segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Sicko, ou os limites do «cada um por si»

Acabei de ver Sicko, o último documentário de Michael Moore, em ante-estreia no DocLisboa (a estreia será daqui a c.10 dias).
O filme é uma apologia da saúde acessível para todos, centrando-se na denúncia do péssimo sistema de saúde nos EUA, que deixa sem qualquer protecção c.50 milhões de norte-americanos e obrigando os restantes a pagar custos elevados. Um dos problemas da ausência dum serviço nacional de saúde universal é precisamente o excessivo poder que têm as companhias seguradoras de saúde, cuja obsessão com o lucro as leva a recusar pagar operações a pessoas seguradas mesmo sabendo que estas morrerão ou ficarão muito prejudicadas na sua saúde. E isto com a assinatura de médicos. As farmacêuticas tb. cobram preços elevados pelos medicamentos, sem qualquer comparticipação. E vários doentes são simplesmente expulsos dos hospitais e despejados por táxi em associações de apoio.
Aproveita para comparar este sistema com os congéneres canadiano, inglês e francês (haverá algum exagero no extremar dos casos, mas tb. é verdade que a comparação consegue focar-se em aspectos básicos). E com humor, apesar de tudo.
No fim, vai até Cuba com vários heróis voluntários da evacuação pós-11/9 nas Torres Gémeas a quem foi recusado apoio no seu país, e aos quais são ali prestados cuidados de saúde gratuitos. Trata-se dum triste caso, também duma provocação do cineasta e, de par, um acto (evitável) de propaganda para a ditadura castrista, parte que irá decerto concentrar as críticas de quem não quiser debater o essencial do filme.
Em suma, este é um filme muito útil para lançar o debate sobre as políticas de saúde e o serviço público universal nos vários países.
Por cá há um fetiche do privado, patente na moda dos seguros de saúdes e nas críticas generalizantes e repetidas ao sector público, que não tem justificação na maioria dos casos. Os nossos serviços de saúde são dos melhores do mundo: é o que comprovam as estatísticas da ONU. Isto dito, claro que há vários problemas por resolver: maior racionalização dos recursos tendo em atenção a coesão social; corte da promiscuidade público-privado; inclusão da medicina dentária no SNS; redução do peso da indústria farmacêutica (para quando as farmácias sociais?); redução das listas de espera e informação pedagógica sobre estas (para se saber quantos pacientes destas estão dentro de prazos médicos aceitáveis); agilização da integração de médicos imigrantes; controlo racional e transparente das marcações e atendimentos nas consultas. Estes são os principais que me ocorrem agora.
A questão agora é saber se o actual governo aposta mais na racionalização dos recursos no sector público (sem ser via cortes cegos), ou se cede mais às pressões neo-liberais e opta pela solução 'fácil' que é ir privatizando serviços sem nexo nem fiscalização. E se surgem propostas alternativas consolidadas e exequíveis por parte da esquerda.
Apesar do seu grande ego (aqui mais controlado do que noutros filmes, pois aparece pouco no filme e não é voz off) e de alguns momentos demagógicos, Michael Moore é um documentarista de referência na actualidade, tanto no documentário social (onde começou, com Roger & me), como no documentário político (Farenheit, Bowling for Columbine, etc.). Ajudou a debater assuntos importantes num espaço crescentemente afunilado no mero entretenimento, trouxe o documentário a um auditório alargado (nos EUA, mas tb. no mundo inteiro) e deu ânimo a outros cineastas para se aventurarem num género difícil.
É claro que não é o único, e na Europa, por exemplo, o documentário está bem pujante há já vários anos, como bem o atestam festivais de grande êxito e visibilidade como este DocLisboa.

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