A propósito deste post de Zèd sobre a política de transportes para Lisboa, venho expor a minha oposição à proposta de pôr portagens nos acessos à cidade, como medida para reduzir o número de automóveis. Como bem identificou Zèd, um dos problemas centrais da falta de eficácia dos transportes públicos relaciona-se com a descontinuidade das linhas e das ligações entre os vários tipos de transporte, e a falta de racionalidade na gestão dos recursos disponíveis. No entanto, considera que a plataforma existente representa uma alternativa mais do que suficiente para que as pessoas deixem de vez o carro particular. Daí que se legitime uma medida de choque - as portagens – como meio de desencorajar uso do automóvel. Sobre isto tenho várias considerações a fazer:
1. Ver o uso do automóvel somente à escala da cidade é um erro. À semelhança do que acontece com outros trajectos, como a ligação ferroviária entre as duas bandas do Tejo, o automóvel não deixa de ser usado por completo. Passa é a fazer somente parte do percurso (normalmente, da residência até à estação de comboio). Mas os carros têm de ficar em algum lado!
2. Para além da descontinuidade das linhas, verifica-se que a maior parte das estações e nódulos de intercepção entre as várias redes não têm parques de estacionamento em condições para albergar o conjunto enorme de veículos que não deveriam entrar na cidade.
3. A cidade não é só invadida durante o dia. À noite é um espaço de lazer ao qual acorrem imensas pessoas da periferia. Dado que não é economicamente viável manter a mesma oferta de transportes que existe durante o dia, como é se resolveria esta situação? Deixaria de haver portagens em horário pós-laboral? Parece-me que esta medida seria no mínimo imoral: quem quisesse ir trabalhar de carro teria de pagar, quem quisesse ir divertir-se à noite não pagaria.
4. Contudo, o argumento que mais me surpreende, para legitimar a medida, assenta no mercado. Num comentário ao post o Hugo justifica a ineficácia do serviço público “porque o mercado não se desenvolveu, dado que não há procura que o justifique; no dia em que as pessoas não tiverem a mesma facilidade para levar o carro p o interior da cidade de Lisboa, essas soluções aparecerão”. Esta afirmação não está muito longe da retórica neo-liberal cujo meio para solucionar qualquer problema passa por impor a liberalização do mercado. Aqui a ideia é outra, o mercado dará os seus frutos ao se impor uma portagem. Com a agravante de que o Estado sairia duplamente beneficiado, não teria que encontrar alternativas, pois o mercado arranjá-las-ia, ao mesmo tempo, que engordaria os bolsos ao tributar a entrada na cidade. Não estamos muito longe do modelo da cidade-estado da época medieval.
1. Ver o uso do automóvel somente à escala da cidade é um erro. À semelhança do que acontece com outros trajectos, como a ligação ferroviária entre as duas bandas do Tejo, o automóvel não deixa de ser usado por completo. Passa é a fazer somente parte do percurso (normalmente, da residência até à estação de comboio). Mas os carros têm de ficar em algum lado!
2. Para além da descontinuidade das linhas, verifica-se que a maior parte das estações e nódulos de intercepção entre as várias redes não têm parques de estacionamento em condições para albergar o conjunto enorme de veículos que não deveriam entrar na cidade.
3. A cidade não é só invadida durante o dia. À noite é um espaço de lazer ao qual acorrem imensas pessoas da periferia. Dado que não é economicamente viável manter a mesma oferta de transportes que existe durante o dia, como é se resolveria esta situação? Deixaria de haver portagens em horário pós-laboral? Parece-me que esta medida seria no mínimo imoral: quem quisesse ir trabalhar de carro teria de pagar, quem quisesse ir divertir-se à noite não pagaria.
