A propósito das polémicas em torno da flexi-segurança, é fundamental recuperarmos um outro conceito na qual se baseia uma determinada perspectiva sobre a constituição das desigualdades sociais no sistema capitalista, refiro-me ao conceito de exploração. Já uma vez discutimos aqui no Peão a pertinência em utilizá-lo para a análise da sociedade contemporânea. Contudo, parece-me que em todo este debate sobre a necessidade de flexibilizar o emprego com mais protecção social, faz todo o sentido questionar se estas medidas não contribuirão para um acréscimo de exploração.
Em termos muito gerais o objectivo da flexi-segurança é, por uma lado, tornar a contratação laboral menos regulamentada e, por outro, aligeirar a possibilidade de poder despedir mais facilmente, ao mesmo tempo que se investe na generalização e facilitação do acesso aos diversos sistemas de protecção social. Contudo, no que concerne à aplicação dos princípios à sociedade portuguesa, o ênfase é posto sobretudo na primeira parte deste neologismo, a flexibilidade, e não tanto na segunda, a segurança.
É certo que o mercado de trabalho em Portugal é muito rígido, e que isso provoca entraves à mobilidade profissional e à renovação dos quadros das empresas. É certo que alguma precarização profissional nas gerações mais jovens deriva, em parte, dessa inflexibilidade do mercado de trabalho. No entanto, também é certo que em Portugal os vários sistemas de protecção social não só deixam muito a desejar como estão a regredir em termos da universalização dos direitos. A ‘taxação’ dos serviços, o encerramento de escolas, das urgências nos centros de saúde e das maternidades. A inexistência de uma rede de pré-escolar digna desse nome. O mau funcionamento dos transportes públicos e das respectivas ligações entre as várias redes, o tempo que se leva entre trabalho e casa. O péssimo funcionamento do sistema de justiça e o nível de desconfiança que este fomenta, etc. Todos estes exemplos e muitos outros levam a que legitimamente o cidadão desconfie da flexi-segurança.
Portugal é dos países mais desiguais da Europa. Devido a este facto, o acesso aos melhores serviços (incluindo os públicos) é muito diferenciador. Esta situação é potencialmente conflitual na medida em que os interesses que dela decorrem não resultam simplesmente daquilo que «os indivíduos têm, mas, também, daquilo que os indivíduos fazem com o que têm». Neste sentido, o conceito de exploração permite evidenciar «que os exploradores não somente têm interesse em limitar as oportunidades de vida dos explorados, mas que deles dependem para a realização dos seus próprios interesses. Esta dependência dos exploradores em relação aos explorados confere a estes últimos uma capacidade inerente de resistir» (Queiroz, 2005: p.41*). Ou seja, ao se tentar aplicar a tal flexibilidade com maior segurança num país fortemente desigual onde os indivíduos das classes menos privilegiadas se sentem discriminados e desconfiam de quase tudo o que deriva dos sistemas públicos, correr-se-á um forte risco de criar um ambiente propício para o incremento das relações de exploração.
Não ponho de lado a importância da flexi-segurança, mas a estratégia política deveria primeiro aprofundar os mecanismos de segurança e garantir que os cidadãos confiem no Estado. Aos dinamarqueses foi-lhes primeiro garantida essa confiança!
*Maria Cidália Queiroz (2005), Classes, Identidades e Transformações Sociais, Porto, Campo das Letras.
Em termos muito gerais o objectivo da flexi-segurança é, por uma lado, tornar a contratação laboral menos regulamentada e, por outro, aligeirar a possibilidade de poder despedir mais facilmente, ao mesmo tempo que se investe na generalização e facilitação do acesso aos diversos sistemas de protecção social. Contudo, no que concerne à aplicação dos princípios à sociedade portuguesa, o ênfase é posto sobretudo na primeira parte deste neologismo, a flexibilidade, e não tanto na segunda, a segurança.
É certo que o mercado de trabalho em Portugal é muito rígido, e que isso provoca entraves à mobilidade profissional e à renovação dos quadros das empresas. É certo que alguma precarização profissional nas gerações mais jovens deriva, em parte, dessa inflexibilidade do mercado de trabalho. No entanto, também é certo que em Portugal os vários sistemas de protecção social não só deixam muito a desejar como estão a regredir em termos da universalização dos direitos. A ‘taxação’ dos serviços, o encerramento de escolas, das urgências nos centros de saúde e das maternidades. A inexistência de uma rede de pré-escolar digna desse nome. O mau funcionamento dos transportes públicos e das respectivas ligações entre as várias redes, o tempo que se leva entre trabalho e casa. O péssimo funcionamento do sistema de justiça e o nível de desconfiança que este fomenta, etc. Todos estes exemplos e muitos outros levam a que legitimamente o cidadão desconfie da flexi-segurança.
