domingo, 23 de março de 2008

Na sala de aula ninguém mete a colher

Este episódio de violência na sala de aula via YouTube, releva uma realidade que existe, que provavelmente está a crescer, mas que ainda é relativamente circunscrita. Não se pode avaliar todo um sistema de ensino a partir de uma cena filmada por telemóvel. E, sobretudo, não se pode reduzir o sistema ao que se passa na sala de aula. Mas, de facto, este é quanto a mim um dos problemas: o interior da sala de aula. Para a maior parte dos professores a sala de aula é o seu reino, o último reduto na qual deverão ter o domínio completo da relação pedagógica. Tudo o que lá se passa só ao professor diz respeito. Gerou-se quase um código de conduta entre os professores relativamente à sala de aula: ‘na sala do colega ninguém mete a colher’. Se alguém se imiscui está de certa forma a intrometer-se num espaço que naturalmente não lhe pertence. Assim, para o bem e para o mal, o professor está isolado na sala de aula: nela é o senhor ou é o seu servo. Se muita coisa mudou na escola pública em relação a quase tudo, algumas ainda persistem desde dos tempos da escola tradicional onde o professor era de facto rei e senhor. E uma dessas coisas é, sem dúvida, o modo como os professores, entre si, encaram a sala de aula.
Infelizmente, as medidas que têm vindo a ser contempladas por este ministério têm atafulhado os professores num sem número de actividades administrativo-burocráticas, enquanto as questões do foro pedagógico e relacional têm sido claramente secundarizadas. O trabalho de sala de aula deveria ser também um trabalho de reflexão e de partilha de recursos e estratégias pedagógicas e científicas entre profs do mesmo grupo e dos mesmos níveis de ensino. O interior da sala de aula tem de deixar de ser tabu entre os colegas. Comungar o que se passa lá dentro não deve ser visto como uma fraqueza. Pelo contrário, se for realizado de uma forma sistemática este trabalho, que é muito pouco desenvolvido nas escolas, pode representar a salvaguarda e protecção dos próprios docentes. Um dos aspectos que mais me constrange ao ver aquelas imagens é a extrema solidão daquela professora, será que ninguém ouviu tamanha berraria, porque é que ninguém vem ao seu auxílio… um funcionário, um colega, etc.
A escola mudou extraordinariamente. Em muitos aspectos mudou para melhor. A nível europeu Portugal tem actualmente uma das mais elevadas taxas de qualificação superior entre os jovens até aos 35 anos. E isso deve-se em grande medida ao trabalho da escola pública democrática. No entanto, a sociedade não pára e a escola como parte integrante dessa sociedade está em mudança. Cabe aos professores pensar nessa mudança não como uma mera inevitabilidade mas como uma oportunidade de também poderem mudar.

9 comments:

Anónimo disse...

Nem uma palavra para criticar o mau comportamento - - isso mesmo, mau comportamento -- da aluna!? Parece-me arriscada esta deriva sociológica a partir de Bourdieu, que sempre foi muito exigente na praxis política, que vê apenas a oportunidade de colocar a sua colherada no discurso político, a propósito de seja do que for, neste caso de uma agressão em que houve agressor e vítima. A condescendência para com um e a repugnância para com a vítima traem o oportunismo político mais perigoso -- o do populismo geracional. Não se pode reclamar o voto aos 16 anos e desculpar a inocência das crianças aos 15 anos.
Lamento a crítica e tê-la escrito foi penoso. Mas senti que depois de ter lido este texto, a isso me sentia eticamente obrigado. É defeito meu frequentar o vosso blog. As minhas desculpas.
A. Melo

Renato Carmo disse...

