos quais são ali prestados cuidados de saúde gratuitos. Trata-se dum triste caso, também duma provocação do cineasta e, de par, um acto (evitável) de propaganda para a ditadura castrista, parte que irá decerto concentrar as críticas de quem não quiser debater o essencial do filme.
Em suma, este é um filme muito útil para lançar o debate sobre as políticas de saúde e o serviço público universal nos vários países.
Por cá há um fetiche do privado, patente na moda dos seguros de saúdes e nas críticas generalizantes e repetidas ao sector público, que não tem justificação na maioria dos casos. Os nossos serviços de saúde são dos melhores do mundo: é o que comprovam as estatísticas da ONU. Isto dito, claro que há vários problemas por resolver: maior racionalização dos recursos tendo em atenção a coesão social; corte da promiscuidade público-privado; inclusão da medicina dentária no SNS; redução do peso da indústria farmacêutica (para quando as farmácias sociais?); redução das listas de espera e informação pedagógica sobre estas (para se saber quantos pacientes destas estão dentro de prazos médicos aceitáveis); agilização da integração de médicos imigrantes; controlo racional e transparente das marcações e atendimentos nas consultas. Estes são os principais que me ocorrem agora.
A questão agora é saber se o actual governo aposta mais na racionalização dos recursos no sector público (sem ser via cortes cegos), ou se cede mais às pressões neo-liberais e opta pela solução 'fácil' que é ir privatizando serviços sem nexo nem fiscalização. E se surgem propostas alternativas consolidadas e exequíveis por parte da esquerda.
Apesar do seu grande ego (aqui mais controlado do que noutros filmes, pois aparece pouco no filme e não é voz off) e de alguns momentos demagógicos, Michael Moore é um documentarista de referência na actualidade, tanto no documentário social (onde começou, com Roger & me), como no documentário político (Farenheit, Bowling for Columbine, etc.). Ajudou a debater assuntos importantes num espaço crescentemente afunilado no mero entretenimento, trouxe o documentário a um auditório alargado (nos EUA, mas tb. no mundo inteiro) e deu ânimo a outros cineastas para se aventurarem num género difícil.
É claro que não é o único, e na Europa, por exemplo, o documentário está bem pujante há já vários anos, como bem o atestam festivais de grande êxito e visibilidade como este DocLisboa.

domingo, 21 de outubro de 2007

Vinho com pêro em terras algarvias


Volto à rua principal, pelo caminho para o lado de onde vim. Ao passar pela Praça da República, os rapazinhos que jogavam o berlinde continuam ainda o mesmo jogo. O velho tal e qual: cabeça caída, olhos no chão. Quanto aos homens da porta do café na mesma: dois de cotovelos contra a capota do automóvel, os outros dois sentados nas cadeiras, de espaldares para a frente, e ambos de pernas abertas como quem vai a cavalo. Quando passo, a cena repete-se: todos me olham de través. E o Bar da Tia Anica continua fechado!
Passo o Cinema Topázio, entro numa taberna. Reparo, então, que se trata de uma loja onde se vende de tudo. Mas a área principal, ocupada por mesas e bancos, é a da taberna.
Numa das mesas, copos sobre o tampo redondo de folha, dois homens acompanham o vinho com pedaços de pêras, que cortam e descascam à navalha. Desconfiados, param a manobra e olham-me. Dou a saudação, a que nenhum responde. Continuo até ao balcão e aguardo que alguém me atenda. Demorado, um dos homens levanta-se. Alto e delgado, chapéu preto de pala para os olhos, avia-me um copo de vinho.
- São servidos? - convido.
Agradecem. Teimo, ganho e falamos disto e daquilo. Ambos ainda reticentes, lá me vão respondendo.
- Quando falta a estrangeirada, que é que se espera? - diz-me o sujeito que me veio servir e parece ser o dono da loja. - O ano passado? O ano passado também foi fraco.
- Pouco dinheiro - intervenho eu para animar um pouco mais a conversa.
- Muito pouco - acrescenta o outro, também de chapéu preto puxado para os olhos. - Se a época de banhos é boa, alugam-se muitas casas, os que lá moram vão dormir onde calha, mas lá lhes fica o dinheiro para irem tapando os buracos o resto do ano. Que isto do peixe anda muito aviltado. A maior parte do tempo não há. Se há, que é que ganha um pescador?
Mando vir outra rodada. Que não, que era a vez deles. Pago eu, pagas tu, opondo-lhes razões fortes: estou de passagem, nunca mais poderei retribuir o obséquio.
- Tenho de ser eu a convidá-los.
- Só se me aceitar um pêro! - opõe como condição o taberneiro.
Aceito. Vai a um cesto buscar um pêro. Dá-mo:
- Traz navalha?
- Esqueci-me ao mudar de fato - respondo eu, para manter-me ao nível da situação.
- Corte com a minha. Não é nada má. Tem-me servido.
- É sempre bom uma navalha - acrescenta o outro.
Pelo tom, as frases dos dois homens parecem-me cheias de insinuações. O pedaço de silêncio demora-se. Pensariam que era fiscal dos géneros, polícia e assim por diante?
Apesar das circunstâncias ou talvez por isso mesmo, dou por mim a beber de gosto. O vinho é aberto e claro, leve. Acabo por concordar que é agradável misturar vinho com o pêro. Deixa na boca um odor saboroso, acre. Sorrio para os dois homens, louvando a receita.

