sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Quem faz a investigação, quem a paga e quem beneficia com ela?

Começou a ser julgado esta semana na Índia um processo que pode ser crucial para que nos países em desenvolvimento haja produção e distribuição de medicamentos a baixo custo. A Novartis, empresa suíça, terceira maior farmacêutica mundial, lançou um processo contra o estado indiano a propósito da patente do Glivec, um medicamento contra o cancro. Na Índia a lei da propriedade intelectual recusa como nova patente alterações triviais a fármacos já conhecidos, que é o expediente que a Novartis usou para reclamar a patente do Glivec. É aliás uma estratégia frequente das farmacêuticas para obter patentes de medicamentos.
O simples facto de os medicamentos poderem ser patenteados levanta-me dois problemas éticos. Primeiro, o interesse público, tratando-se de um medicamento que pode salvar vidas, ou melhorar a qualidade de vida, não será suficiente para que os fármacos não sejam passíveis de ser patenteados? Segundo, na área das Ciências Biomédicas (como muitas outras áreas) não são as empresas privadas, neste caso farmacêuticas quem paga a investigação que conduz à descoberta de novos medicamentos, quem paga numa grande maioria são os governos (i.e. os contribuintes), e o restante são doações de beneméritos. As farmacêuticas ou fazem pequenas alterações aos medicamentos para patentearem as formas modificadas, ou compram a patente dos medicamentos que resultam da investigação paga com dinheiros públicos (e por sinal costumam comprá-los bem baratinhos). Ainda para mais a descoberta de um novo medicamento resulta sempre de anos e anos de trabalho de diversas equipes, mas é quem dá o último toque, e pode ser quem chega à última da hora, que obtém a patente. E o problema é que uma patente é um monopólio.
Este processo na Índia pode abrir um precedente, e as farmacêuticas estão à espera de ver no que dá, se a Novartis ganhar o processo outros se seguirão. Mas estes processos também não são uma novidade, em 2001 várias farmacêuticas moveram um processo contra a África do Sul por causa da produção de medicamentos contra a SIDA. Abandonaram o processo devido à contestação internacional, em particular dos Médicos sem Fronteiras (MSF). A Índia é, hoje em dia, o principal produtor de genéricos para os países em desenvolvimento, por exemplo fornecem ao MSF 80% dos anti-retrovirais que esta organização usa nos seus programas de combate à SIDA. Tal como fizeram em 2001 os MSF lançaram uma petição online para a que Novartis bandone o processo. Aguardam-se desenvolvimentos nos próximos dias. Mais sobre o assunto aqui.

P.S. - Este post é uma versão reduzida de um outro que postei no Agreste Avena.

4 comments:

Hugo Mendes disse...

O problema não está na existência das patentes: a inovação tecnológica sustentada depende da sua existência. Mas como em tudo o que envolve o funcionamento mecanismos de incentivos, o que conta são as regras do regime proposto. Não vale a pena pensar que os processos de inovação contemporâneos podiam funcionar sem patentes; isso seria suicidário (e em muitos casos para quem mais dela necessita). Por isso o que realmente conta são as regras do jogo e os limites de determinadas práticas que são perversas e, nalguns casos, moralmente inaceitáveis. O caso relatado aqui pelo Zé é um desses.

Neste sentido, Renato, o que está aqui em causa não apenas, ou sequer sobretudo, o facto de a propriedade estar desigualmente distribuida - o que é um facto inequívoco -, mas antes o que se faz com o que se tem, ou seja, se se inova ou se, por exemplo, se põe a render ou se simplesmente não faz nada, deixando-a degradar (seja este capital financeiro, imobiliário, intelectual, etc.). Os que inovam sao "empresários", os que vivem de rendimentos sao efectivamente "capitalistas". Convém nao elidir as diferenças entre uns e outros (o socialismo, por exemplo, não tem nada por princípio contra os empresários/indivíduos empreendedores; aliás, podemo-nos esquecer, mas a justificação para a superioridade do socialismo durate muitas décadas era a de que era bem mais eficaz e inovador que o capitalismo, cujo egoísmo e desorganização gerava um enorme desperdício de recursos; ou seja, o socialismo era um sistema capaz de melhor gestao e aproveitamento do recursos oriundos do trabalho humano, mas tambem da terra e do capital, ou seja, o argumento para o socialismo era também de cariz produtivista (hoje diríamos "inovacional")). A questão, de novo, está em saber quais as regras do jogo que permitem compatibilizar o incentivo à inovação contínua com a garantia que esse incentivo não é contraproducente para o próprio processo de inovação (por ex., mantendo conhecimento in secrecy que seria necessária para continuar a avançar na inovação), que não permita facilmente que os inovadores passem a ser rent-seekers das inovações passadas, e, the last but not the least, que garanta uma distribuição das inovações mais importantes aos mais necessitados - que é seguramente uma das questões que mais debate político e moral levanta. E isto depende, em última análise, mais de uma subtil análise de 'n' prós e "contras" do que de grandes declarações ideológicas que tantas vezes carecem de concretização (correndo o risco de serem, por isso, ocas).
Por exemplo, para conseguir, como o Zé parece propor, que os medicamentos ja conhecidos e/ou considerados essenciais possam ser mantidos fora das regras internacionais de propriedade intelectual (perspectiva que na generalidade obviamente partilho) pode ser bem possível que tenhamos que aceitar práticas mais restritivas e monopolistas noutras áreas que tragam lucro mas nao caiam sob o domínio da saúde publica (por ex., na área da cosmética), lucros esses que permitam depois a essas mesmas empresas continuar a investir em áreas essenciais e que podem trazer benefícios a longo prazo para todos (convém nas esquecer que a investigação nestes domínios é brutalmente cara). O que não podemos é propor acabar com as patentes; é uma questao de redefinir as suas regras e fronteiras.