Portugal é dos países mais desiguais da Europa. Devido a este facto, o acesso aos melhores serviços (incluindo os públicos) é muito diferenciador. Esta situação é potencialmente conflitual na medida em que os interesses que dela decorrem não resultam simplesmente daquilo que «os indivíduos têm, mas, também, daquilo que os indivíduos fazem com o que têm». Neste sentido, o conceito de exploração permite evidenciar «que os exploradores não somente têm interesse em limitar as oportunidades de vida dos explorados, mas que deles dependem para a realização dos seus próprios interesses. Esta dependência dos exploradores em relação aos explorados confere a estes últimos uma capacidade inerente de resistir» (Queiroz, 2005: p.41*). Ou seja, ao se tentar aplicar a tal flexibilidade com maior segurança num país fortemente desigual onde os indivíduos das classes menos privilegiadas se sentem discriminados e desconfiam de quase tudo o que deriva dos sistemas públicos, correr-se-á um forte risco de criar um ambiente propício para o incremento das relações de exploração.
Não ponho de lado a importância da flexi-segurança, mas a estratégia política deveria primeiro aprofundar os mecanismos de segurança e garantir que os cidadãos confiem no Estado. Aos dinamarqueses foi-lhes primeiro garantida essa confiança!
*Maria Cidália Queiroz (2005), Classes, Identidades e Transformações Sociais, Porto, Campo das Letras.
13 comments:
Olá Renato. Não queria fazer um comentário longo, mas apenas tocar em dois ou três pontos importantes da discussão:
1) Continuamos a falar de "exploração" sem a definir. Sabes que isto é muito importante porque a sua indefinição está inversamente relacionada com a mensagem política e emocional que envia. É uma "palavra-fetiche", e de conceito já quase não tem nada. Nesta caso, para utilizar as palavras do Carvalho da Silva, serve mesmo para "enviesar" o debate :).
2) "Não ponho de lado a importância da flexi-segurança, mas a estratégia política deveria primeiro aprofundar os mecanismos de segurança e garantir que os cidadãos confiem no Estado."
Sem discordar grandemente do diagnóstico que fazes da situação do país relativamente às desigualdades, em relação aos serviços públicos, etc. - que não ajuda nada aos níveis de capital social - a pergunta é como se muda. O que fazer, portanto? O que estás a dizer é que arriscado mudar - por todos os factores que elencas -, não que se não se justifica a mudança. Uma coisa é traçar quadro negro - partilhado por quase todos -, outra coisa é saber comos e sai disto. E isso sabes que é aquilo que verdadeiramrente conta num momento destes, muito mais do fazer um diagnóstico sobre o qual estamos todos razoavelmente de acordo. É que dar confiança aos cidadãos (1) demora tempo, muito tempo; (2) não depende apenas do Estado, mas também dos parceiros sociais que agregam os interesses e representam, melhor ou pior, os interesses dos cidadaos. O problema é que (1) não temos esse "tempo" e (2) temos parceiros sociais que exploram as legítimas preocupações das pessoas, surfando na onda da contestação fácil, em vez de procurarem encontrar uma situação de compromisso. O mesmo Carvalho da Silva que está numa reunião com os elementos da Comissão Europeia e outras instâncias institucionais é o mesmo que vem cá para fora, a meio da reunião, dizer isto e aquilo para dar razão aos que protestavam cá fora. Falavas de confiança: achas que é possível confiar em pessoas/instituições destas?
E o que precisamos é de soluções de compromisso, que sejam as menos más possíveis. Porque se a situação é tão má como dizes que é, ficar na mesma não é uma solução. E é bem possível que, tal como a democracia é o pior dos sistemas políticos à excepção de todos os outros, a flexi-segurança seja, no nosso contexto actual, o pior sistema de relações laborais à excepção de todos os outros.
abraço
Hugo
Definição de exploração:
«São três os critérios que podem definir uma situação de exploração: 1º)o bem-estar material de um grupo populacional depende das privações materiais do outro; 2º)essa relação causal estabelecida na afirmação anterior envolve a exclusão assimétrica dos explorados do acesso a certos recursos produtivos; 3º) a diversificação das situações de bem-estar envolve a apropriação dos frutos do trabalho dos explorados por aqueles que controlam os recursos produtivos relevantes. O bem-estar do explorador depende do esforço e não somente das privações do explorado» (Queiroz,2005: p.55)
Objectivo deste post, é o de chamar a atenção para o perigo que se corre em importar um modelo social que assenta em dois pilares essenciais: a eficácia, e generalização democrática dos serviços públicos; uma sociedade com níveis de desigualdade pouco assimétricos.
