domingo, 13 de maio de 2007

O fim da via

Finalmente consegui dispor de tempo para esboçar alguma coisa sobre as eleições presidenciais francesas. Na verdade, não é bem sobre as eleições que quero escrever, mas sobre algumas questões que me surgiram a propósito do que foi escrito e dito. Emergiu mais uma vez a eterna divisão ideológico-identitária entre direita e esquerda. Afinal, parece que há mesmo diferenças, apesar de muitos apregoarem o fim das ideologias e que, no fundo, as diferenças são apenas ao nível do estilo. Numa eleição fortemente mediatizada como esta, admito que o estilo possa ser um elemento importante. E, admito também, que face a um estilo duro, decidido e, de certo modo, autoritário de Sarkozy, faria sentido contrapor o estilo doce, sorridente e dialogante de Ségolène. E que face a um discurso determinado e radical, faria sentido contrapor uma mensagem conciliadora e, em certo sentido, conservadora. Digo bem, conservadora, sobretudo no que concerne às políticas sociais e económicas que passam fundamentalmente pela proposta de manutenção dos direitos adquiridos e pela conservação do Estado Social.
Embora não vá concretizar muito daquilo que propôs, não há dúvida de que a imagem e a mensagem do candidato da direita foi construída em torno de uma certa tónica de radicalidade, nomeadamente, nas políticas de fechamento e controlo da imigração e de abertura e liberalização da economia. E o que é extraordinário nestas eleições, é que esse ênfase radical ganhou com maioria absoluta. Desta vez o tal ‘centrão’ não optou pelo candidato mais moderado. Sarkozy conseguiu na 1ª volta roubar votos à extrema direita e na 2ª atrair o centro político. A direita institucional não hesitou em apoiar o seu candidato mais intempestuoso, a esquerda institucional apoiou o seu candidato mais ligth e perdeu.
Este desfecho repete o que já tinha sucedido nas últimas eleições presidenciais americanas. O partido republicano radicalizou-se através da sua indumentária neo-conservadora e ganhou face ao candidato mais moderado dos democratas. Nestas duas eleições a direita ganhou radicalizando-se, a esquerda perdeu vendendo-se ao centro. Será uma mera coincidência ou uma tendência que se generalizará noutros países? Não faço ideia, mas uma coisa tenho como certa, para a esquerda a terceira via deixou de ser a via para as vitórias eleitorais. Talvez esta constatação ajude a despir alguns complexos em assumir projectos mais radicais, ou seja, projectos verdadeiramente políticos!

13 comments:

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

"Desta vez o tal ‘centrão’ não optou pelo candidato mais moderado."

Eu não tenho a certeza que o Sarkozy seja visto como significando a tal ruptura que referes. Ele já várias vezes ministro, e as suas propostas são conhecidas há muito. A mudança, ou uma ruptura, significava, isso sim, voltar a colcoar alguém do PSF no poder, e, ainda por cima, uma mulher. Isso sim, nesta altura do campeonato - depois de 12 anos de Chirac - é que seria uma ruptura. Sarkozy não significa um fim do gaullismo. A imagem do homem forte e a manesagem da "autoridade, moral e trabalho" é a mesma.

"Nestas duas eleições a direita ganhou radicalizando-se, a esquerda perdeu vendendo-se ao centro."

Vendendo-se ao centro? Sem polémicas: achas que a Segolène teria tido quanto se tivesse radicalizado o seu discurso à esquerda? 35%? E em nome do quê? É engraçado que as pessoas se perguntem com quem deve o PSF fazer uma aliança para as legislativas; se devem escolher o PCF, que teve 1,9%, ou o Bayrou, que teve dez vezes mais, 19%. A escolha não me parece difícil...

"Não faço ideia, mas uma coisa tenho como certa, para a esquerda a terceira via deixou de ser a via para as vitórias eleitorais"

Em França nunca houve terceira-via. E onde ela existiu (e digo isto sem ser grande fã do passa por "terceira-via"), do outro canal da Mancha, deu três mandatos seguidos.

"projectos mais radicais, ou seja, projectos verdadeiramente políticos"

Um projecto para ser "verdadeiramente político" tem que ser "mais radical"? Para ganhar que votos?

Volto ao que já escrevi sobre este assunto multiplas vezes. Em nome de uma espécie de "purismo", a esquerda vai continuar na oposição. Não foi por acaso, mas mesmo nada por acaso, que Blair ganhou três vezes seguidas - tantas quantas o PSF perdeu (1995, 2002; 2007). São necessárias mais quantas derrotas para que, à esquerda, se tirem algumas lições?

