segunda-feira, 28 de maio de 2007

Ainda os trabalhadores europeus - e o significado não-hipócrita de "solidariedade"

O Nuno Teles - a quem agradeço a réplica - acha que eu adiro acriticamente ao modelo neoclássico do mercado de trabalho para justificar o meu post anterior de comentário crítico ao dele sobre o conflito entre trabalhadores suecos e letões. É falso que o meu quadro de partida seja neoclássico; a melhor teoria do mercado de trabalho disponível é a "corporatista", e é dos seus pressupostos que parto, seja para analisar empiriciamente o problema, seja para avaliar politicamente os dilemas criados - e já agora, para pensar numa eventual saída para eles.
O que é que está aqui em causa (retirada deste livro (p.23))? Olhemos para a foto, que representa o modelo Calmfors-Driffill, que nos diz que o desemprego será baixo tanto no melhor dos mundos neo-liberal, o do firm-level bargaining ou no melhor dos mundos social-democrata, o do economy-level bargaining. Ele tenderá a ser alto quanto a negociação é sectorial e envolve competição entre vários sindicatos pouco preocupados com a externalidades produzidas pelas suas acções e reivindicações.

O que faz a força do modelo sueco? O que os sindicatos suecos conseguiram foi levar o nível da negociação para um nível de coordenação nacional e evitar a fragmentação da representação de interesses que tantos problemas causa em países como a França ou a Itália na luta contra o desemprego (Portugal também poderia ser incluído neste grupo, fica para outra discussão). Ou seja, a Suécia tem, tradicionalmente, um economy-level bargaining e a França e a Itália têm um industry-level bargaining. Foi assim que os suecos conseguiram a sua dinâmica economia capitalista (à força de tanto se dizer mal do capitalismo, convém de vez em quando lembrar que a Suécia é um país capitalista, mesmo que com uma variante muito particular :)); deixa-me discordar frontalmente: não por uma luta através da luta social nacional e internacional(ista), muitas vezes trágica. Isto é uma reconstrução da história a posteriori. O que o movimento operário sueco soube fazer foi ser mais inteligente que os capitalistas; em vez de lutar e reinvindicar isto e aquilo sem uma estratégia definida, propôs um modelo de desenvolvimento da economia, o modelo Rehn-Meidner, que é base da compressão salarial, das políticas de mercado de trabalho activas e da flexibilidade interna que fez sucesso durante décadas. E, sim, isso envolveu aceitarem "provisoriamente salários bem mais baixos do que os seus congéneres", porque o que o modelo envolve é uma pressão sobre os salários compensada pela expansão de serviços públicos fornecidos pelo Estado. O crescimento dos salários nunca foi uma prioridade central do movimento operário sueco, porque a dinâmica da economia depende das exportações, e qualquer wage drift insensato prejudicaria tanto os capitalistas como trabalhadores. A prioridade era o pleno emprego.

Quanto ao "modelo social europeu" que os trabalhadores suecos dizes terem alcançado, bom, o que apetece dizer é que o "modelo social europeu" é uma ficção no pior dos casos, e um ideal regulador kantiano no melhor. A diversidade nos sistemas de protecção social e laboral na Europa é tal - tanto ao nível da cobertura como ao nível da forma como estão desenhados - que devemos ter cuidado em utilizar essa expressão: sobretudo quando há vested interests a quem ela serve bem, e outros que o mesmo modelo deixa de fora.

Voltemos ao modelo Calmfors-Driffill. O problema actual é que aquilo que os suecos haviam resolvido a nível nacional regressa agora a nível europeu. Agora, quando há, por exemplo, dois países envolvidos, emergem os problemas de coordenação que haviam sido internalizados a nível nacional, e somos arrastados de novo para uma situação equivalente à do industry-level, em que existe competição entre centrais sindicais - que por isso não estão muito preocupadas com as externalidades negativas que provocam na constituency alheia (mesmo que continuem a falar dos "trabalhadores" como se fossem uma massa "homogénea" e com os mesmo interesses) - e que arrisca fazer subir o desemprego ou a inflação porque os trabalhadores melhor colocados não estão dispostos a perder as suas boas condições ("boas", relativamente, claro).

Atenção: isto é muito importante, e por isso repito: os trabalhadores melhor colocados não estão dispostos a perder. Ora, toda a questão é que eles DEVIAM estar dispostos a perder algo, sim, mesmo que seja um pouco, mesmo que seja por um tempo.