*Imagem: Praça da República, Fuzeta.

sábado, 20 de outubro de 2007

E por falar em homossexualidade...

A autora da saga de Harry Potter, J. K. Rowlings confirma o que alguns suspeitavam: Albus Dumbledore é Gay! Dumbledore é o director de Hogwarts, a escola de feitiçaria de Harry Potter, é um dos principais personagens, e está no lado dos "bons".

Afinal Harry Potter, e J. K. Rowilngs sempre têm algum interesse, qualquer dia viro fã. Agora sempre quero ver que figuras de estilo esses jornalistas vão arranjar para noticiar esta revelação. Aguarda-se também a reacção dos Guardiões do da "Família" e dos "Bons costumes", a começar, talvez, pela blogosfera.

Conhecimentos

Hoje fui ao Campo Pequeno ver o filme The Secrets (Sodot, Ha-) do realizador Avi Nesher, integrado no ciclo de cinema israelita que está a decorrer naquele local. O filme versa sobre o tema da homossexualidade feminina, do judeismo ortodoxo e do feminismo.
Qual não é o meu espanto quando me deparo com as descrições do ciclo na internet: "(...)o filme - sobre duas jovens brilhantes que descobrem as suas vozes numa cultura ortodoxa repressiva em que as mulheres estão proibidas de cantar"; "«The Secrets» (2007), (...) uma longa- metragem de Avi Nesher que conta a história de duas jovens brilhantes que descobrem as suas vozes numa cultura ortodoxa repressiva em que as mulheres estão proibidas de cantar". Descobrem as suas vozes?!? talvez seja uma forma codificada, utilizada pelos jornalistas que ao perceberem que o filme versa sobre judeus ortodoxos, resolveram utilizar uma linguagem bíblica tipo conhecer. Elas conheciam as vozes uma da outra, mas estavam proibidas de cantar, coitadas.. se calhar é por isso que o filme "conta a história de duas jovens brilhantes".
Também tenho sérias dificuldades em entender a segunda parte da frase: "cultura ortodoxa repressiva em que as mulheres estão proibidas de cantar". Ah sim? pois neste filme há cenas e cenas em que não se faz mais nada senão cantar a viva voz. (no sentido literal do termo..)
Aliás, como se pode perceber pela foto, as duas "brilhantes" raparigas estão em plena descoberta da suas cordas vocais e melancólicas por não poderem dar azo ao "canto".
Não me lembro da classificação etária do filme, mas com este tema era certamente para m/6..

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

O caso Fernando Charrua: the day after

O Público de hoje dá-nos conta do que sucedeu a Fernando Charrua do caso DREN, e, a notícia, é tristemente hilariante.
Depois das presumíveis palavras ofensivas, o funcionário foi suspenso das suas funções e devidamente castigado com uma colocação... na biblioteca (em não havendo galés, logo parece este o segundo melhor sítio para cumprir uma pena). Incrível despromoção, ir parar ao local, onde se encontram todos os trabalhadores suspeitos e/ou chanfrados dos departamentos públicos. Neste caso, a situação ainda era mais aterradora: a sua pequena secretária estava junto aos dicionários (?!?).
Como se esta punição não fosse suficientemente humilhante, Charrua é, agora, professor no activo, seguramente o fim da linha de qualquer carreira profissional iniciada em gabinetes de poder e que quando corre bem, acaba no Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos com uma enorme secretária.
Com este percurso aziago, que passa pelos locais mais infames da sociedade portuguesa: bibliotecas e salas de aula, é natural que o implicado tenha recorrido a antidepressivos e emagrecido 14 kg.
Fiquei sem perceber bem qual era o objectivo do jornalista e não sei se fiquei completamente solidária com tão trágico desfecho para um caso que é estapafúrdio desde o início.

Em que "especialista" devemos acreditar?

Sobre o Nobel da Paz temos de um lado os negacionistas do costume (por aqui e por aqui), por outro lado o editoral da prestigiadíssima revista científica Nature. Pode ler-se neste editorial:

[Sobre o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, IPCC] "Its important and altruistic work during the past two decades fully merits this year's Nobel Peace Prize"

[Uma frase que os negacionistas não vão deixar de tresler e distorcer; destaque meu] "And although not every individual scientist involved will fully agree with each sentence and each probability estimate in the IPCC's reports, few if any will seriously question that what the IPCC delivers is as good a chunk of scientific advice on climate change as anyone could hope to get."

[desque meu, novamente] "(...)the IPCC has compiled the strongest evidence so far that the current warming trend is the increasingly dangerous result of human activity. This is an apolitical statement."

