sábado, 8 de março de 2008

Cuidado com certos editorialistas

Hoje foi um dia histórico para o movimento sindical português e para a luta laboral de uma classe socioprofissional: os PROFESSORES. Quase dois terços estiveram no Terreiro do Paço. É impressionante! Estive lá e vi professores de todas as cores políticas e, sobretudo, ouvi gente a assumir que esta tinha sido a sua primeira manifestação da vida. Este movimento ultrapassa largamente a influência e a representação dos sindicatos.
Muito se tem escrito nestes últimos dias sobre educação. Toda a gente lançou opiniões, editoriais, ‘bitaites’… Por exemplo, dois directores de jornais de referência não se inibiram de debitar uma série de disparates representativos de uma concepção que aponta para o desmantelamento da escola pública: José Manuel Fernandes do Público propõe que se utilize a medida dos rankings dos exames nacionais para avaliar directamente os professores; já Henrique Monteiro do Expresso propõe que os professores sejam avaliados directamente por um futuro gestor de escola. Estas e outras declarações para além de extraordinárias são, sobretudo, preocupantes: porque se apropriam desta conjuntura de crise para anunciar o falhanço da escola pública, salientando que esta se deve transformar numa espécie de empresa que gere empregados (os profs) e clientes (os alunos). Para estes a culpa dos maus resultados do sistema tem um nome: a maldita pedagogia. Penso que os professores deveriam pensar muito bem nas consequências da pós-manifestação. Se embarcarem num discurso que enfatiza a crise, o mal-estar, a ineficácia do sistema, correm o risco de legitimarem perspectivas como estas.
Desde há muito que digo que um dos problemas deste Ministério não tem sido os princípios que defende mas a forma como os regulamenta, descurando, muitas vezes, o que à partida parecem ser meros pequenos pormenores. O que se conclui de toda este processo é que os detalhes valem tanto como os princípios. O exercício da política não pode menosprezar o impacto das pequenas coisas na vida das pessoas. O acumular de desentendimentos, frustrações, desmotivações, cansaços, etc., propicia um ambiente de permanente conflitualidade. O caso da avaliação é sintomático. O princípio da observação de aulas é excelente: porque põe a pedagogia e a competência científica no centro da actividade educativa. Mas a sua concretização é perversa porque entre outros aspectos: a) põe professores que actualmente são titulares (não por mérito mas por mera passagem administrativa) a avaliar a competência de outros professores; b) relaciona directamente a avaliação dos profs (e a sua consequentemente progressão na carreira) com os resultados obtidos pelos alunos. Um bom princípio transforma-se assim numa política geradora de novas e profundas injustiças.
De qualquer modo, é precisamente em nome dos princípios que os professores deverão ter o discernimento adequado para perceber quem é que está mais próximo das suas reivindicações enquanto defensores da escola pública: não serão certamente os interesses que certos editorialistas embandeiram.

7 comments:

Anónimo disse...

Excelente, Parabéns

Abraços Talina

Anónimo disse...

«a) põe professores que actualmente são titulares (não por mérito mas por mera passagem administrativa) a avaliar a competência de outros professores»

A maioria dos estudos em sociologia da educação que se debruçam sobre esta temática indicam claramente o "efeito professor" sobre as aprendizagens dos alunos. Os resultados escolares dos alunos contam, neste modelo, 6,5% na avaliação dos professores, um critério entre mais de 10. É assim tão escandaloso? Será que não deve haver alguma forma de atribuir reconhecimento aos professores que melhoram a qualidade dos conhecimentos dos alunos? Não são os resultados e as aprendizagens dos alunos o objectivo fundamental de um sistema de ensino? Se sim, como não ter isto em conta (6,5%, repito!) na avaliaçao de um profissional? Como avaliar um professor sem ter em conta o resultado fundamental do seu trabalho? Custa-me a perceber.

«b) relaciona directamente a avaliação dos profs (e a sua consequentemente progressão na carreira) com os resultados obtidos pelos alunos».

A "passagem administrativa" era como funcionou sempre basicamente a progressão no modelo anterior. Nunca vi ninguém preocupar-se por aí além com este sistema. A divisão entre professor e professor titular, não sendo perfeita, não é de todo uma "passagem administrativa", se é que queiramos que a expressão tenha algum sentido; havia critérios, a maior parte deles sensatos, mesmo que nem todos concordem (o grau de discordância nestas matérias é sempre elevado, em particular numa área como esta; infelizmente não há sistemas perfeitos). Partindo do princípio que a avaliação é essencial, então quem avalia quem? Por vezes tenho dificuldade em perceber o que se pretende aqui; os professores querem ser avaliados por quem? Por um organismo externo? Pelo ME? Por outros profissionais? Isto não faz grande sentido. Tem que ser uma avaliação "interpares".
Não aceitas tu, Renato, ser avaliado por pessoas no ensino superior e no sistema cientítico mais velhas cuja qualidade científica e académica tu, subjectivamente, até podes colocar em dúvida? Qual é exactamente a alternativa? Se o critério central fosse o reconhecimento por parte do avaliado da superioridade científica/pedagógica/científica/etc. do avaliador, parece-me que nenhum sistema do mundo funcionaria, seja em que profissão for...

