Lembram-se do mito da gesta marítima colado aos Painéis de S. Vicente, do infante D. Henrique, etc. e tal? Esqueçam. Esqueçam e ponham-me os olhos neste que é um dos livros sensação do ano: Onde estava vossa mercê nos painéis?, de Gonçalo Morais Ribeiro, numa cuidada edição da Som da Tinta.
A obra tem todos os ingredientes e mais alguns em seu abono: inventividade, sedução, rigor histórico e interpretativo, impressionante trabalho de imagem enquanto prova e acervo documental, uma invulgar atenção cirúrgica ao detalhe aliada a uma viva capacidade de contextualização e de problematização. Humor na forma e em forma. E, sobretudo, ousadia, muita ousadia para avançar por terrenos convencionalmente tomados pelo peso da tradição interpretativa e com muitos guarda-mores ciosos da coutada. Isto, ainda por cima num país propenso ao conservadorismo mental e comportamental, é obra.
O grosso do texto é um conjunto de 6 "entrevistas polípticas" (é o subtítulo da obra), numa simulação de contributos de algumas das personalidades da época: Diogo Gonçalves, Isaac Abravanel, D. Jorge da Costa, D. João D’Almeida, D. Leonor e D. Manuel I. Por eles tomamos contacto com muitos detalhes relativos à produção dos painéis, ao seu contexto político e social, bem como ficamos a saber a tese principal do autor, a de que os painéis foram um tributo do rei português D. Afonso V a Deus, como gratidão e desejo de manutenção da paz com Castela, e à sociedade, uma tentativa de apaziguamento das clivagens entre os poderosos.
Como nos ‘confessa’ o sacerdote Diogo Gonçalves, falando pelo autor, a chave do quadro está na clarividência do rei D. Afonso V e de seus próximos:
"O Espírito Santo indica o bom caminho para a Paz, num tempo de dificuldades para o reino, durante a guerra com Castela por causa da sucessão no trono. E o rei e o príncipe regente estiveram de acordo no princípio para fazer guerra, mas depois tiveram que estar de acordo para fazer a paz. E foi em nome de D. Afonso V mas quem ditava era D. João [II] que já era jurado e era como rei. E os dois estavam muito unidos para fazer e pedir para salvação destes reinos, porque como dizia o Boca Dourada, São João Crisóstomo, o Espírito Santo é um pacto: «Quando depois de uma longa guerra se estabelece a paz, as partes trocam prendas e reféns em sinal de amizade e de garantia. Nós também trocamos as nossas prendas com Deus, entregamos-lhe a nossa natureza humana para que Cristo a elevasse ao Céu, e Ele, como garantia, enviou-nos o Paráclito.»
E assim com a ajuda do Céu e garantia do Espírito Santo fizeram os homens a paz. Os portugueses e castelhanos em Alcáçovas do Alentejo assinavam o tratado e concordavam nas garantias escritas nas terçarias de Moura, e isto foi feito e assinado em 4 de Setembro de 1479, e em 6 de Março, em Toledo, confirmado no ano seguinte [por eles outros, e a 8 de Setembro, dia de Nossa Senhora, pelos nossos, porque logo a 16 era festa da chegada de S. Vicente e ele protegia o Infante D. Afonso na sua partida para Moura, como cativo em reféns" (p. 16).
Só um homem da Renascença conseguiria fazer isto, e o autor é mesmo alguém que foi catapultado da Renascença para os dias de hoje, sem tirar nem pôr. Ele escreveu o texto como se fora em português dos séculos XV/XVI (mellhor seria dizer em galaico-português); ele viajou, por igrejas, museus e livros para comprovar todas as associações possíveis, incluindo a identificação de praticamente todos os figurantes nos painéis; ele ilustrou a obra com imagens quase em filigrana, como se fora um ourives antigo; ele misturou cousas antigas com cousas novas (começa logo pelo título, recriando o enigma dum livro-charada recente, Onde está o Wally?, num contexto antigo); etc., etc..
Foi preciso esperarmos 500 anos para termos um livro assim, desmistificador, ao mesmo tempo leve e sério. Valeu a pena esperar: longa vida à obra! Venham de lá, então, outras extracções.
O lançamento é na próxima 5.ª feira, às 18h30, no Bar A Barraca (Cinearte, Lg. de Santos, Lisboa). Se aprouver, segue-se uma ida ao Museu Nacional de Arte Antiga, ali mesmo ao lado, para uma visita comentada pelo autor aos Painéis de S. Vicente (na última 5.ª feira de cada mês o MNAA está aberto até às 22h; adenda: nesta 5.ª, porém, fechou mais cedo sem pré-aviso).