4. Contudo, o argumento que mais me surpreende, para legitimar a medida, assenta no mercado. Num comentário ao post o Hugo justifica a ineficácia do serviço público “porque o mercado não se desenvolveu, dado que não há procura que o justifique; no dia em que as pessoas não tiverem a mesma facilidade para levar o carro p o interior da cidade de Lisboa, essas soluções aparecerão”. Esta afirmação não está muito longe da retórica neo-liberal cujo meio para solucionar qualquer problema passa por impor a liberalização do mercado. Aqui a ideia é outra, o mercado dará os seus frutos ao se impor uma portagem. Com a agravante de que o Estado sairia duplamente beneficiado, não teria que encontrar alternativas, pois o mercado arranjá-las-ia, ao mesmo tempo, que engordaria os bolsos ao tributar a entrada na cidade. Não estamos muito longe do modelo da cidade-estado da época medieval.
5. Entendo que as portagens poderão fazer sentido, não enquanto medida choque, mas num cenário em que o Estado e a CML tiverem proporcionado as condições necessárias para as pessoas prescindirem dos automóveis. Porque se isso não acontecer estou convencido de que a maior parte dos utentes não deixará de utilizá-lo. Veja-se o que sucede com o tráfego da Ponte 25 de Abril, apesar do aumento das portagens, do parqueamento pago em todos os passeios da cidade e do aumento dos combustíveis (o que encareceu em muito os custos), grande parte das pessoas ainda considera que é mais rentável utilizar o carro. Não serão todas irracionais, pois não?
9 comments:
Eu por alguma razão eu sabia que bastaria invocar o mercado para te deixar "zangado" :). Isto não tem nada de neo-liberalismo (que é daquelas palavras que de tanto ser usada vira-se contra aqueles que dela abusam: ao fim de um tempo não significa rigorosamente nada); independentemente agora de a portagem ser uma solução correcta, seja do ponto de vista político, económico, ou moral (e não sei se é), o que eu disse é o ABC da funcionamento dos mercados, que depois pode acontecer melhor ou pior na realidade, e é por isso que são necessárias entidades reguladoras e muita atenção nas regras que regem a criação desses mercados. E isto nem sequer tem a ver com "privatização" (outra palavra usada, e mal usada, para descrever realidades extremamente díspares); há imensas soluções intermédias que levam a que haja um aumento de competição entre diferentes operadores de transportes e que levariam facilmente a que os serviços mais procurados fossem imediatamente cobertos. Garanto-te que o serviço Algés-Entrecampos, por exemplo, seria um deles.
Francamente não consigo perceber que digas seriamente que: "Com a agravante de que o Estado sairia duplamente beneficiado, não teria que encontrar alternativas, pois o mercado arranjá-las-ia". Há algum problema do Estado sair "beneficiado"? Por definição, se o Estado sai beneficiado, entao eu acho bem; se o Estado tem de gastar menos dinheiro, então isto é bom. Parece-me óbvio porquê.
Do ponto de vista do consumidor médio, se ele sair beneficiado, então pouco lhe interessará se foi o Estado ou o mercado a fazê-lo. Ele quer fundamentalmente qualidade de vida.
Resumindo, qual é exactamete o problema do "mercado engordar os bolsos" (só a expressão já diz tudo) se (e isto, como calculas, é um "se", depende da uma avaliação empírica):
1) se o consumidor sair beneficiado (e já sabemos, nestas coisas há consumidores diferentes, é preciso arbitrar entre diferentes preferências, mas o teu argumento nem é esse);
2) se o Estado gastar menos com um serviço que entretanto melhorou de qualidade e passou a ser prestado pelos privados, com beneficios para todos, permitindo ao Estado libertar-se de um encargo, e pode por isso redireccionar os seus gastos para prioridades onde o mercado nao resolve os problemas (pobreza, educação, saude, I&D, etc.)
3) Se o mercado "enche os bolsos", bom, isso significa que o Estado tambem os enche, porque os lucros são taxados. Ou seja, o Estado pode deixar de ter prejuizos para passar ele proprio a ter lucro com a exploração privada do serviço.
Se isto é o "neo-liberalismo", então venha ele.
Tens dados sobre o uso da ponte 25 de Abril? Gostava de saber se o uso do carro efectivamente aumentou ou diminuiu.