Portugal está longe de corresponder a este perfil. Por este motivo, urge ponderar se o aumento da flexibilidade sem garantir uma eficácia minimamente decente de protecção, não levará a que os recursos já de si escassos sejam ainda mais apropriados por quem já é privilegiado à partida.
Um ponto que me escapou no coment´rio anterior:
3) "mas a estratégia política deveria primeiro aprofundar os mecanismos de segurança"
Resta tu dizeres a que mecanismos de segurança te referes. é que se não o fizeres, ficamos precisamente no mesmo sítio - que é mau, como o teu diagnóstico aponta. Ora, isto esquece que a flexi-segurança não tem a palavra "segurança" lá apenas para ingles ver. A segurança assenta na capacidade das pessoas dependerem menos da entidade patronal e de um dado emprego. Eu acho um dos reais enviesamentos do debate sobre a flexi-segurança passa por substimar, por exemplo, os graus de liberdade potencial que dá ao trabalhador para se ir embora quando se sente explorado. A capacidade de exit não é apenas mais forte para o patrao, mas para o trabalhador também. Num sistema como o nosso, as pessoas têm imenso medo de perder o emprego, porque o mercado não é fluído. Por isso, têm toda a probabilidade de se deixarem tiranizar no emprego - mesmo com eventuais leis que a protejam... é que não há nenhuma lei que obrigue as que as relações laborais sejam de qualidade - porque sabem que aquele emprego vale ouro. E vale ouro porque é dificil encontrar outro, se se virem (novamente) no desemprego. e isto acontece se o mercado de trabalho for excessivamente regulamentado. E assim se fecha um círculo que parece, à distância, e de acordo com a lei, altamente virtuoso (do lado do trabalhador), e se transforma num circulo vicioso, e que nao impede a tiranização do trabalhador pelo patrao. Ora, num esquema de flexi-segurança - estou a falar em moldes ideal-típicos -, se for mais fácil encontrar criar emprego, é também mais fácil para as pessoas arranjarem emprego. Isto pode significar que as pessoas não têm que ficar presas ao mesmo emprego com um medo de morte de o perder. Uma das coisas que se diz, por vezes, a brincar do modelo dinamarquês, é que não não os patrões que escolhem os trabalhadores, mas os trabalhadores que escolhem os patrões. E, sem exagerar a suposta magia deste mecanismo (não há nada de mágico aqui), acho que importante não negligenciar totalmente esta porta que se abre. Não me parece que seja muito interessante à esquerda defender que a pessoa esteja empregue a toda o custo, independentemente do que se passa na relação laboral, nem que ela seja indiferente aos que ficam de fora do mercado de trabalho porque a lei (entre outras coisas) não incentivam a criação de emprego. E sem criação de emprego, concordarás comigo, não vamos a lado nenhum. A não ser para que, a prazo, estejamos a contribuir para a formação de um partido de extrema-direita a sério, xenófobo e tudo o mais, em Portugal. É preciso agir antes que seja tarde de mais.
Podia entrar em todos os outros pressupostos da flexi-segurança, que apontam para a centralidade da formação contínua e para uma melhoria tendencial das situações das pessoas fora de um emprego, em troca de uma maior flexibilidade. Eles dependem do dinheiro disponível e da qualidade das deciões entre parceiros institucionais na construção do esquema. Acho apenas que eles devem ajudar a perceber que a flexi-segurança, como expliquei aqui (http://veu-da-ignorancia2.blogspot.com/2007/07/no-matem-o-beb.html), vai obrigar a mudar as mentalidades. Não são os empregos que é imperioso proteger, são as pessoas, estejam elas empregadas ou nao. A esquerda tem que saber se quer proteger o trabalho (= os que têm um trabalho) ou os trabalhadores (tenham um trabalho num dado momento ou não), e contribuir para o desenho dos mecanismos de segurança individual e colectiva, e a sua implementação eficaz no terreno. Mas essa, também já sabemos, é sempre a mesma discussão de sempre: se a esquerda quer aceitar correr o risco de fazer parte da mudança ou se quer apenas continuar a acentuar os riscos da mesma, mantendo o "status quo" (e os que ganham e perdem com ela), ao mesmo tempo que torna a mudança ainda mais difícil, porque apenas capitaliza o medo legítimo das pessoas. Se "colabora" ou se é "resistente". No fundo, no fundo, eu acho que a maior parte das vezes, independentemente do tema, é isto, fundamentalmente isto, que está em discussão :)
Nós não somos a Dinamarca nem nenhum dos países mais ricos, onde estes esquemas prevalecem, é certo; mas dar pequenos e cirúrgicos passos nessa direcção parece-me bem mais importante do manter tudo como está - ou então imaginar um esquema laboral onde só esteja configurada a palavra "segurança", descartando toda e qualquer flexibilidade como má, e idêntica a "exploração" -, que começa a aproximar-se do que é bem mais típico de alguns países, por exemplo, da América Latina (altas desigualdades, baixo capital social, mercados laborais muito dualizados entre o sector público e sector privado, peso enorme do mercado negro, etc.).