Zèd disse...

Hugo,
No essencial concordo, eu não proponho o fim das patentes (pelo menos não agora neste post, embora tenha reservas sobre se são essenciais ou não para a inovação). O que proponho é um regime especial para os medicamentos pela sua evidente utilidade pública. Agora quando dizes que será necessário aceitar "práticas mais restritivas e monopolistas noutras áreas que tragam lucro mas nao caiam sob o domínio da saúde publica" é como se fosse uma compensação às farmacêuticas pelo esforço que estas fazem na investigação, ora esse esforço é nulo. Uma parte do problema que eu refiro no post é precisamente que as farmacêuticas não investem nada em investigação. Como dizes é uma investigação caríssima mas é paga pelos contribuintes (e beneméritos).
O que acho é que uma patente obtida por investigação feita com fundos públicos deve ficar na posse do estado e não de uma farmacêutica, que assim consegue um monopólio. Se o estado detiver a patente pode por exemplo conceder licensas de produção do medicamento a várias empresas, não apenas uma, e assim já não há monopólios. E concordo também com a lei indiana, que impede patentes a modificações triviais, mas que pelos vistos é única no mundo.

Hugo Mendes disse...

Zèd, não estou a ver como possa ter suporte empírico o que dizes relativamente ao facto de o sector privado nao fazer investigação. Em praticamente todos os países do espaço da OCDE os valores investidos pelo sector privado na investigação são mais elevados do que o sector público, que não pode suportar o financiamento da "big science" sozinho. É claro que há muita da investigação de muitíssima qualidade que é feita no sector público e é depois - devida ou indevidamente, isso é um discussao importante, e por vezes de difícil traçar de fronteiras - apropriada pelo sector privado. Mas este nunca poderia fazer progressos, seja na dimensão cognitiva, seja na tecnológica, seja na comercial, dependendo apenas do que é realizado no sector público. E acho muitíssimo bem que o sector privado invista em varíadissimas coisas que não são de interesse público inequívoco, fazendo avançar áreas através de sucessivos spin-offs tecnoeconómicos. Se o Estado conseguir produzir e/ou financiar e/ou regular aquilo que é verdadeiramente essencial, e se o fizer com qualidade e competência, isso já seria muito importante.

Esta diferença entre financiamento, produção e regulação do conhecimento e suas aplicações é importante, porque o Renato refere relativamente à existencia e funcionamento capaz de uma entidade reguladora não é incompatível com o facto da investigação ser financiada e produzida em boa parte pelo sector privado. Quanto mais isto é verdade, mais é importante o papel da regulação, mas também mais complicado é esta ser exercida com qualidade. O livro do Stiglitz que o Renato cita tem um excelente capítulo precisamente sobre esta questão das patentes.

Zèd disse...

Hugo,
Concordo inteiramente contigo. O meu comentário referia-se especificamente à indústria farmacêutica e às ciências biomédicas. Não tenho dados empíricos, mas pela minha experiência pessoal que trabalho nesta área, basta fazer um pesquisa bibliogáfica para ver que não se encontra um artigo feito num laboratório privado. A única investigação que as empresas farmacêuticas fazem é os ensaios clínicos, que aliás são obrigadas a fazer, e fazem também alguma investigação para tentar melhorar, ou apenas modificar, os fármacos já existentes.