E resta saber o que foi aqui feito ao nível dos transportes públicos - e se as soluções encontradas foram de qualidade (já nem invoco o argumento - que devia ser imediato - que o regime de competição na exploração da via transfluvial é tão dado práticas monopolistas que o mais provavel é o consumidor ser das ultimas coisas em que a Transtejo pensa, mas pronto).
"Não estamos muito longe do modelo da cidade-estado da época medieval."
Na altura praticamente não existiam mercados.
"O que vocês propõem é que as portagens representem o meio para que o mercado encontre as alternativas."
Se for o mercado a oferecer as alternativas - desde que ela funcione -, há algum problema? É que parece que se for o Estado a oferecer a solução, optimo; se for o mercado, ah, isso já não...
"Volto a reafirmar parece-me não haver muito sentido para que o Estado engorde os bolsos à custa das portegens, sem construir alternativas viáveis para a redução do uso do automóvel."
Isto não é "panaceia" para reduzir o uso do automovel; agora, não ser uma panaceia não signfica que não possa ser uma proposta possivel, usada em articulação com outras, logicamente.
Depois quero um post escrevo sobre outras propostas concretas possiveis.
Mas eu não acho que alguém defenda isto como "terapia de choque"; a ser adoptada seria sempre uma medida entre outras, devidamente integrada, porque as "terapias de choque" sem avaliação dos efeitos globais normalmente não dão em nada, a não ser na multiplicação de problemas laterais não previamente monitorizados.
Segundo a tua reformulação mais abaixo da citação do Burke: «Um Estado que não tem os meios da sua reforma não tem os meios da sua transformação».
Resta saber se estes meios existem, circunscrevendo-nos aqui à questão dos transportes, dada a inépcia em muitas áreas. Como é possível que nunca se tenha feito metro para o aeroporto (que é, ao contrário das outras cidades europeias, dentro da cidade!) ou para Santa Apolónia? Eu francamente duvido que se houvesse o mínimo de racionalidade económica e o dinheiro do Estado não fosse encarado na lógica da "torneira- sempre-aberta" esta questão não estivesse resolvida, e isto há muito tempo.
Se houver um pequeno choque, desde que articulado com outras soluções integradas, acho que ninguém perdia grande coisa (isto agora abstraindo da questão da portagem). É como o exemplo dos torniquetes...
"Quando se considera que a actual rede e plataforma de transportes públicos é suficientemente eficaz para justificar as portagens, equivale, quanto a mim, a uma medida de choque."
Ora aqui é que está a questão. Como é óbvio acho que a rede de transportes em Lisboa pode ainda melhorar bastante, e por isso mesmo fiz sugestões no meu post. Agora interessa saber se a rede actual já cumpre um mínimo exigível para se impôr a tal medida de choque. Objectivamente não sei, mas acho que sim. Aceito que se imponha as portagens só após se fazerem ainda mais algumas melhorias significativas, caso se demonstre que actualmente nem os mínimos se cumprem. Agora também não tenho ilusões que mesmo por muitas melhorias que se façam há hábitos que são difíceis de quebrar. Acredito que haja muita gente, não sei se irracionais se não, mas seguramente comodistas, que preferem gastar mais dinheiro em gasolina, demorar mais tempo no trajecto e estacionar em cima do passeio para poderem deslocar-se nos seus próprio carro em vez de usar transportes públicos. Para provocar uma alteração de hábitos é preciso uma medida de choque. O discurso do "não há alternativas de transporte" pode descambar para o facilitismo.
Também ninguém propôs a portagem como uma medida isolada, na esperança que o mercado resolva tudo sózinho. Propus essa medida integrada numa série de medidas, e acho que o mercado pode responder positivamente, mas mesmo que não responda cumpre ao estado tomar uma série de medidas para melhorar o transporte. A resposta do mercado é apenas uma previsão, que nem sequer é essencial.
A questão de fazer a portagem apenas a determinadas horas não tem nada a ver com um juízo de valor da finalidade com que se utiliza o carro, até porque há quem se divirta de dia e quem trabalhe à noite (e há ainda quem faça as duas ao mesmo tempo :-). Simplesmente trata-se de limitar a entrada de carros na cidade nas alturas em que os há em maior quantidade, que é de dia.
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