terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Ainda a modernidade

Este debate entre o Renato e o André é interessante . Se me permitem a caricatura e a tipificação fácil, a contenção do Renato simboliza a seriedade da esquerda mais clássica/tradicional para quem as conquistas materiais (sobretudo se representam o acréscimo de poder por parte de uma classe social) são sempre mais centrais que as culturais, e o optimismo do André aproxima-se da esquerda culturalista para quem as questões pós-materiais e da política da vida valem mais do que as lutas em torno da esfera material e distributiva. (eu sei que vocês vão dizer que não se reconhecem nestes estereótipos, mas deixem-me lá fica com a caricatura).
Eu, reconheço, fico sempre dividido nesta dialéctica, e embora preste uma atenção mais militante às questões materiais e distributivas, reconheço a verdadeira centralidade das questões da biopolítica. Apenas com dois "senões": temo sempre que muitas destas discussões se cinjam a algumas minorias de classe média-alta, enquanto as questões redistributivas tocam fatias mais largas da população (sei que este não é um argumento muito politicamente correcto do ponto de vista da esquerda mais culturalista, mas tudo bem); por outro lado, à esquerda, parece-me ser mais fácil saber que posição tomar relativamente a muitas destas questões "fracturantes" (queremos todos soluções que respeitem cada vez mais a autonomia, liberdade e capacidade de decisão do indivíduo, etc.), enquanto nas questões sócio-económicas há invariavelmente uma série de trade-offs complicados que rompem o que outrora eram (ou pareciam ser) sólidas solidariedades de classe, e por isso se prestam a uma análise mais fina de uma realidade que, por ter tantas vezes lados contraditórios, obriga a escolhas complicadas entre grupos que se vêem a defender, pelo menos nominalmente, os mesmos ideais de "igualdade" e "solidariedade".

Resta dizer que temo - mas não tenho a certeza - que este debate sobre o verdadeiro significado da vitória do SIM no referendo seja razoavelmente espúreo. Uma das formas menos inúteis de o intepretar talvez seja dizer que ela era, do ponto de vista da modernização cultural da sociedade portuguesa (com tudo o que isso significa no que toca à perda de capacidade de monopólio da Igreja sobre determinadas questões doutrinárias chave, etc.), absolutamente necessária e verdadeiramente insuficiente - ou tão necessária como insuficiente. Demos um verdadeiro pulo, sim, mas ele foi enorme em boa parte porque o nosso atraso nestas questões é ele próprio imenso - e agora é um pouco menos.

14 comments:

andre disse...

20000 abortos clandestinos por ano, não é? Eu bati mais na tecla simbólica, mas a questão do aborto é também uma questão socio-económica e que está longe de se cingir a uma minoria de classe média-alta.

Hugo Mendes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Hugo Mendes disse...

Eu bem disse que era uma caricatura :) E - como o que Miguel Vale de Almeida bem lembra no post que linkaste - esta é das questoes da "politica da vida" que mais toca a questão da desigualdade, porque sabemos bem quem sofre mais, do ponto de vista socio-economico, com o drama do aborto clandestino.
Por isso, é verdade, a questão do aborto está na encruzilhada dos dois eixos politicos à esquerda. Mas também é verdade que as outras questões - as que por vezes se parecem cingir a uma minoria de classe media-alta - são mais contemporâneas: quando esta conversa da "politica da vida" surgiu nos circulos intelectuais-academico-politicos a questão do aborto já estava basicamente resolvida na maioria dos países, por isso não faz bem parte do pacote de medidas "fracturantes" que hoje estão mais em discussão na maior parte dos países(reconhecimento oficial das relações entre homossexuais, possibilidade de adopção por parte destes, etc.). Só para nós, claro, que vivemos várias fases da modernidade em catadupa, é que o aborto é/era ainda um problema na agenda política.

Zèd disse...

