quinta-feira, 17 de maio de 2007

A outra via

Neste post fiz alusão à necessidade da esquerda assumir algumas propostas que nos tempos que correm possam conter algum significado radical. Este não advém do carácter intrinsecamente extremado que certas opções polítias possam conter, mas do facto, como bem demonstra este post do Hugo, de actualmente o centro político estar relativamente descentrado para o lado da direita. Na verdade, algumas das ideias que vêem deste lado acabam por se generalizar, apesar de em si representarem tremendas mudanças na sociedade. Por exemplo, a ideia da circulação dos fluxos de capitais ser auto-regulada somente pelos mercados, naturalizou-se na opinião pública. A multiplicação exponencial de mais-valias, resultante dessa circulação, imune a qualquer espécie de tributação é, de certa forma, um facto consumado e inevitável. “É assim a economia global, não há nada a fazer”…
Perante este estado de espírito, qualquer projecto vindo da esquerda que proponha a tributação das mais-valias é visto como radical. Contudo, do ponto de vista meramente racional, a coexistência de um sistema que não tributa os brutais lucros gerados, nomeadamente por actividades meramente especulativas, com um outro que tributa fortemente os rendimentos gerados pelo trabalho, é uma aberração! No entanto, ela não causa estranheza porque, em certa medida, parte considerável da esquerda se acanhou e ao fazê-lo legitimou a sua naturalização. Lembremo-nos o que aconteceu em Portugal, em pleno consulado ‘guterrista’, com o célebre projecto de lei de Sá Fernandes (irmão do actual candidato à CML).
Este exemplo parece-me claro relativamente à assunção de propostas que à partida são encaradas como radicais pelo tal eleitor mediano, mas que em termos programáticos poderão gerar consensos muitos mais alargados, desde que a esquerda as consiga naturalizar na consciência dos indivíduos e na opinião pública. Em última instância trata-se de facto de um programa de consciencialização.

9 comments:

Hugo Mendes disse...

"Em última instância trata-se de facto de um programa de consciencialização".

Num certo sentido é verdade. Mas isso exige, talvez paradoxalmente, que sejam apresentados como coisas de "senso comum" e não com "trajes radicais", como às vezes se pretende fazer. É que basta apresenta algo como "verdadeiramente radical" para fazer o eleitor mediano ir montar a tenda para outro sítio. E então perde-se logo o jogo antes de ter começado.
O que é verdadeiramente importante é ter um discurso sustentado, coerente, credível, rejeitando outro radicalismos que as pessoas sempre imaginam esconder atrás de alguma coisa vagamente 'progressista' e saber bem o que se pretende. Se houver essa inteligência na transmissão da mensagem, então eu concordo contigo: há coisas relativamente às quais as pessoas podem mudar de opinião - caso tenham uma, claro. Mas isso exige muito mais inspiração que transpiração. E um bocado de dinheiro dinheiro também ajudava. O L.Rodrigues falou o outro dia e bem do fenómeno dos "think thanks", e a verdade é que boa parte do consenso (quando ele existe...) que falas relativamente a questões económicas foi o resultado de muito trabalho - por vezes panflatário, noutras nem por isso - de "think thanks" de direita, em particular, claro, nos EUA. E eles são muito mais presente à direita do que à esquerda. Nestas coisas, em Portugal ainda se vive num deserto, vamos ver até quando.

Hugo Mendes disse...

"Contudo, do ponto de vista meramente racional, a coexistência de um sistema que não tributa os brutais lucros gerados, nomeadamente por actividades meramente especulativas, com um outro que tributa fortemente os rendimentos gerados pelo trabalho, é uma aberração! No entanto, ela não causa estranheza porque, em certa medida, parte considerável da esquerda se acanhou e ao fazê-lo legitimou a sua naturalização."

Por exemplo, indo de encontro à tal estratégia de discurso de senso comum, eu não acho que argumentar que discordar de ti no que dizes aí seja "irracional" ("do ponto de vista meramente racional"...). Não convém dar o flanco: é que é preciso saber especular. Tu sabes fazê-lo? Eu não sei; precisava de aprender, desenvolver capital humano etc. para aprender a fazer. Portanto isto envolve "trabalho", não é apenas "usura". Isto não significa que o teu argumento contra as actividades especulativas não faça sentido - e eu concordo com ele. Mas fazê-lo passar como a única coisa racional nesta discussão é enfraquecer a posição.
Até porque, como imaginas, a direita dirá: "pois, a nossa posição é que nenhum deles seja taxado: nem o capital nem o trabalho (que é a origem da maioria dos rendimentos hoje, mesmo dos mais ricos, ao contrário do passado)...vamos então fazer o movimento inverso: em fez taxarmos tudo, não vamos taxar nada!". Isto não é sequer uma caricatura. É simplesmente um alerta para como enquadramos estas questoes no debate público e não darmos o flanco, e arranjarmos argumentos mais resistentes. Por exemplo, a produção de externalidades negativas sobre terceiros devido a certas actividades especulativas parece-me um argumento mais pertinente.