Renato Carmo disse...

A questão do post é muito simples, porque é que a direita conservadora e liberal consegue ganhar eleições através de um discurso mais directivo e de uma imagem mais radical e para a esquerda socialista nem sequer se põe essa hipótese?
Hugo, em termos formais a 3ª via nunca foi assumida em França, mas parece-me que Segolène encarna perfeitamente um certo estilo "Blairista".

Zèd disse...

"porque é que a direita conservadora e liberal consegue ganhar eleições através de um discurso mais directivo e de uma imagem mais radical e para a esquerda socialista nem sequer se põe essa hipótese?"
No caso das eleições francesas o artigo do "Libération" que o André Belo linkou outro dia dá boas pistas. O problema não é o programa em mas a estratégia do PS.

Podemos também criticar S. Royal por o seu programa não ser suficientemente à esquerda, mas nada indica que foi por isso que ela perdeu as eleições, mais à esquerda não teria dado mais votos.

E finalmente acho que Sarkozy conseguiu recuperar a estratégia eleitoral que melhor funciona em França, a do candidato da mudança que não vai mudar muito. Giscard d'Estaing ganhou com a "mudança da continuidade" e Mitterand com a "revolução tranquila" (Chirac não precisa de slogans para se saber que nada vai mudar). Quando Sarkozy, que vem da maioria que está no poder há cinco anos, se apresenta como um candidato da ruptura é óbvio que vai mudar sem mudar muito. Essa estratégia é a que melhor funciona em França. A vitória é acima de tudo uma vitória de Sarkozy.

L. Rodrigues disse...

Só por curiosidade, estão familiarizados com o conceito da "Janela de Overton"?
O que se tem passado globalmente é um deslocamento dessa janela para a direita. Esvaziado que está o bloco de leste faltam polos na esquerda.

Hoje haveria talvez uma oportunidade com a experiência Sul Americana de encontrar um discurso de esquerda "radical" que equilibrasse os pratos da balança, mas as esquerdas europeias parecem preferir envergonhar-se com Chavez ou Morales do que olhar para a possibilidade que eles oferecem.

Hugo Mendes disse...

"porque é que a direita conservadora e liberal consegue ganhar eleições através de um discurso mais directivo e de uma imagem mais radical e para a esquerda socialista nem sequer se põe essa hipótese?"

Porque o discurso da direita não é directivo nem radical; e porque a esquerda socialista não tem eleitorado para se pôr com "radicalismos".


"em termos formais a 3ª via nunca foi assumida em França, mas parece-me que Segolène encarna perfeitamente um certo estilo "Blairista"."

Blair teve 4, 5 anos para pensar num programa coerente. Ségolène teve 5 meses para pensar numa campanha. Uma campanha (e um "estilo", para usar a tua expressão) não é um programa; e Ségolène não tinha um programa (tinha apenas uma amálgama de propostas), ao contrário de Sarkozy.

Renato Carmo disse...

"Porque o discurso da direita não é directivo nem radical; e porque a esquerda socialista não tem eleitorado para se pôr com "radicalismos".

Hugo, extraordinária a tua argumentação. Sim senhor, convenceste-me!

Se Sarkozy não foi mais directivo então como explicas a tua própria ilação:

«Ségolène não tinha um programa (tinha apenas uma amálgama de propostas), ao contrário de Sarkozy».

A explicação tem só a ver com a falta de tempo para elaborar um programa? Ou terá a ver com a incapacidade da esquerda socialista em conceber um programa verdadeiramnete alternativo ao de Sarkozy?

Hugo Mendes disse...

Renato, vamos ser claros. Não confundamos ser "radical" ("directivo" não consigo perceber muito bem o que é, mas ok) e ter um programa não tem nada uma coisa a ver com a outra. Eu afirmei que Sarkozy tinha um programa; discordo que ele seja "radical". É um programa mais ou menos "mainstream" sob lema "autoridade, moral e trabalho", um gaullismo moderno, com um toque anti-imigração e securitário para atrair o eleitorado do Le Pen. Não vejo radicalismo aqui nenhum para além desta inclinação para ganhar os votos da extrema-direita. Sarkozy inclusive sempre demonstrou preocupações proteccionistas e em repensar o fenómeno das deslocalizações, que não vejo em mais nenhum líder da direita na Europa Ocidental!

