segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Sobre o aborto: the road not taken

Ainda não escrevi sobre a questão do aborto aqui por vários motivos; um dos quais é que parece que são sempre os mesmos argumentos a serem reciclados; um outro é porque a maior parte da argumentação que sustenta o SIM parece-me empiricamente intocável, politicamente suficiente (creio) para ganhar o referendo, mas limitada no confronto com a questão-chave do ponto de vista filosófico e moral: a questão da vida humana, que é, muito logicamente, a âncora maior do argumentário do NÃO.
Talvez escreva mais longamente e sustendamente sobre isto ainda antes do referendo, mas agora vou alinhavar umas ideias. O SIM, inteligentemente, optou por fazer uma campanha moderada e razoável, sem radicalismos ideológicos que só podiam ser contraproducentes (do género "na minha barriga mando eu” e outros afins) – e que provavelmente o foram em 1998. O grosso dos argumentos têm-se centrado na questão da hipocrisia da presente lei, no facto da prisão ser “vergonhosa”, na questão do aborto enquanto problema de saúde pública, no facto de Portugal estar não no grupo da Europa moderna, mas no da Polónia e da Irlanda, no facto de ser um verdadeiro risco para as mulheres sem recursos sociais e económicos, etc. No fundo, para parafrasear Rawls, a argumentação tem sido sobretudo (sócio-)política, não metafísica.
Bom, o problema é que a questão é mesmo metafísica, ou se quiserem, filosófica. Algumas partes do SIM têm abordado a questão aqui do ponto de vista moral, partindo do ponto de vista de que a mulher tem liberdade de decidir e que a decisão deve ser do foro privado. Eu não discordo desta posição. Mas ela é coxa. E é coxa porque não pode ignorar que a decisão da mulher afecta o feto. Aqui a questão toda é saber que estatuto tem o feto. Para ser redutor, há duas posições estratégicas possíveis: ou entramos no debate filosófico de saber se o punhado de células que constitui um feto às 10 semanas é vida humana ou não é vida humana; ou então ficamos em silêncio sobre este facto e continuamos a chover no molhado a dizer que a mulher tem liberdade de decidir, juntando a todo o argumentário de cariz sócio-político listado no parágrafo anterior.
Se optamos por esta segunda via – que é o que o SIM fez -, então entregamos ao NÃO o veredicto no debate sobre o início da vida e sobre tudo o que daqui decorre. Podemos achar que falar de “assassinato”, etc. é demagogia, mas não custa muito a perceber que, para quem pensa que o feto é um ser humano com os mesmos direitos e interesses que um adulto, é plenamente justificado atribuir semelhante epíteto a quem aborta. É fácil perceber porquê: imaginemos que não estamos a falar da mãe e do seu feto, mas da mulher e do seu companheiro/cônjuge. Para os defensores do NÃO, o feto e o companheiro/cônjuge têm o mesmo valor moral. Seria aceitável a mulher matar o homem só porque ele se coloca à frente do seu “projecto de vida” (como tantas vezes acontece)? Seria um atenuante aceitável a mulher argumentar que lhe "custou" matar o seu companheiro/cônjuge, que ninguém o faz sem medir as consequências, e que a cicatriz psico-emocional que resulta do acto nunca mais desaparece? A resposta é um evidente "não" em ambas os casos. Portanto tudo depende do facto de o feto ter os mesmos interesses, direitos e valor moral do adulto ou não. O NÃO acha obviamente que sim. O SIM fica calado, com medo de provocar fracturas entre as suas facções, e sobretudo com receio de abrir a Caixa de Pandora de um debate moral (e, num país como o nosso, religioso) em torno do estatuto moral do feto, e de ser acusada de "relativista", "desumana" e outras coisas do género – aqueles ingredientes que os demagogos profissionais adoram. Como disse no início, esta estratégia é politicamente defensável e até pode ser que permita ao SIM ganhar. Mas tem o problema de entregar o terreno da razão moral ao NÃO e de deixar SIM refém do argumentário (meramente) sócio-político, que corre o risco de ser um amontoado de atenuantes (vários “mas…”) sociológicos, políticos e médicos.
Para resumir a minha posição: o SIM não tem que se sentir diminuído do ponto de vista moral, não apenas porque defende – e bem – a autonomia vital da mulher, mas porque este argumento só faz realmente sentido se justaposto ao de um agnosticismo militante no que toca à questão do início da vida humana. O SIM não precisa de argumentar que a vida começa no momento X ou Y, ao contrário do absolutismo do NÃO, para quem é obviamente claro que há vida desde o momento da concepção. Quando o NÃO pergunta ao SIM “então às 10 semanas e um dia, já é vida?”, o SIM só tem que responder com um agnóstico “não sabemos”, e que, por não sabermos, então há margem para o interesse da mulher se sobrepor legitimamente ao interesse do feto (antes das 24-26 semanas, por exemplo, o feto não pode sentir dor porque o seu sistema nervoso ainda não está suficientemente desenvolvido; se quiserem ter uma discussão mais séria de quando mesmo a vida, então é mais razoável que atiremos a fasquia para aqui; às 10 semanas o feto é um punhado de células, um organismo, isso é uma certeza biológica: se é vida humana, já é outra questão, e esta distinção é essencial).
Como afirma Ronald Dworkin no livro cuja referência já dei: «The question whether a fetus is a human being, either at the conception or at some later point in pregnancy, is simply too ambiguous to be useful (…) When does a human creature acquire interests and rights? When does a human creature begin to embody intrisic value, and with what consequences?» (p.22). Esta posição agnóstica é uma posição mais negativa do que positiva – não sabemos com segurança suficiente –, carrega uma boa dose de pragmatismo - é demasiado ambígua para ser útil -, evita os fundamentalismos, e presta-se por isso à negociação política, admitindo que as fronteiras politicamente fixadas e saídas de uma deliberação colectiva são “convenções” (não há problema nenhum em admiti-las como tal. Todas as decisões que saem de deliberações colectivas, ou seja, políticas, são produzidas por humanos – são por isso falíveis e, também, reversíveis. Mas não é por serem produzidas por humanos que são menos boas – apenas, claro, se as medirmos a partir de uma métrica divina, supostamente infalível e irreversível).
Desta forma, podemos concluir que o Estado não tem a responsabilidade de proteger esse feto, cujo estatuto, a partir deste ponto de vista, ignoramos na plenitude, e por isso concluímos não ser um elemento seguro a partir do qual possamos sustentar uma posição que possamos impor a todos, tornada letra de lei. Claro que isto é outra forma de dizer se o Estado não deve criminalizar o aborto nem, por consequência, sujeitar as mulheres que o fazem a julgamento e prisão. Mas a não criminalização do aborto é derivativa da primeira questão, e não depende do facto da prisão ser “vergonhosa” (é-o para qualquer preso, essa não é a questão), ser um verdadeiro risco para as mulheres sem recursos sociais e económicos (quantas leis não apanham nas suas malhas apenas aqueles de classes mais desfavorecidas, precisamente os que não conseguem escapar a elas, e não deixam por isso de ser perfeitamente justificadas?), ou de ser uma questão de saúde pública (que será seguramente, mas que dificilmente se sobrepõe a um eventual assassinato). Desta forma, o SIM é defensável do ponto de vista filosófico, com a consequência (1) que o NÃO deixa de ter o monopólio da razão moral, que (2) o SIM pode responder à questão concreta da vida humana, mas (3) sem se deixar enredar na espinhosa questão de quando ela começa nesta fase tão precoce do feto.