Deve ser de eu ser o "proudhonista" de serviço mas revejo-me na caricatura da esquerda culturalista (o que não quer dizer que as questões mateirais não sejam importantes), mas como já referi num comentário anterior, o que é importante nesta vitória do SIM, ainda mais por ser tão clara, é que se abre um precedente. É importante por ser a primeira. Pode aqui fazer-se um paralelo com as rupturas epistemológicas de Khun. Nas questões ditas "fracturantes" é a primeira vez que prevalece a liberdade individual sobre uma moral vigente que é imposta a todos. Do ponto de vista civilizacional parece-me de facto uma mudança de paradigma, e é isso que devia ser importante para a esquerda.

Hugo Mendes disse...

Renato: nao estou a ler a história do universo em função de um evolucionismo naive; o atraso de que falo é consensual e não é preciso acenar com o fantasma metafísico porque percebes bem o que quis dizer. E já agora não tenho nada contra uma certa leitura moderada da história do país a partir do século XIX dessa perspectiva, desde que não seja totalizante nem, de novo, excessiva e despropositadamente filosófica.
Não sei se percebo o que queres dizer com isso da "batata quente". Queres que a sociedade civil se reponsabilize agora? Mas como? Que crie grupos de apoio às grávidas, etc.? Eu "só" quero que o SNS faça o que tem a fazer e que aquilo que este nao possa fazer, que o privado complemente, desde que com a devida comparticipação estatal. O "resto" do apoio da sociedade civil, se vier, que venha. Mas a responsabilidade assumida pelo Estado tem que ser garantida, e era isso que nao existia até agora. Isso já é mudança q.b..
A ruptura entre a esquerda culturalista e materialista existe em muitas questões, e boa parte da divisao da esquerda contemporanea assenta nessa falha tectónica; o aborto nao é necessariamente um bom exemplo, como já respondi ao André, porque fica em boa parte a meio caminho dos dois eixos ideacionais.

Hugo Mendes disse...

"Em Portugal a sociedade civil não pode continuar emparelhada entre a Igreja e os movimentos católicos (do lado da direita) e os sindicatos ligados ao PCP (do lado da esquerda)."

Por falar em imagem redutora da sociedade civil...:)
Eu só me estava a referir ao aborto, e não a causas ou à sociedade civil em geral; e estava a dizer que agora devemos colocar a responsabilidade sobre o Estado, garantindo que os mecanismos legais e institucionais com se vai compremeter funcionam mesmo. Era apenas isso que queria dizer.

"Será que não percebemos que em Portugal a mudança tem, em grande parte, de se emancipar dos partidos e do Estado? Estes não podem continuar a atrofiar a sociedade desta maneira."

Estou sinceramente curioso em relação a este futuro para-além-do-Estado-atrofiante...(onde é que eu já ouvi este discurso? :)) Se bem me lembro, esse era o discurso da New Left em finais dos anos 60/inícios dos anos 70; como não tinha qualquer projecto sustentado para a sociedade para lá da emancipação-do-Estado-atrofiante, não tinha uma unica ideia estratégica para responder à crise económica dos anos 70. Resultado: quando foi preciso os eleitores decidirem em quem confiar, votaram na única equipa que tinha pés assentes na realidade, ou seja, o neo-liberalismo.
É por isso que eu quando ouço esse discurso do para-além-do-Estado-atrofiante eu gosto de saber bem para se quer ir - e isto se não queremos aterrar no quintal do (hoje) adversário político, e entregar-lhe de bandeja, mesmo que não deliberadamente, a vitória ideológico-política.

Hugo Mendes disse...

"Estamos perante uma excelente oportunidade! A porta apenas está entreaberta!"

Isto eu já considero um optimismo exagerado. Uma coisa é considerar que o SIM significa, simbolicamente, uma grande mudança na sociedade portuguesa, que parece ser a tese do André (e da qual nao discordo em abstracto); outra coisa é ver isto como um abrir de portas para que a sociedade civil se organize de forma realmente diferente; não vejo grande substracto empírico neste diagnóstico, e se houve mudança - e houve de facto -, ela não me parece de todo passar por aqui (para bem ou para mal, nao estou a discutir essa questão).

Daniel Melo disse...