Repara: o que acontecia no modelo Rehn-Meidner era que os trabalhadores mais qualificados - ou seja, que podiam usar o seu poder de mercado para exigir melhores salários - aceitaram ceder essa vantagem e com isso permitir que os trabalhadores menos qualificados e mais mal pagos fossem integrados na estrutura sindical e ganhassem com isso melhores condições do que se estivessem no papel de outsiders. É isto que faz da estrutura salarial sueca uma das menos inigualitárias do mundo (provavelmente a menos inigualitária - depois vamos a este pormenor). É isto que se chama solidariedade: os que podiam fazer uso da sua posição contra os mais frágeis aceitam enveredar por um self-containment de forma a que os mais frágeis possam ser puxados para cima. Esta é a história que é regularmente esquecida na narrativa das "lutas sindicais": é que sem cedências daquela que podia transformar-se numa labour aristocracy, os verdadeiros proletários teriam continuado na indigência. É isto que faz a compressão salarial, a alta produtividade, o sentido de coesão e de solidariedade.

Ora, é isto que os trabalhadore suecos - se bem percebi a episódio em causa, mas se ele não ocorreu exactamente assim, o problema que apresento e o meu raciocínio, mesmo que meramente hipotéticos, continuam a ser válidos - parecem não querer aceitar. Achar que o problema se resolve alinhando as regras por cima, de forma automática, é falacioso, porque isso faz simplesmente isto aos trabalhadores letões: it prices them out of the market. E deixa-os potencialmente no desemprego, sem protecção social decente (comparada com as que os suecos têm). Ora, isto, desculpa Nuno, é que não pode ser: e se não és indiferente a estes trabalhadores, então pensa duas vezes na sua situação antes de te preocupares mais com os que ganham muito mais e têm protecção muito superior. Eu, por método rawlsiano, penso sempre nos que estão pior. E aqui, eu estou muito mais preocupado com os letões do que com os suecos. Não preciso explicar melhor porquê.

Como é que isto pode ser contornado? Bom, em teoria, tornando efectivo a nível internacional algo similar ao que foi possível fazer a nível nacional. Descontando os obstáculos empíricos - que são enormes, como calculas -, não seria impossível, por exemplo, através de políticas de mercado de trabalho activas, melhorar as competências dos trabalhadores letões e torná-los mais produtivos e competitivos, partilhando com eles os fundos que estão ao dispor dos trabalhadores suecos (por exemplo, o fundo de desemprego dos trabalhadores suecos auxiliar os trabalhadores letões em caso de necessidade). O ideal seria um pooling de fundos e de riscos, no sentido lato. Uma estratégia solidarista passaria pelos trabalhadores suecos apertarem um pouco o cinto, redistribuindo algum dinheiro e condições pelos seus colegas letões, que apesar de tudo poderão ter que aceitar ganhar um pouco menos, dado que partem de condições muito diferentes. Mas isto são questões de acerto empírico. O principal é uma questão de estratégia. Agora, claro, isto é muitíssimo mais complicado à escala inter-nacional do que à escala nacional (ainda por cima em países pequenos: não é por acaso que o economy level-bargaining foi instituído em países pequenos como os nórdicos; fazê-lo em países de 40, 50, 60 milhões de habitantes como os grandes países europeus era mais complicado). O problema está todo aqui. E não pode ser ignorado pensando que vamos resolver o problema internacional comportando-nos como no passado, quando este tipo de competição internacional não se colocava. Porque o problema é este: desta maneira (ficando-lhes com o contrato), os trabalhadores suecos não estão a ajudar os trabalhadores letões que, como eu argumentei no meu post anterior, não vão ter outro recurso, numa próximo round negocial, senão concorrer ainda mais em função do preço e não da qualidade.

Gosta Rehn e Rudolf Meidner não argumentariam - nem eu - a favor da competição entre os dois grupos de trabalhadores: eles veriam os letões, como viam dantes os trabalhadores suecos não-qualificados e mal pagos, como um perverso subsídio ao capital. A solução - em teoria, repito -, é os sindicatos conseguirem chegar a um acordo de cooperação, de forma a reduzir as diferenças entre os trabalhadores, pagando mais aos letões, subsidiando a sua formação, etc., mas com um trade-off: neste modelo, os trabalhadores suecos teriam que redistribuir parte do que têm direito, para melhorar as condições dos trabalhadores letões. Tal como os trabalhadores mais qualificados suecos dos anos 50 que podiam ter feito finca pé e ter argumentado algo semelhante a "eu não abdico da minha posição de mercado e do salário que mereço", mas não o fizeram, também os trabalhadores suecos hoje deviam dizer "eu abdico de um pouco dos meus direitos adquiridos ao longo de décadas para que os meus camaradas letões possam ter emprego, ganhar um pouco melhor, e aprender competências novas. Isto é que é solidariedade: nós, suecos, que temos o melhor sistema de protecção social da Europa, devemos-lhes isso".