A obra tem todos os ingredientes e mais alguns em seu abono: inventividade, sedução, rigor histórico e interpretativo, impressionante trabalho de imagem enquanto prova e acervo documental, uma invulgar atenção cirúrgica ao detalhe aliada a uma viva capacidade de contextualização e de problematização. Humor na forma e em forma. E, sobretudo, ousadia, muita ousadia para avançar por terrenos convencionalmente tomados pelo peso da tradição interpretativa e com muitos guarda-mores ciosos da coutada. Isto, ainda por cima num país propenso ao conservadorismo mental e comportamental, é obra.
O grosso do texto é um conjunto de 6 "entrevistas polípticas" (é o subtítulo da obra), numa simulação de contributos de algumas das personalidades da época: Diogo Gonçalves, Isaac Abravanel, D. Jorge da Costa, D. João D’Almeida, D. Leonor e D. Manuel I. Por eles tomamos contacto com muitos detalhes relativos à produção dos painéis, ao seu contexto político e social, bem como ficamos a saber a tese principal do autor, a de que os painéis foram um tributo do rei português D. Afonso V a Deus, como gratidão e desejo de manutenção da paz com Castela, e à sociedade, uma tentativa de apaziguamento das clivagens entre os poderosos.
Como nos ‘confessa’ o sacerdote Diogo Gonçalves, falando pelo autor, a chave do quadro está na clarividência do rei D. Afonso V e de seus próximos:
"O Espírito Santo indica o bom caminho para a Paz, num tempo de dificuldades para o reino, durante a guerra com Castela por causa da sucessão no trono. E o rei e o príncipe regente estiveram de acordo no princípio para fazer guerra, mas depois tiveram que estar de acordo para fazer a paz. E foi em nome de D. Afonso V mas quem ditava era D. João [II] que já era jurado e era como rei. E os dois estavam muito unidos para fazer e pedir para salvação destes reinos, porque como dizia o Boca Dourada, São João Crisóstomo, o Espírito Santo é um pacto: «Quando depois de uma longa guerra se estabelece a paz, as partes trocam prendas e reféns em sinal de amizade e de garantia. Nós também trocamos as nossas prendas com Deus, entregamos-lhe a nossa natureza humana para que Cristo a elevasse ao Céu, e Ele, como garantia, enviou-nos o Paráclito.»
E assim com a ajuda do Céu e garantia do Espírito Santo fizeram os homens a paz. Os portugueses e castelhanos em Alcáçovas do Alentejo assinavam o tratado e concordavam nas garantias escritas nas terçarias de Moura, e isto foi feito e assinado em 4 de Setembro de 1479, e em 6 de Março, em Toledo, confirmado no ano seguinte [por eles outros, e a 8 de Setembro, dia de Nossa Senhora, pelos nossos, porque logo a 16 era festa da chegada de S. Vicente e ele protegia o Infante D. Afonso na sua partida para Moura, como cativo em reféns" (p. 16).
Só um homem da Renascença conseguiria fazer isto, e o autor é mesmo alguém que foi catapultado da Renascença para os dias de hoje, sem tirar nem pôr. Ele escreveu o texto como se fora em português dos séculos XV/XVI (mellhor seria dizer em galaico-português); ele viajou, por igrejas, museus e livros para comprovar todas as associações possíveis, incluindo a identificação de praticamente todos os figurantes nos painéis; ele ilustrou a obra com imagens quase em filigrana, como se fora um ourives antigo; ele misturou cousas antigas com cousas novas (começa logo pelo título, recriando o enigma dum livro-charada recente, Onde está o Wally?, num contexto antigo); etc., etc..
Foi preciso esperarmos 500 anos para termos um livro assim, desmistificador, ao mesmo tempo leve e sério. Valeu a pena esperar: longa vida à obra! Venham de lá, então, outras extracções.
O lançamento é na próxima 5.ª feira, às 18h30, no Bar A Barraca (Cinearte, Lg. de Santos, Lisboa). Se aprouver, segue-se uma ida ao Museu Nacional de Arte Antiga, ali mesmo ao lado, para uma visita comentada pelo autor aos Painéis de S. Vicente (na última 5.ª feira de cada mês o MNAA está aberto até às 22h; adenda: nesta 5.ª, porém, fechou mais cedo sem pré-aviso).
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