domingo, 21 de outubro de 2007

Vinho com pêro em terras algarvias


Volto à rua principal, pelo caminho para o lado de onde vim. Ao passar pela Praça da República, os rapazinhos que jogavam o berlinde continuam ainda o mesmo jogo. O velho tal e qual: cabeça caída, olhos no chão. Quanto aos homens da porta do café na mesma: dois de cotovelos contra a capota do automóvel, os outros dois sentados nas cadeiras, de espaldares para a frente, e ambos de pernas abertas como quem vai a cavalo. Quando passo, a cena repete-se: todos me olham de través. E o Bar da Tia Anica continua fechado!
Passo o Cinema Topázio, entro numa taberna. Reparo, então, que se trata de uma loja onde se vende de tudo. Mas a área principal, ocupada por mesas e bancos, é a da taberna.
Numa das mesas, copos sobre o tampo redondo de folha, dois homens acompanham o vinho com pedaços de pêras, que cortam e descascam à navalha. Desconfiados, param a manobra e olham-me. Dou a saudação, a que nenhum responde. Continuo até ao balcão e aguardo que alguém me atenda. Demorado, um dos homens levanta-se. Alto e delgado, chapéu preto de pala para os olhos, avia-me um copo de vinho.
- São servidos? - convido.
Agradecem. Teimo, ganho e falamos disto e daquilo. Ambos ainda reticentes, lá me vão respondendo.
- Quando falta a estrangeirada, que é que se espera? - diz-me o sujeito que me veio servir e parece ser o dono da loja. - O ano passado? O ano passado também foi fraco.
- Pouco dinheiro - intervenho eu para animar um pouco mais a conversa.
- Muito pouco - acrescenta o outro, também de chapéu preto puxado para os olhos. - Se a época de banhos é boa, alugam-se muitas casas, os que lá moram vão dormir onde calha, mas lá lhes fica o dinheiro para irem tapando os buracos o resto do ano. Que isto do peixe anda muito aviltado. A maior parte do tempo não há. Se há, que é que ganha um pescador?
Mando vir outra rodada. Que não, que era a vez deles. Pago eu, pagas tu, opondo-lhes razões fortes: estou de passagem, nunca mais poderei retribuir o obséquio.
- Tenho de ser eu a convidá-los.
- Só se me aceitar um pêro! - opõe como condição o taberneiro.
Aceito. Vai a um cesto buscar um pêro. Dá-mo:
- Traz navalha?
- Esqueci-me ao mudar de fato - respondo eu, para manter-me ao nível da situação.
- Corte com a minha. Não é nada má. Tem-me servido.
- É sempre bom uma navalha - acrescenta o outro.
Pelo tom, as frases dos dois homens parecem-me cheias de insinuações. O pedaço de silêncio demora-se. Pensariam que era fiscal dos géneros, polícia e assim por diante?
Apesar das circunstâncias ou talvez por isso mesmo, dou por mim a beber de gosto. O vinho é aberto e claro, leve. Acabo por concordar que é agradável misturar vinho com o pêro. Deixa na boca um odor saboroso, acre. Sorrio para os dois homens, louvando a receita.

*Imagem: Praça da República, Fuzeta.

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