"A explicação tem só a ver com a falta de tempo para elaborar um programa? Ou terá a ver com a incapacidade da esquerda socialista em conceber um programa verdadeiramnete alternativo ao de Sarkozy"

O PSF andou a arrastar os pés estes anos todos e chegou ao fim de 2006 sem uma única ideia política nova. Depois, claro, teve que eleger um candidato, mas ninguém fez o trabalho de casa ideológico. O Thomas Piketty explicou o que havia a explicar no outro dia no artigo do "Libé" linkado pelo André Belo sobre a falta de tempo para pensar a sério num programa coerente.

Continuo a pensar que não levas a sério a questão do constrangimento eleitoral. É que não é apenas uma questão de construir um programa "verdadeiramente alternativo", Renato. É preciso, recordo, que as pessoas votem nele. É uma chatice, mas é a democracia. E persuadir o eleitorado que o programa é coerente, sério e crédível implica deixar de lado uma série de ideias que tu gostarias de ver num programa radical. A não ser, claro, que se pretenda reduzir o score eleitorial dos PSF aos 30%, talvez menos (Jospin não chegou aos 20% na 1ª volta em 2002...)...Se não houver essa preocupação, ah, então é facil, podemos pensar em construir um programa "verdadeiramente radical" - tendo em conta, claro, que nunca será aplicado porque nunca ninguém elegerá um partido com semelhantes ideias (escuso-me de comentar quais são porque também não sei as ideias radicais que tens em mente). É esse o objectivo?

Renato Carmo disse...

O objectivo deste post foi de pôr essa questão. Partes de um conjunto de pressupostos que não é possível demonstrar. Quando ganhou as eleições pela 1ª vez Chirac voltou-se para o centro logo na 1ª volta. Sarkozy optou por extremar o seu discurso para atrair votos da Frente Nacional correndo o risco da sua imagem se poder colar à extrema direita. Mas isso não sucedeu.
Porque é que a esquerda socialista (ou social-democrata) não pode fazer o mesmo: assumir um programa mais radical (isto é, menos centrista) com a credibilidade necessária para poder assumir-se como alternativa ao programa eleitoral da direita?
Esta questão não se limita à realidade francesa. Por exemplo, em Espanha Zapatero conseguiu fazer um pouco isso. E não se tem saído mal...

Hugo Mendes disse...

"Porque é que a esquerda socialista (ou social-democrata) não pode fazer o mesmo: assumir um programa mais radical (isto é, menos centrista) com a credibilidade necessária para poder assumir-se como alternativa ao programa eleitoral da direita?"

Mas o que é um programa mais "radical"? Parece que a palavra "radical" é uma palvra mágica e óbvia, mas a verdade é que não percebo o que isso quer dizer? (É o quê?: nacionalizações? já nem os franceses acreditam nisso...impostos mais altos? salários mais altos?).
Tu pareces esquecer que Bayrou ganhou 19% dos votos, quase o dobro que todos os partidos à esquerda do PSF juntos! Não achas que isso diz do peso do centro e da impotência eleitoral da esquerda? É que se as lições do passado não fossem suficientes - e são -, e consideras estes dados como "pressupostos que não é possível demonstrar", bom, então não sei, isto a mim parece-me bastante transparente e cristalino. Se o PSF tivesse um programa mais "radical" (seja lá o que isto quer dizer) teria menos votos na segunda volta, com toda a probabilidade do score geral ser historicamente humilhante. Isto não é uma lição desta eleição. Tem de ser uma lição para o futuro, sob pena do PSF perder a vocação de ser um partido que possa ganhar eleições - ou eventualmente eclipsar-se. Não seria a primeira vez na história francesa recente.

O Zapatero tem um progama considerado "radical" (mesmo com cerca 10% de desemprego, salvo erro)? Folgo em saber que é essa a tua opinião, para futuras discussões...:)

Renato Carmo disse...

Há mais política para além da economia, meu caro!

Hugo Mendes disse...

De acordo. Mas se quiseres precisar o "radicalismo" em questão...(só para não dizeres que os outros não são "radicais" sem nunca se saber muito bem o que é que a palavra-fectiche subsume...:))

L. Rodrigues disse...

A discussão já acabou mas para ajudar, eu diria que radical é tudo o que está nas margens do aceitável em termos de opinião pública ou para lá dela.

O aborto era radical, mas passou a ser mainstream.
Homeschooling em portugal é radical, mas à medida que se for falando mais nisso, vai parecer mais aceitável para um numero crescente de pessoas.

São dois exemplos de deslocamento, à esquerda e à direita, da janela de Overton por introdução de temas radicais no discurso público.