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Para mim e, acredito, para muitas pessoas, depois de ir votar, o dia de hoje vai custar a passar. A ansiedade não é facilmente gerida: nunca mais chega a hora do fecho das urnas!
Haverá quem vá ao cinema (por exemplo, ao ciclo 50 filmes inesquecíveis na Gulbenkian), quem vá às compras, quem fique a dormir, quem tenha que trabalhar, quem espere e desespere…
Para quem não tiver outros planos, deixo uma sugestão de leitura: O Dia de um Escrutinador, do escritor italiano Italo Calvino (ed. port. Lisboa, Teorema, 1997). Longe do registo aventuroso e fantástico de O visconde cortado ao meio, O barão trepador e O cavaleiro inexistente ou do exercício genial de reescrever e reinventar o prazer de ler romances (Se numa noite de Inverno um viajante), O Dia de um Escrutinador (ed. orig. Einaudi, 1963) assemelha-se a uma reportagem sobre um acontecimento real: as eleições de 7 de Junho de 1953 num hospício de Turim, conhecido pelo Cottolengo («Picola Casa della Divina Providenza», fundada em 1832 pelo padre Giuseppe Cottolengo, para albergar doentes, inválidos e desamparados).
Acompanhando o dia de Amerigo Ortea, um vulgar cidadão representante da lista do Partido Comunista na mesa eleitoral do Cottolengo, o leitor é introduzido nos aspectos mais absurdos e revoltantes da democracia italiana do pós-Segunda Guerra Mundial: para “infelizes sem capacidade de entender nem de falar nem de se mexerem” era montada “a comédia do voto delegado através do padre ou da freira” (p. 10). Calvino (1923-1985), que passara pelo Cottolengo nas eleições de 1953 e de 1961 (primeiro como candidato do PCI e depois como escrutinador), faz uma descrição magistral da recolha de votos nas enfermarias e remete-nos para uma reflexão mais profunda sobre política, filosofia, História e religião, bem como sobre os temas “da infelicidade natural, da dor e da responsabilidade da procriação” (p. 6-7).
Desvendo aqui uma passagem que aborda precisamente este último tema.
Na pausa para o almoço, há uma sucessão de telefonemas de Lia [a namorada de Amerigo] para Amerigo e deste para Lia. Primeiro, Lia telefona-lhe para saber onde ele passou toda a manhã. A seguir, Amerigo liga-lhe e Lia insiste para que ele escute uma música que ela está a ouvir. Pouco depois Lia volta a ligar a Amerigo e, após uma breve hesitação, diz-lhe que está grávida. Por fim, Amerigo liga novamente a Lia, que parece ter esquecido o assunto:
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“- shhhh… - fez ela: o disco continuava a tocar como antes, como se aquele telefonema no meio não tivesse existido, e Amerigo teve um sobressalto de polémica («Pronto, para ela não é nada, para ela é o curso da natureza, para ela não conta a lógica da razão mas só a lógica da fisiologia!») e ao mesmo tempo um espécie de tranquilidade, porque Lia era realmente a Lia de sempre:
- Cala-te… tens de ouvi-lo também até ao fim…
- Cala-te… tens de ouvi-lo também até ao fim…
- e no fundo, o que podia ter mudado nela? Pouca coisa: uma coisa que ainda não existia e que portanto se podia enviar para o nada (a partir de que ponto um ser é realmente um ser?), uma potencialidade biológica, cega (a partir de que ponto um ser humano é humano?), uma coisa que só uma deliberada vontade de fazê-la ser humana podia introduzi-la entre presenças humanas.” (p. 106-7).
Para ler e pensar… Pode ser que as 19 horas não demorem tanto a chegar.
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Imagem: desenho de Paul Klee para La Giornata d'uno scrutatore (Einaudi, 1963)
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