Hugo

Renato Carmo disse...

Hugo, lembro-me de ternos debatido estas questões há quase dois anos. Nessa altura chamei-te a atenção para a perversão que provocaria a passagem a titular em função do critério idade. E, sobretudo tendo em conta que cairia sob estes, como se confirmou, a responsabilidade de avaliar os professores mais jovens (quem em muitos casos são mais qualificados e, por vezes, mais competentes).
O teu paralelismo com o ensino superior é demagógico: o prof. auxiliar é hierarquicamente superior ao assistente porque concluiu um doutoramento, depois passa para associado porque entre outras coisas realizou umas provas de agregação e por aí adiante.
A maior parte dos modelos de avaliação que conheço (e trabalhei sobre isso durante alguns anos) assentam em dois pilares fundamentais: a autoavaliação e a avaliação de peritos externos. Tens como exemplo o caso dos estágios profissionais em que os futuros docentes eram avaliados por supervisores que eram professores do mesmo nível de ensino mas com formação mais qualificada (muitos eram mestres) e com uma ligação regular às universidades. Existem centenas de profissionais com estes requisitos e competências que durante anos avaliaram e ainda avaliam os seus pares.
O problema do ministério é considerar que este modelo como o mais adequado e o único possível.

Um abraço

Anónimo disse...

"Nessa altura chamei-te a atenção para a perversão que provocaria a passagem a titular em função do critério idade".

Sabes perfeitamente que isso só se aplica aos professores dos escaloes mais elevados - a lógica foi a do compromisso político de respeito pelos direitos dos professores mais velhos que já estavam no fim de carreira. Parece-me uma solução razoavelmente sensata; a perversão, se existe, foi criada pelos mecanismos de progressão automática da carreira anterior, contra os quais que nunca vi ninguém protestar nem pretender mudar. O fundamental é que a maioria dos professores que passaram à categoria de titular não seguiu esse critério da idade -e, no futuro, para futuros concursos, esse critério da idade não voltará a contar.

"O teu paralelismo com o ensino superior é demagógico: o prof. auxiliar é hierarquicamente superior ao assistente porque concluiu um doutoramento, depois passa para associado porque entre outras coisas realizou umas provas de agregação e por aí adiante."

Um professor titular também é "hierarquicamente superior", porque - tirando os dos escalões mais elevados, a tal minoria - se passou a titular, foi precisamente porque cumpriu os requisitos e as exigências do concurso. Dirás que é insuficiente; bom, mas no futuro a hierarquia será mais fundamentada do que a criada agora, que está longe de esgotar os lugares de professor titular potenciais. A primeira ruptura seria, com ofoi, sempre difícil, polémica, e vista por muitos como insufientemente legitimada.

"A maior parte dos modelos de avaliação que conheço (e trabalhei sobre isso durante alguns anos) assentam em dois pilares fundamentais: a autoavaliação e a avaliação de peritos externos."

A auto-avaliação está prevista neste concurso. Quanto aos peritos externos é uma solução interessante, mas, em teoria, mas que acho, francamente, de dificil aceitação pelos professores, que estariam por definidos unidos contra uma corporação exterior que acusaria de "incompetente". Imagino o que se diria de serem os professores universitarios a avaliarem os do básico e do secundário. Um dos argumentos que se ouve sempre é que só os professores é que sabem o que é dar aulas, e que a especificidade da sua profissão exige um conhecimento profundo da mesma para proceder a uma avaliação. Eu acho o argumento tem a sua validade. Agora, sejamos sérios e tiremos as devidas conclusões: os professores devem auto e hetero-avaliar-se. Mas a participação das instituições do ensino superior na formação de avaliadores não está de todo fechada; e cada escola tem um papel muito importante na definição dos instrumentos de avaliação, na sua qualidade, flexibilidade e melhoramento contínuo; nada a impede de estabelecer ligações com instituições de formação superior para trabalhar nesse campo.

Está é uma das coisas que decorre do que me parece que escapa a muita desta discussão: este modelo é extremamente aberto; há instrumentos e dinâmicas universais do sistema que são delineados a partir da 5 de Outubro, mas depois a escola e os professores têm um papel essencial na definição dos restantes instrumentos. Mas como acontece em Portugal, cada vez que se dá autonomia às escolas, elas, depois de a "requerem", parecem que não querem assumir as responsabilidades...Porque a autonomia não é um rebuçado; implica isto mesmo: mais responsabilidades e mais trabalho por parte das escolas e dos professores.

