domingo, 11 de fevereiro de 2007

Sugestão de leitura: Calvino porque sim

Hoje os eleitores portugueses são chamados a participar, por sufrágio directo e secreto, num referendo nacional sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, por opção da mulher, até às dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Para mim e, acredito, para muitas pessoas, depois de ir votar, o dia de hoje vai custar a passar. A ansiedade não é facilmente gerida: nunca mais chega a hora do fecho das urnas!
Haverá quem vá ao cinema (por exemplo, ao ciclo 50 filmes inesquecíveis na Gulbenkian), quem vá às compras, quem fique a dormir, quem tenha que trabalhar, quem espere e desespere…
Para quem não tiver outros planos, deixo uma sugestão de leitura: O Dia de um Escrutinador, do escritor italiano Italo Calvino (ed. port. Lisboa, Teorema, 1997). Longe do registo aventuroso e fantástico de O visconde cortado ao meio, O barão trepador e O cavaleiro inexistente ou do exercício genial de reescrever e reinventar o prazer de ler romances (Se numa noite de Inverno um viajante), O Dia de um Escrutinador (ed. orig. Einaudi, 1963) assemelha-se a uma reportagem sobre um acontecimento real: as eleições de 7 de Junho de 1953 num hospício de Turim, conhecido pelo Cottolengo («Picola Casa della Divina Providenza», fundada em 1832 pelo padre Giuseppe Cottolengo, para albergar doentes, inválidos e desamparados).
Acompanhando o dia de Amerigo Ortea, um vulgar cidadão representante da lista do Partido Comunista na mesa eleitoral do Cottolengo, o leitor é introduzido nos aspectos mais absurdos e revoltantes da democracia italiana do pós-Segunda Guerra Mundial: para “infelizes sem capacidade de entender nem de falar nem de se mexerem” era montada “a comédia do voto delegado através do padre ou da freira” (p. 10). Calvino (1923-1985), que passara pelo Cottolengo nas eleições de 1953 e de 1961 (primeiro como candidato do PCI e depois como escrutinador), faz uma descrição magistral da recolha de votos nas enfermarias e remete-nos para uma reflexão mais profunda sobre política, filosofia, História e religião, bem como sobre os temas “da infelicidade natural, da dor e da responsabilidade da procriação” (p. 6-7).
Desvendo aqui uma passagem que aborda precisamente este último tema.
Na pausa para o almoço, há uma sucessão de telefonemas de Lia [a namorada de Amerigo] para Amerigo e deste para Lia. Primeiro, Lia telefona-lhe para saber onde ele passou toda a manhã. A seguir, Amerigo liga-lhe e Lia insiste para que ele escute uma música que ela está a ouvir. Pouco depois Lia volta a ligar a Amerigo e, após uma breve hesitação, diz-lhe que está grávida. Por fim, Amerigo liga novamente a Lia, que parece ter esquecido o assunto:
“- shhhh… - fez ela: o disco continuava a tocar como antes, como se aquele telefonema no meio não tivesse existido, e Amerigo teve um sobressalto de polémica («Pronto, para ela não é nada, para ela é o curso da natureza, para ela não conta a lógica da razão mas só a lógica da fisiologia!») e ao mesmo tempo um espécie de tranquilidade, porque Lia era realmente a Lia de sempre:
- Cala-te… tens de ouvi-lo também até ao fim…
- e no fundo, o que podia ter mudado nela? Pouca coisa: uma coisa que ainda não existia e que portanto se podia enviar para o nada (a partir de que ponto um ser é realmente um ser?), uma potencialidade biológica, cega (a partir de que ponto um ser humano é humano?), uma coisa que só uma deliberada vontade de fazê-la ser humana podia introduzi-la entre presenças humanas.” (p. 106-7).
Para ler e pensar… Pode ser que as 19 horas não demorem tanto a chegar.
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Imagem: desenho de Paul Klee para La Giornata d'uno scrutatore (Einaudi, 1963)

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