Para onde queremos ir, afinal?
(e repito: a prazo, se houver talento, podemos ter um "Le Pen português". Eu espero que isso nunca venha a acontecer, mas o mais responsável a fazer é evitar que haja pessoas para o apoiar: pessoas no desemprego (por vezes de longa duração), sem formação profissional decente, a quem prometeram segurança a todo o custo, e que no fim não viram nada, porque quem promete e apenas clama por segurança na lógica de "um emprego para a vida" sabe ou devia saber que não pode prometer isso. Nem devia falar ou o protestar como se isso fosse exequível.)
abraço
Hugo
Ó Hugo não venhas a acenar papões 'fascizóides' para bem do debate.
A questão parece-me muito clara, a flexi-segurança assenta num pressuposto caro à esquerda: a universalização da protecção social. Ora o que nós temos assistido em Portugal, nestes últimos anos, é uma regressão nessa suposta universalização. Não te parece isto minimamente contraditório: como é possível gerar confiança entre as pessoas quando as zonas e os grupos mais periféricos se sentem cada vez mais periféricos devido a determinadas políticas (ditas) públicas?
Esqueci-me do abraço :)
Antes de ir à questão da "exploração", que me parece central (e pelos maus motivos, depois explico), vou a estas duas questões:
1) os papões fascizóides aparecem quando são exploradas as situações que potenciam a sua existência. Apenas pergunto, preventivamente, se certas atitudes reivindicativas em nome da exclusiva "segurança" não podem gerar situações que têm consequências que são diametralmente opostas - e facilmente compreensíveis. Em França, Le Pen cresceu num terreno em parte favorecido pelas reformas falhadas e promessas por cumprir de Mitterrand. Mas o meu argumento é valido com ou sem papão fascizóide no futuro. O argumento é o desemprego massivo e algum de longa duração que o nosso istema de relações laborais assente num patronado e num sindicalismo incapazes de se entender e numa lei excessiva rígida em alguns sectores ajudar a criar. Essa é a questão.
2) A questão do universalismo: vamos ver os exemplos que dás do recuo do universalismo da protecção social. O único que se enquadra na definição de universalimso é a questão das taxas, sendo que elas já existiam e portanto o sistema nunca foi 100% universal (alias a lei diz que ele deve ser tendencialmente). Portanto o que tens é um alargamento das taxas (coisa que aliás nem sequer concordo, acho inútil e sem grande sentido); quanto às escolas e maternidades fechadas, se queres seguir a questão do universalismo, então eles não se enquadram no teu conceito. O sistema não ficou menos universal; o seu efeito foi fazer subir a qualidade média dos equipamentos. Se os equipamentos foram fechados foi porque não deviam estar abertos; o acesso universal das pessoas ao sistema de educação ou de saúde não é afectado por estas medidas.
Quanto à contradição: independentemente de haver ou não contradição, o que se passa é que é preciso que as pessoas entendam que, não havendo dinheiro, é preciso cortar numas coisas para poder sustentar outras. Não há saída para esta coisa, infelizmente. Se houvesse dinheiro para tudo, se o cobertor fosse comprido o suficiente, nao precisamos de tirar de um lado para por noutro. Mas o cobertor é curto. Nesse sentido, é preciso fazer ajustes e pensar atentamente nos "trade-offs" a fazer, porque eles são inevitáveis.