Caro A. Melo, debater a educação a partir destas imagens do YouTube é que me parece ser uma deriva perigosa. O objectivo deste post não foi o de amplificar uma polémica inconsequente. Aliás, a única consequência que terá é dar mais uma machadada na imagem da escola pública. E, de facto, o sistema não só não está assim tão mau, como tem méritos. E é nestes que nos devemos agarrar. É oportunista fazê-lo? Não, meu caro, oportunismo é enredarmos em discursos populistas que não têm outro fim senão acabar de vez com o sistema público.
Este post não é contra ou a favor do agressor ou da vítima. Nem sequer aludo ao relativismo social para ilibar as responsabilidades da ‘agressora’.
Não penso que a solução passe somente por aumentar a autoridade do professor ou por medidas de suspensão dos alunos "agressores". Afinal o que é que se pretende: um polícia em cada sala?

JPN disse...

A sua reflexão é uma das mais interessantes que encontrei sobre todo este assunto.

E claro que falar da enorme solidão do professor na sala de aula não é defender a aluna...

Renato Carmo disse...

Caro jpn, para o bem da escola pública é desejável que todo este debate sobre educação não se transforme num campo de trincheiras e de barricadas. Começa a haver muito fundamentalismo no espaço público e não se pode tornar tudo isto, que é muito complexo, numa mera partida entre prós e contras.
Obrigado pelo seu comentário.

Anónimo disse...

Parece-me que estamos a lidar aqui com um problema que ultrapassa a Escola. A falta de respeito pelo próximo e o desvalorizar da educação (formação e boa-educação) são problemas sociais. Os pais não devem ser desresponsabilizados... Estas cenas não se passam exclusivamente nas salas de aula.

Renato Carmo disse...

Concordo, é um probelma que ultrapassa a escola mas com o qual a escola tem de lidar. Por isso, é necessário pensar em estratégias que atenuem o problema e, sobretudo, salvaguardem os professores. A sala de aula é uma das dimensões, mas claro que há outras. Por exemplo, a necessidade de haver pessoal especializado em lidar com conflitos desta ordem (principalmente no espaço exterior à sala de aula), os designados mediadores. Em escolas de maior risco (mas não só)deveria pensar-se na formação dos funcionários, de modo a que estes tenham alguma capacidade socializadora ao lidar com estas 'novas' realidades.

Anónimo disse...

Pois é caro Renato, eu, assíduo visitante do Peão (e do pré-Peão), que li e subscrevi praticamente todas as suas reflexões sobre os temas da relação pedagógica e da reprodução de modelos educativos, desta vez estou reticente - não subscrevo. Nem na forma, que já critiquei e, relendo, creio que até com vigor excessivo, nem na substância. No modelo actual da escola existem os conselhos de disciplina onde os professores podem confrontar experiências e estabelecer programas de auxílio mútuo. Há disciplinas leccionadas por dois professores, como é o caso dos Trabalhos Manuais. Já houve experiências no antigo ensino primário no sentido de levar os alunos de passagem para o segundo ciclo a lidarem com dois professores, para que o salto disciplinar não fosse tão brusco. Não me recordo de nenhuma ter resultado. Tocar a quatro mãos exige, além de uma excelente técnica, uma cumplicidade afectiva que não pode ser apontada como regra. É aconselhável que o docente tenha vocação para ensinar, mas daí a fazer dele um missionário de uma causa pedagógica é um passo para abismo. Aceito que essa dedicação possa ocorrer em correntes pedagógicas que ensaiam modelos novos, como aconteceu com a Escola Moderna, de Célestin Freinet, que com o tempo deixou de o ser e teve de se reactualizar, num contexto de grande debilidade, ou em casos extremos de crise social, como foram os modelos de Anton Makarenko ou do Padre Américo. Mas numa escola pública democrática, o modelo é o da escola laica, regida pelo programa ministerial, com cada professor a ser responsabilizado pelo ensino lectivo na sala de aula. Ou seja, este professor é um profissional do ensino, com horário de trabalho, direitos e responsabilidades. Um deles é o da sua autonomia pedagógica, que tem por corolário a aprendizagem do que ensina. Tal como não se concebe um polícia em cada sala de aula, também não aceito sistemas de videovigilância e discordo da criação da figura do mediador disciplinar. A escola tem que ser responsável pela disciplina interna e compete-lhe assegurá-la. Ao demitir-se dessa tarefa disciplinadora, que é uma função estruturante, demite-se de ser escola, ou seja um lugar formativo. É por isso que a figura "mau comportamento" tem lugar no universo escolar, com o seu devido regime sancionatório, que pode e deve ir até à exclusão. Os casos psicológicos fora da norma, por defeito de carácter ou delinquência adquirida, merecem uma atenção social, mas fora do perímetro da escola normal. Precisamente, da escola normal, tal como era designada na I República. Para não ser mais extenso, concluo dizendo que “aquela” aluna deve ser castigada com a sanção máxima, a turma dissolvida e os seus elementos sujeitos a uma avaliação individual. A professora deve ser reabilitada, na escola e na sociedade. Por isso seria aconselhável, no meu prisma, que a Fenprof e demais estruturas sindicais lhe demonstrassem todo o afecto de classe que ela merece. Na minha óptica a ministra da Educação devia fazer-lhe uma visita pública, com ou sem mediatismos, segundo a disponibilidade emocional da visitada, mas com a apresentação de um pedido de desculpas pelo incidente, só possível devido à deriva político-partidária em que deixou cair o sistema educativo, na sua guerrilha intersindical. Tenho muita pena, caro Renato, mas desta vez, ao que parece, discordamos.
Abraços do A. Melo

