Apesar da farta publicação a respeito, ainda há quem pense (simplesmente por pura teimosia) que a paternidade da feijoada é africana. Nada mais equivocado. Essa alegada origem não passa de uma fantasia sem pé nem cabeça e sem qualquer respaldo histórico. Os senhores de escravos não desprezavam as partes “menos nobres” do porco (pé, rabo, orelha e focinho), supostamente recolhidas pelos negros e cozidas na senzala com feijão preto, como insistem muitos desavisados. Ao contrário. Tudo do porco era aproveitado em diferentes receitas. Os tais senhores eram uns glutões de primeira e devoravam o bichinho chafurdento por inteiro (exceto o sangue), mesmo porque estas partes eram (e continuam a ser) igualmente apetitosas.
Por outro lado, a desumanidade a que os escravos eram submetidos se estendeu à cozinha, com uma alimentação incompatível ao trabalho físico que desenvolviam. O que consumiam de alimentos apenas oos mantinham em pé o suficiente para o trabalho. No seu dia-a-dia, os negros comiam basicamente o angu (farinha de milho e água), a farinha de mandioca, uma mistura do milho com feijão bichado (este sim desprezado pelos europeus) e algumas frutas. O pouco de proteína consumida era a que conseguiam obter através da caça de pequenos animais, durante a sua volta do trabalho pra senzala, ou em ocasiões especiais, como festas santas, final de colheita e quando eram expostos à venda.
"A alimentação consistia no estritamente necessário para os “fôlegos vivos” (como eram chamados) não se enfraquecessem demais ou não morressem de desnutrição, com grave prejuízo dos trabalhos que deles se exigia. Interessava ao proprietário conservá-los, como às bestas de carga, em boas condições de uso. A alimentação, quase sempre, não passava de feijão bichado e angu mal cozido. Em outros casos, a pobre besta escravizada tinha de se contentar com laranja, banana e farinha de mandioca". FRIEIRO, Eduardo - Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Ed.Universidade de São Paulo ( 1982), p. 119.
Também é lógico supor que quando os portugueses colonizaram o Brasil trouxeram receitas que formavam a sua tradição culinária. E muitas delas tinham como ingredientes as partes salgadas do porco, como orelha, pé, rabo, língua e focinho. Ou seja, nunca foram “restos” e eram bem apreciados não só pelos lusitanos como também por outros povos europeus.
Em seu livro “Comidas meu santo” (1964), Guilherme Figueiredo nos mostra a semelhança da abençoada feijoada brasileira com muitos outros pratos da culinária européia. Para o autor, a receita é uma “degeneração do cassoulet francês (aqui a receita) e do cozido português” (veja aqui a semelhança com a feijoada trasmontana). A Espanha também entra nesta disputa com o seu cocido madrileño ou maragato (de Castilla y León - aqui a receita) e a Itália com a casseruola, ambos feitos com grão-de-bico.
Bem, vamos deixar de prosa e vamos ao que interessa. Idependente de sua nacionalidade, o que interessa de fato é degustá-la. A maioria dos brasileiros prefere comê-la no inverno, mas como não sou brasileiro e muito menos metódico pra essas coisas de comida e bebida não tenho o menor pudor em devorá-la a qualquer estação do ano, faça chuva ou sol. Assim, aqui vai uma deliciosa receita para quem deseja prepará-la. Reúna toda a disposição possível que a jornada será longa, mas no final será tudo muito recompensador. Pra mim, fazê-la é, sobretudo, um ato quase lúdico. Detalhe: é indispensável saboreá-la na companhia de bons amigos e com muita caipirinha. Bom apetite!
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Outras fontes:
- Internet.
- CASCUDO, Luís da Câmara – “História da Alimentação no Brasil” - 2 vols. 2ª ed. Ed. Itatitaia, Rio de Janeiro (1983).
- ELIAS, Rodrigo – “Breve História da Feijoada “- revista Nossa História, ano 1, n°. 4. Ed. Vera Cruz, São Paulo (janeiroiro/2004).
8 comments:
- e você, já comeu a sua feijoada hoje?... - não deixe para amanhã
Não é possível ler este texto até ao fim sem ficar com água na boca...
Mesmo depois de jantados...
Manolo, deste modo ficou esgotado o assunto em apreço, tudo o mais será desperdício (e sem ser do pobre bicho).
Ainda por cima, com receitas para toda a grande família jeijoca, incluindo a concorrência europeia.
É obra! ;)
Não, caro Anónimo.
Antecipei-me e comi a minha feijoada ontem (sábado), debaixo de um calor escaldante que beirava a casa dos 40°. Só não bebi a caipirinha por recomendação média.
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Salve, Daniel.
Além de ser muito apetitosa (assim como tantos outros cozidos europeus), a feijoada funciona como agregador de pessoas amigas, pois não é possível prepará-la em pequenas porções. Tem de contar com no mínimo 10 bons glutões. Ela também é muito consumida nas famosas rodas de samba (pagode) do Rio de Janeiro. Enfim, a feijoada é pau pra toda obra.
Muito bom Manolo.
Espero que essa proibição médica das caipirinhas termine depressa.
Salve, salve Sofia.
O pior de tudo é que sou sempre sou “convidado” a fazer da danadinha. Creio que logo-logo volto à ativa. Arre, jejum!
ET:
Se este jejum faz bem ao corpo tenho lá as minhas dúvidas. Mas é certo que é péssimo ao espírito.
Como português e apreciador da boa culinária, devo dizer que a feijoada transmontana não é a única variedade de feijoada que se come em Portugal. Existem diversas outras versões, mais ou menos semelhantes à feijoada "dita" brasileira, cuja única peculiaridade é o uso do feijão preto, que não temos na Metrópole.
Em Portugal, além de todas as carnes, também se come o sangue do porco, seco e cortado em postas, que depois se cozem ou fritam.
MMmmmm esto se ve realmente delicioso.
Muebles
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