quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Abortar o silêncio

O meu silêncio em torno deste longo debate sobre o referendo do aborto prendeu-se, maioritariamente, com a total desaprovação do mesmo. Enquanto instrumento político o referendo parece-me ser uma ferramenta de desresponsabilização da Assembleia e do Governo, tal como, demonstrarei, uma forma de descrédito dos instrumentos do Estado e da voz da dita ‘sociedade civil’. Estas instituições estatais, sancionadas e legitimadas pelo voto popular, têm poderes legislativo e deliberativo. Mais ainda, são, por excelência, arenas de debate onde qualquer decisão é da responsabilidade dos membros as compõem. Deputados e membros do governo têm o dever de se informar, estudar, de formar opinião e deliberar sobre assuntos tão vastos como as finanças ou o sistema nacional de saúde. É para tal que são eleitos: para representar interesses e posições.




A convocação de um referendo é, por si própria, a negação desta função constitucionalmente definida. Não nego, de todo, que o referendo, enquanto figura, seja constitucional. O que afirmo é que o passar de voz ou poder decisório do quadro da Assembleia ou do Governo para a consulta eleitoral bipolar (sim/não) é uma forma de fugir à posterior responsabilização em matérias tão importantes como a liberalização do aborto ou a regionalização. Isto é, qualquer escolha legislativa ou política (no sentido de policy) deve ser elaborada num quadro racional de avaliação das vantagens e desvantagens associadas à decisão. Para que tal seja possível é necessário estudar as matérias em profundidade e provavelmente desenvolver investigação que permita criar cenários realistas sobre as consequências da alteração da lei ou da política. A capacidade de estudar ou mobilizar recursos para tal não massificada na sociedade e nem todas as vozes são relevantes quando é necessário decidir políticas cruciais para o futuro de um país – faz sentido referendar a política nacional de combate à sida? O que é que me interessa a mim que um padre de Bragança esteja contra a introdução da distribuição gratuita de preservativos por ser contra os mandamentos da Igreja? Não é uma questão bipolar entre o sim ou o não.

Por outro lado, o referendo enfraquece o Estado e os mecanismos democráticos de eleição pois massifica e desvaloriza o valor destas acções. Ir às urnas de 4 em 4 anos (ou de 5 em 5) é um bem valioso, construído como um direito a utilizar. Ir todos os anos votar em qualquer coisa faz o comum dos mortais perder a paciência e construir o voto como algo sem valor. Quanto ao descrédito da voz ouvida: os resultados de abstinência dos 3 referendos até hoje realizados nunca conseguiram conferir a legitimidade e vínculo à opinião expressa pelos eleitores (sempre uma minoria, é certo). Quer isto dizer que se descarta a sua opinião ou que o assunto em causa não tem relevo na agenda política nacional? E que posição mais ambígua e bizarra é a que agora chegámos de ter um referendo não válido (ou vinculativo) mas considera-lo válido porque o Primeiro Ministro é dessa opinião? Porque não decidiu ele de imediato alterar a lei sem gastar recursos financeiros e políticos? (É certo que havia uma história anterior de referendo mas ou se tem coragem – e recursos políticos – ou então anda-se a brincar). É importante referendar ou não?



Quanto à discussão propriamente do resultado, também eu não alinho na celebração de um Portugal moderno. É certo que o sim ‘ganhou’ mas e então? O que quer isto dizer? Como é este resultado se vai traduzir legislativamente e praticamente no corpo da mulher? Temo, infelizmente, que vamos ter uma lei de classe média para a classe média. Se bem me recordo um dos paus de bandeira da campanha pelo sim baseava-se no facto de que o actual sistema hipócrita permitia apenas mulheres com recursos ir a Espanha, França, Suíça ou Reino Unido fazer ‘turismo abortivo’. As outras encontravam as suas aborteiras em vãos de escada sem qualquer controlo de qualidade médica ou técnica. Antevejo uma lei que perpetue esta situação. Uma lei que no fundo liberaliza a prática de clínicas privadas no país mas e que principalmente e essencialmente descarta a obrigação do Estado de oferecer este ‘serviço’ à mulher. Isto é, uma lei que permite a mulher da classe média não ter que ir além fronteiras mas que obriga as outras a recorrer a técnicas já antigas e anti-modernas de fazer abortos em vão de escada.
No fundo, este referendo foi uma grande jogada de Sócrates: o estigma de liderar um país onde as mulheres são criminalizadas por controlar o seu corpo desaparece. Os rendimentos fiscais auferidos com a prática de abortos privados aumenta. Contudo a situação mantém-se em grande medida a mesma.


8 comments:

Hugo Mendes disse...

Joao, a sério, tens alguma indicação que nada vai mudar, ou seja, que as mulheres vao continuar a ter que fazer abortos sem quaisquer condições (já que em clandestinidade não será)? O SNS garante seguramente qualidade minima e os privados não acredito que sejam piores. E se houver privados maus, haverá, felizmente, alguma margem de escolha - a suficiente para, se forem muito maus, em princípio desaparecerem.
Depois, se o Estado comparticipar - eu acho que que devia cobrir na totalidade, mas ok, há aqui uma margem para descontentamento, admito - substancialmente a IVG, qual é o problema real de se efectuar no privado, se houver garantias de qualidade e celeridade? O que é que se pretende afinal: que as mulheres abortem em segurança e consciência, ou que elas o façam obrigatoriamente no público, mesmo que para isso a qualidade - por overcrowding, por boicote médico, etc. - seja por vezes inferior? Para quê introduzir "ideologia" (num sentido negativo neste caso) nesta questão se efectivamente queremos garantir que as mulheres tenham e possam exercer a melhor opção?

