segunda-feira, 3 de março de 2008

Um peão passeia por Lisboa

Uma coisa que me impressionou passeando por Lisboa na semana passada foi isto: um Salazar andywarholizado por todo o lado. Refiro-me à publicidade de um coleccionável do jornal "Correio da Manhã". Salazar a cores, em várias versões, com lábios e cabelo pintado, tornado pop. E branqueado politicamente, através das cores? Foi o que me pareceu e foi o que perguntei a vários próximos, amigos e familiares. As respostas que me deram foram contraditórias. Há quem ache — e talvez tenha razão — que não é uma coisa muito importante, que aquele Salazar-estético é de certo modo inofensivo e que, exactamente, o próprio Salazar-histórico se tornou também inofensivo, mesmo com concursos televisivos como o dos "Grandes Portugueses" do ano passado. Talvez seja assim, e talvez seja um progresso.

Mas então o que faço com este sentimento de insulto histórico que não deixo de sentir ao ver Salazar por todo o lado, com uma conotação política por trás, mesmo depois de esvaziado politicamente com umas pinceladas? A memória política que, precisamente, está por trás deste Salazar-pop e que não pode deixar de ser convocada, exactamente porque se trata de o esvaziar de sentido político. Não sei se me faço entender.

Chego à noite a casa da minha mãe (a minha mãe foi despedida de um emprego no Estado português por pressão da PIDE). E, nem de propósito, vejo Simone de Oliveira explicar, a uma Judite de Sousa espantada e que parecia subitamente acordar da amnésia histórica, como em 62 foi obrigada a ir cantar para os soldados portugueses na frente de combate, em Angola e Moçambique. E que foi acusada de traidora à pátria por, circunstancialmente, não ter feito um dos concertos que lhe eram impostos. E não consigo deixar de cruzar estas duas coisas, o Salazar-Andy Warhol nas ruas, sem escândalo aparente, levezinho, e a súbita irrupção de um testemunho verdadeiro ou, em todo o caso, um testemunho que é uma falha na amnésia.

Não sei o que concluir disto. Fiquei só com perguntas: como explico aos meus amigos estrangeiros isto do Salazar-chic por todo o lado em Lisboa? Como o explico, antes disso, a mim mesmo? Ou, sem dramatismos "esquerdalhos": como é que isto foi possível? A amnésia em relação ao papel político de Salazar, sendo selectiva, não é uma manobra feita por uma qualquer conspiração reaccionária. Está aí na rua, simplesmente.

4 comments:

Fernando Vasconcelos disse...

Pois também me faz confusão e não sei muito bem o que pensar. Por um lado é inofensivo mas não deixou de ser um ditador e como tal ...

Opus Night disse...

A ideia, parece-me, deve ter sido parodiar os retratos pop do Mao Tsé-Tung, aplicando o mesmo tratamento ao nosso ditador. A questão é que o Warhol não era chinês, nem tão pouco produziu os seus retratos coloridos na China durante a ditadura maoísta ou depois dela. Provavelmente nem o teria feito, se fosse esse o caso. O que quero dizer é que a coisa incomoda, incomoda tanto ou mais que o "arbeit macht frei" que uma apresentadora alemã disse como piada num programa de televisão em directo. Há certas coisas que não têm graça quando foram vividas por dentro... e para mim o Salazar não tem estas cores.

Daniel Lanero Táboas disse...

Eu tamén quedei un pouco desconcertado con este bombardeo de iconos pop nas paradas de autocarro e en moitos outros lugares da cidade... Primeiro sospeitei das intencións político - ideolóxico edulcoradoras que me pareceu (institnto preventivo) podían (ou poden)existir por detrás destes retratos que convirten o Salzar nun icono pop e nunha especie de producto de consumo que acompanha (supoño que os fins de semana) ó xornal como outro coleccionable calquera...

Pero por outra parte, pregúntome se trivializar a personaxes históricos dun pasado escuro non terá os seus efectos positivos de cara á superación dos traumas colectivos...

Gosto bastante de certas parodias televisivas que na Espanha téñense feito a partir da figura do dictador Franco... é que son unha hilarante e xustificada vinganza dende o noso presente...Se cadra é máis sano para a psicoloxía colectiva das nosas sociedades ter presentes as figuras de dous dictadores fascistas - e aboradalas mesmo dun xeito humorístico - que non falar delas e cargar por detrás co peso e a proxección da súa sombra histórica no noso presente. Nisto, o Charles Chaplin, co seu "O gran dictador" foi tamén un adiantado ós nosos tempos.

Opus Night disse...

Sim, mas lá está, o Chaplin quando fez "o Grande Ditador" desconhecia as atrocidades do holocausto nazi. Ele próprio disse que se soubesse disso teria sido incapaz de fazer humor com uma coisa tão seriamente trágica. Para mim, isto de fazer humor e do humor resultar vai muito da distância que existe em relação ao que se satiriza, porque a fronteira entre o humor e o mau-gosto pode ser apenas circunstancial. Infelizmente em Portugal, a sombra de Salazar ainda está muito presente. O sacana caiu da cadeira, mas não morreu. Ainda hoje não morreu. Colocarem-lhe cores vivas no retrato aligeira, sim, mas ligeiro já ele anda nas cabeças de todos os esquecidos.