14 comments:

Daniel Melo disse...

Esta questão de absolutizar uma certa definição de vida tem muito que se lhe diga.
Em 1.º lugar, não achas que te estás a contradizer, já que consideras que os princípios e valores devem acompanhar e avaliar historicamente e empiricamente as suas consequências e resultados?
Em 2.º lugar, estás a dar uma definição de vida que não é necessariamente a dos outros, a de muitos outros (a vida é um processo).
Em 3.º lugar, também não o é do ponto de vista de parte essencial do postulado jurídico: o feto não é pessoa individual, com todas as consequências que daí decorrem.
Em 4.º lugar, o feto não tem direito a enterro religioso, ao contrário dos recém-nascidos), etc., etc..
Em 5.º lugar, a vida condigna é o valor primordial (daí a eutanásia, etc.). O que é uma vida condigna? É isso que se discute politicamente.
Cá está um caso em que é curioso ler as tuas críticas à insuficiência dum certo argumentário (neste caso, do lado do sim), quando este vai justamente ao encontro do teu entendimento político da vida em sociedade: ou seja, perspectivar os valores e princípios na sua concretização prática.

Hugo Mendes disse...

"Em 1.º lugar, não achas que te estás a contradizer, já que consideras que os princípios e valores devem acompanhar e avaliar historicamente e empiricamente as suas consequências e resultados?"

Não vejo onde possa estar a contradição; argumento aqui contra a absolutização de uma concepçao de vida, logo aberta a novos factos científicos. Por exemplo, se fosse claro que aos 10 meses a criança tivesse actividade neuronal ou o sistema nervoso suficientemente desenvolvido para sofrer dor, seria contra o aborto nesta fase.

"Em 2.º lugar, estás a dar uma definição de vida que não é necessariamente a dos outros, a de muitos outros (a vida é um processo)."

Estou a propor uma definição para ser votada, ou melhor, para para funcionar como um pilar argumentativo de uma posição que vai a votos. Não absolutiza nada, nem persegue ninguém que tenha uma visão contrária ou diferente da minha. É agnóstico; podes ver a posição correspondente na religião. O crente diz que Deus existe; o ateu diz que Deus não existe; e o agnóstico diz que não sabe se Deus existe e que essa questão não é relevante para decidirmos as questoes terrenas que temos que resolver. O raciocínio relativamente ao estatuto moral do feto é em tudo análogo.

"Em 3.º lugar, também não o é do ponto de vista de parte essencial do postulado jurídico: o feto não é pessoa individual, com todas as consequências que daí decorrem."

Não tenho nada a discordar.