Daniel Melo disse...

João, levantas 2 questões pertinentes: a 1.ª sobre a pertinência do instituto do referendo para casos como o que se discute; a 2.ª sobre o perigo que há do Estado se descartar duma política de saúde específica e transferir o grosso das futuras intervenções legais de IVG para o sector privado.
Sobre a 1.ª, embora concorde contigo sobre a necessidade de não se banalizar o referendo, na actual conjuntura de ter outro referendo atrás que fora tacimente aceite tinha que ser novo referendo a anular o anterior. Repara nisto: 'só' 2 milhões e meio votaram sim em 8 milhões. Quer dizer que eleitoralmente ficou-se longe de se fazer o pleno da esquerda, i.e., muitos eleitores da esquerda não achavam que esta fosse uma questão prioritária, já que nem sequer foram lá votar para tentar desatar o nó.
Uma boa maneira de evitar banalizações é fazer como nos EUA: concentrar os referendos na altura dos grandes actos eleitorais.
Por cá, a gente gosta de complicar a vida.
Depois, o referendo tem um efeito positivo indirecto: obriga a sociedade civil a sair do seu relativo torpor político, a reanimar a componente democrática dos partidos e de par a criar espaços de competição com aqueles.
Uma via indirecta para uma maior exigência cívica.

Daniel Melo disse...

Ops, aqui vai o final, sobre a 2.ª questão que levantas, do perigo de 'privatização' da resposta médica para a IVG. Só há uma resposta a isso: a sociedade civil acompanhar a situação, fiscalizando a correspondência entra a vontade popular, as promessas políticas e as consquências práticas efectivas.
Daí que o Renato tivesse razão ao dizer que a sociedade civil não pode esperar que o Estado agora resolva. Até porque o Estado (os seus dirigentes máximos, entenda-se) pode achar que é melhor transferir a questão para o sector privado e aí há que contrapor soluções alternativas legitimadas.

Hugo Mendes disse...

"Até porque o Estado (os seus dirigentes máximos, entenda-se) pode achar que é melhor transferir a questão para o sector privado e aí há que contrapor soluções alternativas legitimadas".

O sector privado, se não excluir ninguem e se o Estado comparticipar muito decentemente, não é uma solução legitima(da)? E se não é, porquê?

Zèd disse...

"Uma boa maneira de evitar banalizações é fazer como nos EUA: concentrar os referendos na altura dos grandes actos eleitorais."
Daniel, os EUA é um mau exemplo, a banalização é total, com dezenas de referendos a serem votados ao mesmo tempo, sem sequer se averiguar a priori se o resultado do referendo pode realmente ser aplicado, se está de acordo com a constituição etc..., muitas vezes vota-se literalmente para nada, e a participação é reduzidíssima. Os eleitores quase sempre votam só numa meia-dúzia dos referendos que constam no boletim de voto. Isto é apenas um à parte para dizer que prefiro o referendo tal como ele é, deve ser feita uma campanha só para o referendo. Estás a imaginar o que teria sido o debate sobre o aborto ao mesmo tempo que se fazia uma campanha eleitoral para as legislativas?

Dito isto, sou a favor do referendo para determinadas questões, questões suficientemente importantes para que uma Assembleia da República, eleita na base de um programa eleitoral vasto, não possa decidir sem consultar os eleitores. Como é que se determina que é suficientemente importante? É uma decisão caso a caso, o aborto é - na minha opinião - suficientemente importante (quanto mais não seja porque só um referendo pode anular outro anterior, como diz o Daniel), a política de prevenção da SIDA não o é.

No resto estou inteiramente de acordo com o que dizem o Daniel e o Hugo.

Hugo Mendes disse...

Perá lá Zèd que eu não estou de acordo com o Daniel (e parece-me com o João) numa coisa muito importante, que é o papel que o sector privado vai assumir nisto tudo, e bem mais depressa que o publico, como se vê pela rapidez com que as clínicas espanholhas se prestam para abrir em Portugal. Parece-me que estão todos de acordo que a mulher possa fazer uma IVG até às 10 semanas num estabelecimento de saúde autorizado, mas que esse estabelecimento tem de ser público, como se não existissem já serviços privados de saúde. Vai a esquerda agora fazer fita e dizer que "aborto sim, mas só no SNS"?

Zèd disse...

(comentário cínico) No SNS ou no privado subsidiado pelo estado vai dar ao mesmo.

Espero claro que seja comparticipado pelo estado, e bem comparticipado pelo menos para quem não tem posses, mas não tem que ser necessariamente no SNS. Mas isso é sobretudo uma questão logistica de aplicação da lei, sobretudo numa fase inicial em que o SNS pode não estar preparado para das resposta.

Daniel Melo disse...

Vamos lá esclarecer as coisas: eu não só contra o sector privado, mas sim contra a privatização dos serviços relativamente à IVG, a menos que haja um sistema de comparticipação que seja favorável ao Estado e ao utente. É que a maioria das pessoas nesta situação não tem condições financeiras e, sobretudo, a IVG foi considerada uma questão de saúde pública, logo, do SNS.
É que certas experiências de privatização no sector da saúde têm sido prejudiciais para os cidadãos (vd. o caso do Hospital Amadora-Sintra) e sem que se tenham tirado as devidas ilações.
Quanto ao referendo, bom, se nos EUA é a banalização completa discordo também, mas convém questionar também se esses referendos têm ou não têm tido efeitos globais positivos em termos sociais e políticos, aprovando-se medidas mais progressistas, liberais, etc., e em termos de envolvimento cívico?