O Renato propos um aprofundamento da reflexão, e o tom provocatório não invalida da premência desse esforço. Ou seja, sim, a mudança inscrita com a campanha e a votação foi importante (tal como bem exultam o André e o Zéd), mas devemos aproveitar estes momentos para aprofundar a reflexão.
O Renato propôs 2 vias com as quais concordo:
1) a discussão sobre a nova lei (a nova lei, Hugo) deve ter a participação, o estudo e os contributos da sociedade civil, não chega deixar isto para os outros, os "políticos" (senão estamos a contradizer-nos: recusamos o paternalismo eclesiástico em nome dum paternalismo estatal?);
2) a sociedade civil portuguesa tem que ser reforçada e melhorada, e acabar com o actual bicefalismo predominante de que fala o Renato e aqui vale a pena referir um episódio recente. Numa outra conversa o Renato, naquele sua inquietação metodológica racionalista, referia que a blogosfera e o espaço público estava cada vez mais ocupado pelas vozes neo-liberais. Tentei relativizar, chamando a atenção para a existência, na própria blogosfera, de redes de blogues anarquistas, desconhecidos da maioria, mas com uma actividade impressiva e relevante, não só em termos de circulação da informação, como de reflexão e criação de redes. Depois, há ainda os blogues temáticos, cada vez mais importantes. A imprensa de reflexão clássica, de legado humanista, Vértices, Searas Novas, as novas Utopia, Manifesto, PREC, Nada, Periférica, etc., etc., o próprio Diplô, etc.
Mas voltando à sociedade civil, segue novo comentário, já de seguida.

Daniel Melo disse...

A sociedade civil tem subsectores e experiências muito importantes e relevantes para a democracia. As cooperativas culturais, que irromperam ainda na ditadura, idem para as universidades populares.
Depois da revolução, as associações de moradores (e de trabalhadores) e as de educação popular fizeram (algumas ainda continuam!) um trabalho hercúleo pelas populações. O legado delas prossegue: não é por acaso que as actuais organizações de âmbito territorial têm tanta dinâmica (exemplos: Fórum Cidadania Lx., Xiradania, Campo Alegre- Porto, ART-Telheiras, Pró-Urbe, etc., etc.).
Há tb. uma malha de asssociações sócio-culturais com um papel fundamental na dinamização comunitária, no preenchimento do espaço público e na diversificação da produção e circulação sócio-culturais (aqui com a recente emergência das asssocs. de desenvolvimento local).
Os novos movimentos sociais têm bons representantes por cá (sobretudo na área ambiental), embora certas disputas político-partidárias possam estar a enfraquecê-las conjunturalmente.
O movimento em torno do referendo: menos unidades que no campo adversário? Sim, mas com uma dinâmica muito boa.
A literatura específica refere que há vários caminhos para o reforço da sociedade civil na sua componente associativa: uma é ter muitas associações (e nós temos!), outra é capacidade de mobilizar os filiados e voluntários, e aqui o movimento pelo sim foi notável!
Os problemas são mais noutro nível: dificuldade de mobilizar em geral, baixo voluntariado, apoio do Estado central fraco e o outro (local) pouco transparente. Factores que se influenciam mutuamente.
Se é mais na esquerda do que na direita não sei, mas ora aí está uma boa questão.
Será que há literatura nesse sentido?

Hugo Mendes disse...

Renato, o que descrevi nao se circunscreveu aos EUA nem ao Reino Unido, embora tenha sido que mais cedo e de forma mais marcante o processo teve lugar. Mas em França ocorreu algo de semelhante, mesmo que tenha sido, eleitoralmente, o PSF a colher temporariamente os frutos.
E o problema de fundo mantém-se, é sempre e sempre o mesmo: procurar alternativas sim, mas aprendendo com a história, e sobretudo nao achando que podemos reinventar a roda nem construir o futuro com os pés bem assentes no chão em termos de "programa político alternativo" - se é que ele existe, em que medida é concretizável, e em que medida ele se destingue do que, por exemplo, pugnam os liberais. Lendo-te, nao vejo como podes evitar cair, se não no seu discurso, pelo menos nas suas soluções. E aí, nesse discurso anti-estatista, tens que te ver com o "mercado", porque a sociedade civil (nem o "capital social") não fornece soluções sustentáveis para sociedades complexas funcionarem. Nos anos 60 ainda se podia pensar que sim. Mas hoje não, e não se pode pensar que há margem política para dar passos em falso. Esta é a razão fundamental do meu cepticismo militante nestas conversas de "construir o futuro", como se este vivesse do ar e do voluntarismo das pessoas.