Repito, não é contraditório, mas faz parte da mesma estratégia coerente. Imagina que não estamos a falar de um orçamento estatal mas de um familiar (não levemos a analogia entre o Estado e família para o plano ideológico, sff; isto pretende ser um exemplo neutral). O pai diz ao filho que agora, porque a situação de endividamente familiar piorou, vai haver menos dinheiro X para que haja mais dinheiro para Y, tido como mais importante na economia doméstica - e, também, para o futuro do filho). Claro, o filho pode achar isto e aquilo, mas no fundo é bem possível que, se bem que doam, as medidas sejam essenciais para que o futuro seja melhor para todos. O objectivo de melhoria do bem-estar colectivo continua a ser o mesmo, mas há ajustes necessários a que não é possível fugir.
Se me perguntas: "como é possível gerar confiança entre as pessoas quando as zonas e os grupos mais periféricos se sentem cada vez mais periféricos devido a determinadas políticas (ditas) públicas?"
A resposta não é fácil, mas eu aponto duas coisas. Serviços públicos com mais qualidade e não menos universalistas (tirando a questão das taxas moderadoras) são, como bem dissete no post, elementos importantes para a gestação de capital social. A sua qualidade, capacidade de atendimento, segurança, eficácia, etc. são muito importantes para a ideia que cidadão tem do Estado. Ora, o fecho das maternidades e das escolas pretende melhorar a qualidade do serviço e torná-lo, não piorá-lo. Nesse sentido, a haver algum efeito, vai no caminho correcto. Escolas com, por exemplo, 9 alunos que condenam os alunos a não passar do 6º ou 7º de escolaridade não são escolas que mereçam estar abertas.
Agora, há um elemento de resposta mais importante a curto prazo, no imediato. É a resposta dos parceiros sociais. Aqui eles tem a escolher entre fazerem barulho na capitalização da incerteza imediata legítima destas pessoas - e aqui falo de autarcas, sindicatos e outros partidos - ou se contribuem para um clima de confiança mútua para o enfrentar de situações difíceis, mas que pretendem melhorar o que é/era a realidade vigente (que, sabemos bem, era em muitos destes casos absolutamente inaceitável). Eu sei que me estou a repetir, mas é porque a questão é sempre a mesma: há quem surfe no descontentamento natural e há quem tenha que segurar as pontas para que a estratégia de desenvolvimento não caia em pedaços. Os primeiros ajudam a destruir a confiança; os segundos fazem os possíveis para que ela não desapareça.
um abraço
Ainda antes de ir à questão da exploração, sobre a importação de modelos; escreveste:
Objectivo deste post, é o de chamar a atenção para o perigo que se corre em importar um modelo social que assenta em dois pilares essenciais: a eficácia, e generalização democrática dos serviços públicos; uma sociedade com níveis de desigualdade pouco assimétricos.
«Portugal está longe de corresponder a este perfil. Por este motivo, urge ponderar se o aumento da flexibilidade sem garantir uma eficácia minimamente decente de protecção, não levará a que os recursos já de si escassos sejam ainda mais apropriados por quem já é privilegiado à partida.»
Eu acho que o argumento da importação de modelos é, neste caso em concreto, em última análise, frágil. Primeiro porque ninguém vai aplicar algo que é pré-formatado e tem contornos absolutos. Por um lado, pretende-se é encontrar uma filosofia nova para enquadrar o desenho e implantação de uma estratégia profícua. Não se trata de flexibilizar a vulso, sem critério; é assumir que temos que pensar o nosso mercado laboral de forma diferente. Por outro lado, ninguém vai fazer uma revolução resultado da importação de um monstro que não se encaixa na nossa realidade. As pessoas hoje sabem o suficiente das "varidades dos capitalismos" para saber o que pode ser transposto, como, quando, etc.
Por isso, o mais importante é se estamos a ir no caminho que queremos seguir ou não. Porque a questão do desajuste dos modelos importados é um pau de dois bicos.
Imagina que estás em 1976/77 a pensar criar um Sistema Nacional de Saúde nos moldes praticamente idênticos ao modelo btitânico (aqui está um claro exemplo de importação); seria exequível na altura? Eu acho que a resposta mais fácil era que seria muito difícil, senão impossível. Provavelmente não tínhamos médicos, hospitais, centros de saúde, dinheiro, etc. etc. para criar de um dia para o outro o sistema, e nos primeiros tempos seria de esperar um tal afluxo que bloquearia os serviços. Mas é precisamente essa a questão: o sistema não era para criar de um dia para o outro. Nada se faz assim. É preciso tempo, trabalho e confiança que estamos a ir na direcção certa e não na errada. Na questão da flexi-segurança o que está em causa é se esta é a estratégia correcta de futuro, a ser adaptada aos poucos, sem criar desequilíbrios excessivos no mercado de trabalho e na sociedade.
Não consegues sair do teu dualismo (cartesiano?).
