quinta-feira, 17 de maio de 2007

Privatização da questão das desigualdades?*

Muito importante o artigo do João Rodrigues hoje no "Público": "A desigualdade salarial é um problema de todos".

Os artigos são pequenos e por isso é sempre difícil seleccionar o que é dito e o que é deixado de fora. Mas talvez valesse o pena o João Rodrigues ter lembrado (fica para outra ocasião) que foi precisamente por a questão das desigualdades ser um problema político e público na Europa pós-1945 que as assimetrias salariais e sociais foram mantidas a níveis historicamente baixos, e que isso em nada colidiu com níveis de crescimento impressionante nos "30 anos gloriosos". Mais: há bons motivos para pensar que eles foram catalizadores do crescimento, e - como o João Rodrigues bem alude, e a citação do Adam Smith no final é deliciosa - não é preciso construir nenhuma teoria muito sofisticada da "motivação no trabalho" para perceber como a questão de quem faz o quê e quanto recebe é central para a forma como os trabalhadores se empenham mais ou menos no que fazem. A produtividade depende em boa medida do consenso laboral e este, por sua vez, depende das percepções de justiça e legitimidade da distribuição de rendimentos e riscos. Os alemães e suecos não são mais produtivos do que os portugueses apenas porque são mais qualificados ou têm mais competências: é porque o ambiente laboral, cujas regras são devidamente definidas de forma partilhada por sindicatos e patronato, é de muito melhor qualidade. Já agora, se correlacionarmos o nível de desigualdades salariais nacionais com as taxas de crescimento mesmo nos últimos 30 anos - já não os "gloriosos", mas os "dolorosos" -, o mais provável é que não obtenhamos nenhuma correlação particular, porque a dispersão de performances nacionais é assinalável e a variação ao longo do tempo também (o modelo americano, elogiado por todos, era dado como defunto há 15 anos, quando era comparado com o Japão, entretanto caído em desgraça; entretanto, a Europa social-democrata - ainda que não tanto a continental nem mediterrânica -, tem-se portado muito bem e mostrado as vantagens comparativas de regimes de produção e bem-estar que permitem um rápido crescimento económico e uma manutenção das desigualdades a níveis baixos, a apesar de estas terem subido um pouco no último quarto de século).

Para mais, a questão a que o João Rodrigues alude no iníco do texto e que se prende com as chorudas compensações que está na moda os gestores do sector privado receberem é daquelas que prova que os salários são boa medida fixados por decisões políticas e não simplesmente pela "produtividade" ou pelo "mercado". Em muitos casos, eu pergunto se essas "decisões" - aqui a mão é bem "visível" - não pertencem ao domínio da cleptocracia. É que o mais comum é essas compensações bilionárias não estarem indexadas a nenhum critério de sucesso empresarial; pelo contrário, elas ocorrem muitas vezes no seguimento desses profissionais terem tido péssimos desempenhos e arrastado as empresas com eles para o fundo. Claro, quem paga são os restantes trabalhadores (e, já agora, os accionistas) e, no limite - porque o trabalhador é cidadão, cônjuge, mãe/pai, etc., fora do perímetro da empresa -, todos nós. E se há socialização dos males, então tem de haver socialização dos bens. E socialização significa politização.

*Publicado também aqui.

4 comments:

CLeone disse...

cleptocracia é o termo (ainda há pouco o usei em conversa com o Daniel...). Como já nos anos 60 a melhrosociologia portuguesa (Hermínio Martins) o via na evolução do corpoprativismo português para um capitalismo dependente do Estado e do familismo amoral. E que a democracia não mudou tanto como a CEE/UE - que também ainda não o mudou o bastante, longe disso...

Hugo Mendes disse...

Há quem lhe chame "corporate neo-feudalism"...

CLeone disse...

neofeudalismo é muito adelino maltez... além de fazer pouco sentido num país em que o poder feudal em sentido próprio nunca foi muito forte, mesmo antes de absolutismo. Enfim, bizantinismos...

Hugo Mendes disse...

Sim, mas estas tipo de práticas está longe de se restringir a Portugal, aliás começaram num país sem tradição feudal (EUA), "malgré" o conceito, que me parece apropriado.