Hugo Mendes disse...

Daniel, de acordo com tudo o que disseste: eu acho que é tempo para começarmos a repensar a tese da fraqueza da sociedade civil portuguesa como se ela fosse uma fatalidade. Talvez em meados dos anos 80, quando o Boaventura desenhou as suas teses, fosse assim; mas passaram 20 anos, e modificou-se muita coisa, sobretudo porque houve uma mudança geracional e outras energias da malta mais nova e menos desiludida que muitos dos pais, que se retiraram da vida pública depois do PREC e os ideais que carregava se terem afundado. Não estou a dizer que as coisas mudaram radicalmente, mas valia a pena abanar um bocado o senso comum sociológico que se construiu sobre esta questão. Isto nao quer dizer que estas associacoes sejam capzes de fazer um grande trabalho de agregação de interesses estritamente políticos, materializaveis nos momentos políticos por excelencia que sao os actos eleitorais; mas, voilà, esse não é o objectivo delas, e lá por os partidos continuarem a dominar a acção política institucional não diz nada da força ou fraqueza dos movimentos e associções que têm uma esfera de acção que se limita, e bem, às margens/fronteiras do sistema político.

"Será que há literatura nesse sentido?" = é o TPC

Daniel Melo disse...

Vamos lá esclarecer as coisas: eu não só contra o sector privado, mas sim contra a privatização dos serviços relativamente à IVG, a menos que haja um sistema de comparticipação que seja favorável ao Estado e ao utente. É que a maioria das pessoas nesta situação não tem condições financeiras e, sobretudo, a IVG foi considerada uma questão de saúde pública, logo, do SNS.
É que certas experiências de privatização no sector da saúde têm sido prejudiciais para os cidadãos (vd. o caso do Hospital Amadora-Sintra) e sem que se tenham tirado as devidas ilações.
Quanto ao referendo, bom, se nos EUA é a banalização completa discordo também, mas convém questionar também se esses referendos têm ou não têm tido efeitos globais positivos em termos sociais e políticos, aprovando-se medidas mais progressistas, liberais, etc., e em termos de envolvimento cívico?

Hugo Mendes disse...

"É que certas experiências de privatização no sector da saúde têm sido prejudiciais para os cidadãos (vd. o caso do Hospital Amadora-Sintra) e sem que se tenham tirado as devidas ilações"

Foram sobretudo prejudiciais ao orçamento do Estado, que é diferente - quanto ao prejuízo para os cidadãos, tens que referir questoes concretas relativente ao que tens em mente.
No que toca ao aborto no sector privado, está obviamente garantida a comparticipação estatal - resta saber de quanto. Eu acho que devia ser integral, mas duvido que essa seja a solução.
Daniel, não misturemos o Estado-produtor de serviços (via, neste caso, o SNS) com o Estado-financiador de serviços (produzidos pelo sector privado). Não vejo motivo para que neste caso o Estado não possa em muitos casos financiar a ida de mulheres a serviços privados para proceder a uma IVG. No limite, podíamos ter um "cheque-aborto" (eu sei, a expressao é horrivel!), que permitiria a cada mulher escolher onde quer abortar - ao mesmo tempo que o Estado podia financiar a prática e regular o sector privado de forma a evitar discriminações. Não estamos a falar desde o início de liberdade de escolha para a mulher?

Daniel Melo disse...

Peço desculpa aos cibernautas, mas o meu comentário anterior devia ter sido inserido noutro post, tendo surgido neste por lapso involuntário. Como o Hugo me respondeu já não o posso apagar, mas repliquei-o no sítio devido.