"Se os equipamentos foram fechados foi porque não deviam estar abertos; o acesso universal das pessoas ao sistema de educação ou de saúde não é afectado por estas medidas".
Ora aqui está o nervo da questão. Imagina uma imagem absurda: segundo essa concepção poderíamos construir um único mega-hospital apetrechado com a última tecnologia de ponta localizado no centro que garantisse o acesso aos 10 milhões de portugueses. De facto, seria garantido a universalidade, mas não a igualdade de oportunidades no acesso. Ou seja, este único hospital poderia até atenuar teoricamente (estatisticamente) as desigualdades (reduziria os custos da saúde), mas na prática estas aumentariam exponencialmente para as pessoas localizadas na periferia.
Esta metáfora pode transpor-se para a questão da segurança. Em todas essas medidas que tu consideras inevitáveis, as pessoas afectadas não foram de certeza as mais privilegiadas, por exemplo, uma família da classe média-alta residente em Lisboa só sentiu a mudança pelos mass media. Mas uma família de trabalhadores residentes em zonas mais periféricas e menos urbanizadas sofreu na pele o impacto do encerramento do centro de saúde ou da escola do filho. Por um motivo muito simples, a sua vida complicou-se mais e ainda por cima com custos acrescidos (por exemplo, de deslocação e de risco). Afinal quem é que queremos salvaguardar com a segurança?
Um abraço
Continuo a achar que essa definição de "exploração" é
excessivamente abstracta e ampla, um pouco na linha do nosso debate anterior em Abril. Era, para torná-la válida, necessário introduzir tantntas gradações e qualificações que não saíamos daqui: por exemplo, sobre o que é o "esforço" - não haverá esforço "legítimo"
e "necessário" que não configure relações de exploração -; no que é "exclusão assimétrica" - pode esta ter alguma justificação, e se sim, "quanta" exclusão é justificada? -; os frutos do trabalho são para ser distribuidos equitativamente, ou há aqui assimetrias que são legítimas, etc. etc. Já para não falar daquilo que uma definição como esta ignora, que é se o esforço do "explorado" não é algo que faça sentido a largo prazo, permitindo uma melhoria sensível do seu bem-estar; ou se o risco do empresário (que pode começar como trabalhador e, através do seu empreendedorismo, tornar-se um capitalista só mais tarde; isto implica estabelecer uma diferença entre o empresário 'puro' e o capitalista 'puro') deve ou nao ser premiado, pelo seu risco e iniciativa. Ou onde ficam os direitos de propriedade. Ou se o trabalho, em certos contextos, não está em condições de "explorar" o capital (quando, por exemplo, uma empresa está em tão más condições que os direitos dos trabalhadores impedem a sua reestruturação, e acaba tudo na falência, e o empresário, que colocou a sua fortuna na empresa, acaba sem nada?).
A discussão é longa e não vale apenas explorar todos os pormenores (podia ainda dizer que essa ideia de exploração só presta ateñção aos trabalhadores, e não aos cidadãos: terá o cidadão que não trabalha (por ex. uma mãe "doméstica"), um direito à partilha dos frutos do trabalho enquanto indivíduo? Se a definição apresentada for levada às suas últimas consequências, a resposta é "não", e esta é muito importante para a questão do universalismo das políticas sociais, que se centra não na partilha dos frutos do trabalho mas nos direitos de cidadania de trabalhadores e não-trabalhadores). Esta é a diferença da esquerda (de pendor) marxista e a esquerda social-democrata.
Ao contrário do que possas pensar, isto não são pormenores. São elementos centrais na definição e aplicabilidade/utilidade, teórica, empírica e política, do conceito.
É que não podemos falar de "desigualdades", exclusões" e "assimetrias" no
abstracto. Temos que saber se elas são justas ou não. E esta é a questão fundamental a que a exquerda, na teoria da exploração, foge sempre, sempre.
Dizer que há desigualdades assentes em relações causais entre as assimetrias
parece querer dizer que elas são injustas por definição; no limite, isto implica trabalhar, por ausência, com uma teoria da justiça que depende de
mais elementar igualitarismo. E isto não é aceitável, seja normativa, seja
empiricamente.
Dito isto, eu não excluo minimamente que haja situações empiricas de exploração. Mas para isso precisamos de uma teoria muito melhor para evitarmos amálgamas e o populismo a que se presta o seu uso automático.