Renato Carmo disse...

Caro A. Melo, não me parece que discordemos assim tanto. Mas também não há mal nenhum em discordar desde que se debata abertamente e sem preconceitos à partida.
Vamos lá a ver se nos entendemos, o post não põe em causa a autonomia do professor na sala de aula, mas alerta para o facto de normalmente o trabalho levado no interior da sala de aula ser exageradamente solitário, no qual cada professor tenta por si resolver os problemas de indisciplina que são gerais à turma. Ora bem, podem existir estratégias colectivas que passem simplesmente pela partilha sistemática das experiências e das situações que vão ocorrendo no dia-a-dia. Provavelmente, aquele episódio que visionámos no YouTube foi o culminar de um acumular de situações de indisciplina que a professora viveu em silêncio ao longo de meses. Repare-se que ela nem sequer apresentou queixa imediata da aluna. Muitas destas situações repetem-se porque são vividas em solidão por parte do professor. E isso tem de mudar... e tem de começar a mudar no modo como se encara o papel do professor na sala de aula. Repito: não é retirar autonomia ao professor, é, pelo contrário, dotá-lo de outros canais e instrumentos para que a gestão destes assuntos deixe de se desenrolar em absoluta solidão.

Penso que não é positivo mediatizar ainda mais este caso. Mas entendo que a Ministra tem falhado no apoio institucional e também político aos professores. Esse foi um dos seus grandes erros.

Um abraço, Renato

Anónimo disse...

Pois, a professora dobrou-se sobre a sua humilhação e nela tentou esconder a ofensa. Que tudo indica ir ficar impune. Se a aluna foi apenas malcriada, merecendo por isso ser sancionada, já o esconder a ofensa e permitir a humilhação me parece mais grave e configurar em delito de civilização. É óbvio que pais civilizados não aceitam esta “escola” para formar os seus filhos. Assim se empurra a escola pública, que em 30 anos assegurou a expansão do ensino como nunca se vira no século e meio precedente, para o caixote do lixo da história, entre lutas corporativas e disputas político-partidárias. É o que lamento. Quanto à solidão da sala de aula, ela é necessária e positiva se for para criar a relação pedagógica. O que é errado, e neste caso dramático, é o isolamento dos membros da comunidade pedagógica, fechados cada um nos seus miúdos interesses e defesa dos “direitos adquiridos”.
Estou de acordo com o Renato quanto ao erro em mediatizar este caso, que virou sensação circense. Por isso por aqui me fico, esperando, sinceramente, que aquela professora tenha direito à reabilitação. Porque também é um ser humano.
Abraços A. Melo