"O problema do ministério é considerar que este modelo como o mais adequado e o único possível."

Alguém apresentou um modelo alternativo? Achas que é de esperar algo da FENPROF, que em 2006 se dizia contra qualquer avaliação de professores?
O que eu tenho visto é constante e deliberada contra-informação; propostas para um modelo diferente, nenhuma. Este modelo foi definido em diálogo com muitos interlocutores diferentes (professores, especialistas em avaliação, etc.), porque os sindicais - os interlocutores institucionais mais próximos do ME - estão pouco interessados senão na manutenção do "status quo".

abraço,
Hugo

Renato Carmo disse...

Hugo, é impressionante como continuas no mesmo ciclo fechado de argumentação. Não há mal nenhum em reconhecer que certas medidas não foram as mais acertadas. A isso chama-se democracia. Não me parece que a maioria dos 100 mil professores que se manifestaram ontem estejam mal informados ou simplesmente insatisfeitos porque não querem trabalhar mais.

Não me parece nada que a maioria dos profs esteja contra uma avaliação externa por professores DOS MESMO NÍVEIS DE ENSINO (não estou a falar de profs universitários) que tenham experiência na avaliação de seus pares (como supervisores de estágios ou como inspectores, por exemplo). Pelo contrário, acho até que seria relativamente consensual, pois a maior parte dos profs passou por esse tipo de avaliação. É um procedimento que já está instituído no seu habitus profissional.

O insucesso educativo dos alunos jamais será resolvido a partir da avaliação individualizada dos profs. Pelo contrário, essa relação pode gerar perversões indesejáveis ao nível do facilitismo e da diminuição da exigência científica e pedagógica. O sucesso educativo é importante, mas se for um sucesso sem o mínimo de qualidade assegurada: é uma aberração.

Nuno D. Mendes disse...

Os 100 mil professores que estiveram na dita marcha da indignação partilhavam um difuso sentimento de insatisfação em relação ao estado de coisas na área educativa e, especificamente, ao seu estatuto profissional. Dificilmente se pode arguir que todos estivessem a subscrever uma luta contra o sistema de avaliação ou que houvesse uma uniformidade de opinião entre os manifestantes.

A manifestação não permite tirar conclusões, precisamente porque não foi uma manifestação acerca de nada em concreto.

Creio que o Hugo toca num ponto fundamental: este não é um sistema de avaliação centralista, que a 5 de outubro comando tudo. O sistema de avaliação é bastante flexível, e as escolas têm muita margem de manobra para adaptar o sistema ao contexto socio-educativo e têm a possibilidade de inovar no que diz respeito aos intrumentos de avaliação, mas respeitando as linhas mestras definidas pelo ME.

Anónimo disse...

Renato,

1) Nada "resolve" o insucesso escolar por si só. Só uma combinação de estratégias é que pode, aos poucos, ir mudando a situação. Ninguem tem uma varinha mágica para resolver a situação, mas todos os passos em várias dimensoes devem ser experimentados.
A avaliação individualizada dos professores tem como objectivo fazer-lhes melhorar as suas práticas. O insucesso escolar não desaparece no momento seguinte; sabes tão bem quanto eu isto é um processo cheio de mediações. Isso, simplesmente, nao é justificação nenhuma para não apostarmos nessas melhorias graduais do sistema.

2) Ainda bem que falas de "facilitismo". É que o anterior sistema de avaliação era, se posso dizer isto, completamente facilitista. Qual é o incentivo que estes tinham para melhorar as suas prática? A resposta é nenhuma. Se queres falar em "aberração", eu guardava-a para o sistema em vigor de avaliação dos professores e respectiva progressão na carreira.
Quanto a este sistema promover o "facilistismo" nas aprendizagens dos alunos, eu gostava de ver essa crítica fundamentada, porque senão é a mesma acusaçao oca de sempre. Infelizmente, a esquerda do PS une-se aqui nesta questão, como sempre faz, ao que o PSD e o CDS argumentam; pelo menos a direita é coerente, dado que não se importa com as consequencias elitistas de "apertar" das malhas do sistema. Já à esquerda do PS nao percebo muito o que se pretende.
Mas num certo sentido estou de acordo contigo: o nosso sistema é facilista: qualquer sistema que abusa da retenção com instrumento de regulação do sistema institui um mecanismo fácil de fazer as coisas funcionarem. Infelizmente, nao melhora as aprendizagens.

abraço
Hugo