Sobretudo, a questão central é que eu acho um erro a esquerda repousar a identidade e argumentação sobre a existência de exploração. É por isso é que o conceito não é, em certos círculos, posto de lado, mesmo que analiticamente e empiricamente deixe tanto, mas tanto a desejar. Há um certo fetichismo com a própria noção, como se a esquerda deixasse de existir se o abandonássemos. Se estamos a falar de uma esquerda com pretensoes quase-revolucionárias, eu percebo; agora, se estamos a falar de uma esquerda reformista e social-democrata, o conceito não tem praticamente uso político nenhum hoje, nos nossos países: basta ver aliás que os países mais igualitaristas e prósperos do mundo abandonaram o mais cedo possível o seu argumentário marxista e de "luta de classes" e perceberam como o jogo pode ser jogado a favor de todos, e em particular dos mais fracos.
Para finalizar a minha posição: 1) a exploração existe, sim; 2) precisamos de uma teoria muito boa para saber localizá-la e avaliá-la; 3) mesmo duvidando que esquerda tenha uma teoria da exploração coerente e forte que lher permita defender uma série de posições com base nela não acho que a esquerda, pelo menos a social-democrata, necessite
dela. A esquerda não necessita do conceito no combate político em paises relativamente prósperos e democratas do Primeiro mundo.
Em países do Terceiro Mundo, onde a exploração será algo bem mais banalizada e as instituições democráticas frágeis, as coisas já podem ser diferentes, e é não excluo que possa ser um argumento politicamente importante.
desculpa os "lençóis" e um abraço,
Hugo
"segundo essa concepção poderíamos construir um único mega-hospital apetrechado com a última tecnologia de ponta localizado no centro que garantisse o acesso aos 10 milhões de portugueses".
Sim, mas nem 8 nem 80, sabes que o teu exemplo não existe, precisamente porque nãio se trata de uma filosofia rígida, mas de um equilíbrio difícil entre recursos e contextos locais.
E o que bem mencionas como "igualdade de acesso" já existe na escolas, onde há transporte assegurado.
De qualquer forma, aquelas escolas não fazem bem nenhum à outra igualdade, a de "oportunidades". Aqueles equipamentos não servem para garantir igualdade nenhuma, a não ser a "igualdade do beco sem saída".
«Esta metáfora pode transpor-se para a questão da segurança. Em todas essas medidas que tu consideras inevitáveis, as pessoas afectadas não foram de certeza as mais privilegiadas, por exemplo, uma família da classe média-alta residente em Lisboa só sentiu a mudança pelos mass media. Mas uma família de trabalhadores residentes em zonas mais periféricas e menos urbanizadas sofreu na pele o impacto do encerramento do centro de saúde ou da escola do filho. Por um motivo muito simples, a sua vida complicou-se mais e ainda por cima com custos acrescidos (por exemplo, de deslocação e de risco). Afinal quem é que queremos salvaguardar com a segurança?»
Calma, não misturemos a questão da flexisegurança com isto do fecho de equipamentos, são coisas muitíssimos diferentes.
Estás a esquecer-te que a deslocação para as escolas não custa mais dinheiro às pessoas e é assegurado por meios publicos (ou em parceria, por meios privados). Quanto às urgências, um serviço melhor de ambulâncias deve permitir compensar a maior distância, mas não sei exactamente como funciona na prática (pelo menos devia funcionar assim). No caso das escolas, não há custos familiares. E os ganhos de qualidade e de escala são incomensuráveis. Não percebo, sinceramente, como as pessoas podem defender escolas onde a probabilidade das crianças de abandonarem a escola era altissima e confrangedora. Francamente, não percebo, que à esquerda, as pessoas continuem a defender a existencia desses sitios, que são/eram uns autênticos buracos. A sério, não percebo. Já que falas das famílias de classe média urbana, eu gostava mesmo era de saber se eles aceitavam que os seus filhos frequentassem escolas assim. Os serviços públicos não se defendem com o contínuo proteccionismo da mediocridade.
Quanto ao "dualismo (cartesiano?)", é apenas realismo. É a posição de quem tem que decidir, mesmo que a melhor solução à vista continue a ser deficitária em milhões de aspectos.
Estou à sempre à espera das terceiras e quartas e quintas opções. Se foram boas e exequíveis, sou o primeiro a discutir e, se necessário, a subscrever.