2 comments:

Pedro Ribeiro disse...

Caro Hugo,

acompanhei a vossa "polémica" e devo dizer que em grande medida concordo com a tua posição no plano meramente teórico. Aliás, gostei muito de ler a tua exposição. Para alguém como eu, com tão pouco à-vontade no campo da economia do trabalho, a tua resposta deixa pistas interessantes de investigação.
Há contudo um aspecto que me parece escapar-te (ou que pelo menos menosprezas). O caso sueco, que relatas, tem subjacente um enquadramento institucional que facilitou e permitiu a concertação entre trabalhadores que referes. O facto de se ter processado no quadro de um Estado que se constituiu como um parceiro no processo - contribuição que não ignoras e aliás sublinhas quando mencionas a importância da expansão dos serviços públicos como contrapeso a uma menor pressão sobre os salários.
Ora, isso não se passa na situação em análise. Não existe um enquadramento institucional que permita a emergência de um clima de cooperação necessário a que possa existir uma concertação que replique o que se passa/passou internamente. É importante o processo de europeização do movimento sindical, no sentido de que haja possibilidade de um concerto de posições entre sindicatos a um nível supra-nacional. Mas não é suficiente. Faltam mecanismos que permitam que esse concerto se processe a nível inter-estatal, pelo menos a um tal nível que seja suporte suficiente para que seja possível a emergência de uma cooperação supra-nacional de trabalhadores. Décadas de história de integração europeia não o conseguiram nem me parece que da parte dos sindicatos haja a consciência dessa necessidade...
De modo que, em termos práticos, a solução que advogaste para este caso redunde, do meu ponto de vista, numa autêntica "race to de bottom", contribuindo ainda que inadvertidamente para um cenário de cariz neo-liberal.
Sem a alteração da actual arquitectura institucional, apesar de tudo assente na soberania dos estados, veiculando em consequência posições que revelam algum egoísmo nacional(ista), não me parece que a solução solidária que defendes tenha as consequências benignas que pretendes. É preciso que os sindicatos compreendam esta necessidade e exerçam pressão neste sentido...

Cumps.

Hugo Mendes disse...

Caro Rui,

A complexidade do problema é grande e a "soluçao", a haver, não se afigura nada fácil. Concordo com a maioria das coisas que diz. Eu queria fundamentalmente, com este post, chamar a atenção para o facto de a solução encontrada pelos trabalhadores suecos para este caso nao ser solução nenhuma, e apenas contribuir para acentuar as desigualdades entre trabalhadores europeus. Antes de encontrar uma solução, é preciso descartar as soluções falsas ou perversas; é um trabalho de descontrução das falsas saídas, mesmo antes que comecemos a pensar de forma mais construtiva. É, antes de mais, necessário alertar para a consciencia dos sindicatos.

Uma solução para este imbróglio obriga, naturalmente, e como bem dizes, a uma mudança da arquitectura institucional e é preciso assumir que ela é extremamente exigente; em particular, o problema é encontrar o sistema de incentivos certo.

Mas nao sei se a consequência da lógica cooperativa que propus no post levasse a um "race to the bottom", que me parece sempre um argumento perigoso, por ser tão multifacetado. Repara: abstraindo agora das condições institucionais, os trabalhadores qualificados suecos do passado também poderiam ter recusado a compressão salarial dizendo que isso à vitória do "menor denominador comum", uma cedencia ao "race to the bottom". E num certo sentido isso foi verdade: simplesmente, este "menor denominador comum" foi colocado num nível bastante alto e permitiu reduzir as desigualdades de forma impressionante e praticamente acabar com a pobreza. Claro, o problema é replicar qq coisa parecida com isto a uma escala inter-nacional, mas, de novo, um princípio essencial parece-me ser que os trabalhadores mais bem pagos, se querem ser "solidários" e cumprir as palavras de "solidariedade", podem ser levados a apertar um pouco o cinto em nome da melhoria das condições dos menos bem pagos. Eu duvido que isto seja uma "race to the bottom". Pode levar a alguma estagnação provisória destes trabalhadores - razoavelmente ricos à escala europeia, não esqueçamos -, mas é provável que permita uma melhoria substancial, e relativamente rápida, dos trabalhadores mais pobres. Tudo isto está cheio de dilemas: mas é preferível assumi-los do que, como por vezes me parece ser a estratégia à esquerda, "meter a cabeça debaixo da areia". E ao assumi-los, imaginar, experimentar, ensaiar possíveis saídas para esta situação.

abraço
Hugo