Na linha inversa do que escreveste, há argumentos ou medidas que podem parecer reaccionárias e no entanto fazem sentido à esquerda. Por exemplo, seria importante encontrar um método de financiamento dos sistemas de segurança social que não dependesse tanto do imposto sobre o trabalho. O trabalho é uma coisa boa, não se devia taxar, pelo menos muito - e vários estudos mostram que se taxarmos demasiado o trabalho ou criamos desemprego ou então não conseguimo criar emprego novo. Por exemplo, o Stigltz diz que podíamos substituir progressivamente os impostos sobre o trabalho pelos impostos sobre a poluição. Ou outros. Mas a esquerda normalmente treme quando se diz que se vai baixar o imposto sobre o trabalho. Há coisas que são politicamente incorrectas, mas que fazem sentido nos dias de hoje, e podem ter um efeito progressista se devidamente enquadradas e compensadas.

L. Rodrigues disse...

Ou uma política fiscal tipo Henry George? Não lhe faltou apoio popular, no seu tempo.

Renato Carmo disse...

Até porque, como imaginas, a direita dirá: "pois, a nossa posição é que nenhum deles seja taxado: nem o capital nem o trabalho (que é a origem da maioria dos rendimentos hoje, mesmo dos mais ricos, ao contrário do passado)...vamos então fazer o movimento inverso: em fez taxarmos tudo, não vamos taxar nada!".

É verdade, depois de ter escrito o post lembrei-me dessa possibilidade. Mas como ele foi escrito num contexto de debate entre a esquerda, achei que não devia alterar.
Quanto ao resto que dizes concordo com tudo... bem temos de pensar no tal think thank.

Renato Carmo disse...

Caro I Rodrigues, quero agradecer-te este teu comentário ao outro post, que, em certa medida, inspirou a escrita deste:

"A discussão já acabou mas para ajudar, eu diria que radical é tudo o que está nas margens do aceitável em termos de opinião pública ou para lá dela.

O aborto era radical, mas passou a ser mainstream.
Homeschooling em portugal é radical, mas à medida que se for falando mais nisso, vai parecer mais aceitável para um numero crescente de pessoas.

São dois exemplos de deslocamento, à esquerda e à direita, da janela de Overton por introdução de temas radicais no discurso público".

Hugo Mendes disse...

Ok, assim estamos a chegar a algum lado.

Zèd disse...

Se me permitem "arrastar" esta discussão para a situação política francesa actual (e partindo do princípio que a direita vai ganhar as legislativas, o que é quase certo), o que a esquerda e em particular o PSF têm de fazer é exactamente o que foi aqui dito no post e nos comentários. Vai haver seguramente muita contestação às políticas de Sarkozy, seguramente contestação nas ruas. Quando há contestação há sempre a pergunta "então qual é a alternativa?", e é aí que a esquerda tem que deixar as roupas radicais e apresentar um programa alternativo coerente e consistente, e - obviamente - de esquerda. Neste caso a esquerda que tem que se apresentar é o PSF, porque é o único com possibilidades reais de chegar ao poder daqui a cinco anos. Esta é uma oportunidade que bem gerida pode dar frutos, um longo periodo de contestação pode desgastar muito a direita no poder, mas apenas se a esquerda souber capitalizar.

E é precisamente essa a estratégia que Thomas Piketty (ainda o mesmo artigo que foi linkado pelo André Belo hà tempos) defende, e é essa a estratégia que a propria Ségolène Royal quer avançar (sendo ela lider do partido). Resta saber se o PSF se vai preocupar com isso depois da derrota nas legislativas ou se se vão entreter com picardias internas como aconteceu no passado.

Renato Carmo disse...

Não há como voltar ao início, pois todo este debate surgiu a partir da questão francesa. Mas penso que, de certa maneira, ele se generaliza a muitos países como é o caso de Portugal. No fundo a ideia (utilizando agora um chavão) é que a esquerda se tem de reinventar afirmando-se.

Um abraço Zèd, e não te esqueças de Lisboa.

Zèd disse...

Não me esqueço de Lisboa, mas a situação está um bocado confusa, nao sei bem o que pensar. Muitas candidaturas à esquerda, e fortes. Espero para ver se há um entendimento. De qualquer modo vou acompanhando à distância.

Abraço