«Continuo a achar que essa definição de "exploração" é
excessivamente abstracta e ampla, um pouco na linha do nosso debate anterior em Abril. Era, para torná-la válida, necessário introduzir tantntas gradações e qualificações que não saíamos daqui: por exemplo, sobre o que é o "esforço" - não haverá esforço "legítimo"
e "necessário" que não configure relações de exploração»
Concordo que o significado de “exploração” não seja plenamente objectivo, mas essas tuas reticências podem aplicar-se a qualquer outro conceito que normalmente utilizamos como um dado relativamente adquirido. Por exemplo, o de mercado. Em última instância este também é uma abstracção. No entanto, isso não invalida que o utilizemos como categoria de análise (ontológica e até fenomenológica). Ora bem, a noção de exploração tem por base um pressuposto: os recursos económicos são limitados e, ainda por cima, mal distribuídos. Logo há grupos que são privilegiados porque acedem a uma porção muito maior de recursos e outros que, em contrapartida, são excluídos de aceder. As relações de produção são simultaneamente o reflexo e a constituição dessa assimetria. Quando determinados grupos são arredados de certos recursos (económicos, culturais, escolares...) gera-se necessariamente uma relação de exploração.
Ora partindo deste pressuposto cabe ao Estado atenuar e inverter essa assimetria não só através da sua capacidade redistributiva, mas também pela capacidade propulsora de gerar desenvolvimento. Por exemplo, se certas zonas são autênticos ‘buracos negros’, a solução não está em torná-los ainda mais ‘negros’. Para deixarem de ser buracos o Estado tem de ser uma espécie de agente catalizador, através da injecção de políticas activas. A manta é curta mas tornar-se-á ainda mais curta se continuarmos a insistir que o encerramento, o corte, a taxa são inevitáveis.
A comparação com o conceito de "mercado" não me parece correcta. É que mercado é ou deve ser uma categoria descritiva, enquanto a exploração é uma categoria tem uma função eminentemente ideológica. O mercado pode ser bom ou mau dependendo do contexto da sua aplicação enquanto tecnologia de coordenação de pessoas e bens; por definição, não há "exploração" boa.
De qualquer forma, o problema com tão uma vasta definição de "exploração" é que terias que a aplicar a casos onde duvido que a gostarias de aplicar. Por exemplo, a exploração dos desempregados pelos empregados. Os empregados são "privilegiados porque acedem a uma porção muito maior de recursos e outros que, em contrapartida, são excluídos de aceder. As relações de produção são simultaneamente o reflexo e a constituição dessa assimetria". E, para um dado bolo orçamental/salarial, quanto mais os empregados recebem, menos fica para receber para os desempregados (falemos no sector público, ou no sector privado, através de mecanismos diferentes). Também aplicarias aqui o conceito? Neste caso, parece-me perfeitamente enquadrável. Duvido é que a esquerda concordasse. (bom, para já não tocar na "exploração" de que a direita bem gosta de falar e que, em dados contextos, não é propriamente estúpido, que é exploração dos que assumem o risco pelo Estado, via a extracção, que pode ser excessiva em alguns casos, de impostos).
E o acesso de dados "grupos" - não serão "pessoas"? - a dados recursos, é ou não justificado em algumas situações? Se sim, quais? É que se não, então temos que a única coisa que se justifica é que todos tenhamos tudo por igual - o que mencionei como mais elementar igualitarismo, incompatível com sociedades complexas como as nossas.
Por isso é que eu acho que se devia ter particular cuidado com o seu uso - no limite, fazer uma moratória. Eu posso concordar em absoluto com o facto do ciclo vicioso que mencionaste ser negativo para o problema da justiça social e provocar a reprodução das desigualdades sem utilizar a categoria de "exploração" que, mais uma vez, depende de uma teoria da justiça que me parece que a esquerda tem subdesenvolvida - tirando o tal igualitarismo elementar; é que não podemos falar negativamente de exploração sem ter um referente positivo, isto é, uma situação de não-exploração. E esta eu não a vejo desenvolvida, nem sequer nos seus traços mais simples.
Quanto ao papel do Estado no desenvolvimento do interior, concordo contigo no principio. Até posso concordar contigo na estratégia alternativa (por ex., regionalização). Agora por favor não me venham defender aquelas escolas. Por alguma razão as pessoas fogem delas; e só não foge quem não pode. Eu gostava mesmo de saber se as pessoas da classe média urbana colocavam lá os seus filhos. Não me leves a mal, mas o que me parece é que essas escolas são boas é para os filhos dos outros.
Portanto pensemos numa estratégia de desenvolvimento alternativo para o interior. Aquelas escolas, com todos os outros equipamentos que la estão, não impediram a que se chegasse onde estamos. Enquanto não temos um modelo novo, precisamos, entretanto, melhorar a qualidade onde é possível, mesmo que seja temporário até termos as condições políticas de o colocar em prática.
abraço
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