Claro que os critícos deste Nobel vão dizer que tudo nele é politizado. Os termómetros, os aparelhos de medição do CO2, os satélites, os barómetros, são todos, como é sabido, instrumentos políticos. Tudo é uma conspiração política internacional, um "complot" que involve Al Gore, a Academia Sueca, a Nature (um antro de esquerdistas) e outras revistas científicas, o IPCC - que como o nome indica é intergovernamental - , o que coloca vários governos do mundo na conspiração, e ainda a comunidade científica internacional, toda a esquerda, todos os bloggers de esquerda e muitos dos de direita, uma grande parte dos cronistas de opinião... Bom o melhor é inumerar quem NÃO faz parte da conspiração: para além de alguns Insurgentes e alguns Blasfemos - deixa cá ver - ..., só me consigo lembrar mesmo da Administração Bush. No fim de contas, talvez seja mesmo uma GRANDE conspiração internacional, mas se há tanta gente que faz parte deste "complot" deve ser por uma boa razão.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Cuecas em saldo

Isto de comprar cuecas (ou, na sua acepção mais elegante, "cuequedo") é um problema nacional. É, aliás uma das razões para o nosso permanente atraso relativamente à "Europa" (ou, na sua acepção mais elegante, "a malta que usa boxers").

É por isso que decidi, finalmente, divulgar a solução:






















Estas cuecas podem ser adquiridas online (sim, porque hoje NINGUEM compra cuecas na loja) no sítio myspace do grupo pop melodramático popular Os 3 Marias (para os amigos, As 3 Marias).

Passo a citar: «Os 3 Marias, conjunto electro-analógico pornosentimental. Somos nós seminaristas de diversas bandas, experimentados e dinâmicos protomúsicos-intérpretes. As nossas canções-faixas são encomendadas aos melhores compositores de nível mundial. Compramos directamente ao prestigiado arranjador sueco Neils Gustaferson (Dr. Avalanche) e ao produtor Olaff Pitir (Dr. Avalanche), autor-garante de tantos e tão agradáveis êxitos musicais. Isto, por querermos apresentar o melhor retro-garde oriundo do triângulo escandinavo, sem outra preocupação para além do guarda-fatos, a coreografia cosmopolita e a chuva dourada de aviário.»













Nem dá para acreditar! Só 4 euros!

The new boy in town

Foi chamado à última da hora, não tinha chuteiras, pediu-as emprestadas ao colega, entrou em campo e em duas penadas decidiu o jogo. John Ford iria gostar desta lenda-em-construção.
Ele merece. Chama-se Makukula, é luso-congolês, não é estrela, não faz anúncios, joga apenas com prazer e sem manias.

Fixem o nome. E dêem-lhe gás (e chuteiras)!
E o SLB que não fique a dormir...

Ler em Benfica

Que neste país não se faz um esforço sério na promoção da leitura, já todos sabemos, mas mesmo assim há situações incompreensíveis. As freguesias de Benfica e de São Domingos de Benfica não têm uma biblioteca pública, o que é estranho, atendendo às características dos seus habitantes e até à sua densidade populacional.
Em São Domingos, o Gabinete de Estudos Olisiponenses (Geo), instalado no belíssimo Palácio do Beau Séjour, cumpre mais ou menos essa função, embora não seja essa a sua natureza, mas sim disponiblizar informação bibliográfica sobre a cidade. A questão é que até já existe o edifício: o antigo quartel de bombeiros, localizado na Estrada de Benfica, junto à escola Pedro de Santarém C+S+P+B+R+T (eu sei que não é esta a designação, mas o conjunto de letras que sempre acompanha o nome da escola é indecifrável), e até existia data de abertura: Setembro de 2007. Não só a data de abertura não se cumpriu, como nem sequer se vislumbram obras no edifício, nem notícias sobre este atraso e as freguesias continuam sem biblioteca.
Imagem: Palácio do Beau Séjour, Estrada de Benfica, 368

Tropa de Elite: não vi e não gostei

"Homem de preto/

Qual é sua missão?/

É invadir favela/

E deixar corpo no chão."


O canto-de-guerra já é sintomático, mas não se fala noutra coisa em São Paulo que não seja o filme Tropa de Elite. Entre os meus amigos (e inimigos também) de copo e de bate-papo não poderia ser diferente. Pelo que dizem, é mais um filme brasileiro que deturpa a miséria do país - uns pela sua glamourização, outros pelo paternalismo exacerbado e muitos porque é rentável a estética da pobreza. Mas, neste caso, parece-me que ela é tratada com uma visão bem mais à direita, pois narram-na como se fosse uma questão meramente cultural ou comportamental (bem ao gosto classe-média tupiniquim). Além deste absurdo, a tortura é justificada de forma maquiavélica, tipo "não importa o meio desde que o fim seja nobre". O diretor do filme pode até dizer que não é de direita. Mas?! Aliás, não tenho notícia de produtor cinematográfico deste país dizendo-se de direita. Ao contrário: muitos pensam que são de esquerda, mas na realidade são de direita só que ainda não sabem disso. É por estas e outras que não vi o filme, não gostei e não vou vê-lo.


Aqui, reportagem (e algumas cenas) na TV Globo sobre o filme e aqui o sítio oficial.


Nb. Foto de David Prichard (divulgação)