Hesitei até à última em apresentar os motivos do meu voto pelo SIM no próximo referendo. Talvez por pensar que a problematização pode suscitar mais dúvidas e que não podemos correr o risco de o NÃO ganhar outra vez. De facto, a estratégia do SIM foi desta vez mais sóbria e pragmática. Não se envolveu tanto em questões de ordem moral é ética e cingiu-se, com maior ou menor desvio, ao conteúdo objectivo da pergunta. Porque, de facto, é o que está em causa. Mas as motivações subjectivas que nos levam a votar, numa ou noutra posição, ultrapassam largamente as amarras da pergunta.
Em 1998 o meu voto foi mais convicto e também, por isso, mais sereno. As diversas experiências de vida (digo bem, de Vida) por que passei entretanto esmoreceram as convicções que se tornaram mais intranquilas. Tenho dúvidas face alguns argumentos que realçam o significado supremo de uma vida. Arrepia-me ouvi-los, não porque os ache absurdos (excepto os mais fundamentalistas), mas porque mexem com as tais convicções, mexem com um certo lado de mim que dificilmente consigo manobrar à luz dos argumentos mais comuns utilizados pelo SIM. Mas é à razão que recorro para me convencer de que só o SIM faz sentido.
Não tenho dúvida em considerar que o feto é vida e, obviamente, é mais do que uma amálgama de células. É claro que é vida humana! Não estamos a falar de vegetais, nem de chimpanzés. No entanto, não tem o mesmo estatuto da progenitora. Jamais poderá ser igualado ao ser humano que o aloja no seu útero. É esta igualização entre feto e mulher que me afasta decisivamente da posição do NÃO. Mas se não são iguais também não são tão objectivamente separáveis como se tratassem de entidades diferentes e autónomas. O feto e a mãe são, em certo sentido, uma unidade, estão ligados em corpo, são um corpo. A eventual separação afecta brutalmente esse corpo. É uma parte que morre. Daí o seu drama!
Entendo que essa unidade não deve ser uma imposição e uma irreversibilidade. E muito menos deve caber ao Estado o monopólio da decisão sobre o futuro desse corpo. Considero essa situação (a actual situação) imoral! Pelo contrário, o monopólio deve ser da mulher. Só esta terá a legitimidade moral de decidir em consciência sobre essa eventual separação.
De qualquer modo, penso que esse monopólio não é um dado absoluto. Antes de mais deverá estar circunscrito aos limites temporais da evolução do feto. Opor-me-ia à IVG se esta contemplasse um limite superior às 18, 20 semanas. As razões para esta posição já são menos claras. Acho que as 10 semanas representam uma fronteira razoável entre o que é um embrião e algo que já se assemelha mais a um bebé. A este nível a racionalização vacila face ao outro lado que me impele a reagir com motivos que não os mais racionais.
Todos nós temos os dilemas que entendemos ser determinantes. Para muita gente isto que acabei de escrever é um absurdo. Mas para mim não é. E isso é o que me importa. Tornei-os públicos por querer também separar-me de alguns argumentos (sobretudo os mais simplistas e fáceis) vindos do SIM, que não me convencem. Acho que o importante é que cada um enfrente os seus próprios dilemas e consiga construir uma posição. E que seja consequente com ela ao ir votar.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007
Os dilemas do meu voto
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
8 comments:
"Não tenho dúvida em considerar que o feto é vida e, obviamente, é mais do que uma amálgama de células. É claro que é vida humana!"
Parece-me correcto dizer que é um projecto de vida humana, ou uma vida humana em potência. Isso coloca o seu valor moral acima do vegetal, mas abaixo do da mulher. E é o suficiente.
remeto para o meu comentário ao post do Hugo: Sobre o aborto: the road not taken
Porquê "eufemismos"?
Então se achas que é vida simplesmente, então é assassinato. É isso? Não vejo como não pode ser. É uma consequência lógica, parece-me.
Confesso que não percebi essa da filosofa da alface; nem percebi quem pretendes criticar com o ultimo post, se o SIM ou o NAO.
Mas ninguém disse que está inanimado; mesmo quem defenda que é o mais elementar punhado de células, é porque admite há "vida", seja a mais básica. Agora, se hierarquizas entre o feto e a mãe, tens de fazer corresponder uma hierarquia conceptual/moral; não podes dizer que ambos sao vida humana, porque entao ai não há diferença nem justificação para a hierarquização. Por isso as possíveis qualificações da vida fetal (vida humana em "gestação", etc. etc.) não são simples "eufemismos", porque senão, repito, não tens base conceptual para separar o estatuto moral do feto do da mãe.
"Só os fundamentalistas podem considerá-lo um indivíduo ou uma pessoa."
A campanha - e a sua força - do NÃO tem estado assente neste argumento, fundamentalista ou não. E tem estado assente aqui porque é a única forma inequívoca que lhes permite fazer finca pé. A partir do momento em que falas de "vida humana em gestação" - contrapondo com uma vida de corpo inteiro, como um adulto - que já estás a hierarquizar, e a abrir a porta para admitir o aborto.
Mas nesta altura do campeonato isto são pormenores. Parece-me que concordamos no essencial, e que o que quer que lhe chamemos, um feto tem mais valor moral que um vegetal e menos valor moral de um adulto, e em particular a sua mãe.
Caro Renato;
Li este post já depois de conhecidos os resultados do referendo e de ter votado Sim, pelo que posso comentá-lo com algum distanciamento. Uma das minhas leituras recentes foi «Ética Prática» de Peter Singer que trata de algumas destas questões. Não concordo com algumas ideias do autor, mas ele permitiu-me esclarecer o seguinte:
a) Um feto é vida humana mas não é uma «pessoa»;
b) O conceito de «pessoa» deve estender-se a alguns animais superiores dotados de linguagem, capacidade de recorrer a utensílios e auto-conhecimento, como os gorilas e chimpanzés;
c) Apesar dos fetos e dos animais não conscientes não serem «pessoas» possuem alguns direitos;
d) Não concordo com a perspectiva de Peter Singer de colocar ao mesmo nível ético a vida humana não consciente e a vida animal não consciente;
e) Uma das diferenças entre um feto em estado avançado e um animal não consciente é que o feto desenvolvido, não sendo uma pessoa, resulta, no mínimo, da vontade ou do consentimento de uma pessoa – a mãe.
f) A admissão do aborto num estado inicial da gravidez é compatível e mesmo uma condição de validação da proposição anterior.
No meu voto, tive também em conta a distinção entre convicções éticas pessoais e lei. A lei tem de admitir uma pluralidade de convicções éticas e não pode excluir que o aborto a pedido, que escandaliza os seguidores do Não, num caso concreto possa ter um sentido ético, em que a responsabilidade perante pessoas já existentes é considerada prioritária face à responsabilidade perante um ser humano que ainda não é pessoa.
Enviar um comentário