"Em 4.º lugar, o feto não tem direito a enterro religioso, ao contrário dos recém-nascidos), etc., etc.."

Bom, não tem, mas isso depende dos usos e costumes, nao necessariamente de uma dada definição de vida; esta é a essencial, os usos e costumes o acessório.

"Em 5.º lugar, a vida condigna é o valor primordial (daí a eutanásia, etc.). O que é uma vida condigna? É isso que se discute politicamente."

A eutanásia diz respeito ao próprio. O aborto diz respeito aos dois seres. Não há comparação. Eu tenho muito receio desse discurso da "vida condigna". É politica e ideologicamente relevante, mas até que ponto a lei pode expressá-lo, tenho a maior das dúvidas (isto é o argumento inverso ao facto de, à direita, a vida ser "inviolável"; talvez seja segundo uma dada perspectiva, mas nada nos diz que a lei tenha que expressar essa leitura moral particular da vida). As dúvidas começam quando se abre a caixa de pandora do que fazer às vidas não condignas. A custa disso, a esquerda esterilizou milhoes de mulheres entre os anos 30 e 50 porque se achava que não havia possibilidades materiais dos filhos nao terem "vida condigna". A minha objecção não é tanto filosófica como uma mescla de experiência histórica e de conservadorismo intuitivo. Acho que podemos defender as mesmas coisas (neste caso, o aborto livre até às 10 semanas) sem usar certas armas conceptuais perigosas. A "vida condigna" é, parece-me, uma delas.

"Cá está um caso em que é curioso ler as tuas críticas à insuficiência dum certo argumentário (neste caso, do lado do sim), quando este vai justamente ao encontro do teu entendimento político da vida em sociedade: ou seja, perspectivar os valores e princípios na sua concretização prática."

Eu disse que eu era de intuição consequecialista, mas não de forma militante :) Sou um defensor dos direitos, e em particular dos direitos básicos, e os direitos humanos são um deles. Das duas uma: ou o feto é um ser humano como os outros e temos que o defender como defendemos todos os outros; ou não é e há um regime de excepção. É só isso que argumento. Quanto à questão da dialéctica entre a norma e o facto, bom, o equilíbrio é sempre dificil e não há lei para resolver o debate entre os dois níveis. Temos sempre que saber reavaliar os nossos ideais a partir do que se passa na realidade, e isso é o que Rawls chama-se "reflective equilibrium". Agora, há um enquadramento moral e legal (que não é a mesma coisa que rectitude ideológica!) que devemos procurar manter, porque é isso que nos define civilizacionalmente. Não podemos defender que o aborto é possivel sem explicar muito bem porquê, porque senão estamos a abrir a porta a uma série de violações de direitos em nome de um individualismo egoísta que a esquerda está sempre pronta a criticar na direita. Se o feto é um ser humano, então a mulher que aborta faz é um acto egoista e criminoso, e eu sou contra. Se um feto não é um ser humano, ela tem legitimidade para defender a sua autonomia até um certo ponto. Dado o que conhecemos sobre a evolução biológica do feto até às 10 semanas, não me parece que o exercício dessa autonomia viole qualquer característica definidora da vida humana. Isto parece-me um exercício razoável de "reflective equilibrium".

Um abraço,
Hugo

Daniel Melo disse...

Ó Hugo, desculpa, eu acho que não leste uma parte do que eu escrevi quando voltas à questão de saber se o embrião/ feto até às 10 semanas é um ser humano ou não.
A resposta é não nos casos em que referi, e são muitos (a vida como processo, também no campo religioso: vd. pe. Anselmo Borges; jurídico com a questão da pessoa individual; e questão social-cultural, os tais "usos e costumes" e a tal vida condigna).
Não é egoísmo, é um conflito de interesses sério e irreversível.
E, sim, é uma questão de vida condigna, da mulher, do casal, etc.. Desculpa, mas é isso que está em questão. Uma vida com dignidade para os que já cá estão.
É isso que está em causa (essa da esterilização forçada de mulheres é um golpe baixo perfeitamente escusado).
E não, a eutanásia pode não ser decisão duma só pessoa, em muitos casos tem que ser o cônjuge ou próximo a decidir, noutros até um médico e enfermeiro a sofrer as consequências (vd. um caso recente em Itália). O suicídio sim, mas mesmo aqui todos estes casos estão ligados à vida da pessoa em sociedade.
Até amanhã, Daniel.

Hugo Mendes disse...

"Não é egoísmo, é um conflito de interesses sério e irreversível."

Porque é que o da mulher se há de sobrepor ao do feto? Se o feto vale tanto como o da mulher - como argumenta o NAO -, porque motivo um se pode ver livre do outro. Tens que concordar que só atribuindo um estatuto inferior ao feto, que é o que eu proponho.

Eu acho que o argumento da vida condigna se presta a totalitarismos, de que temos muitos exemplos no século XX (e desculpa não gostares das esterilizações, mas o argumento era esse precisamente: dai o perigo). É so para não termos a memória curta.
Esta é uma questão chave, Daniel, que é que isso da vida condigna não é um argumento em si, mas depende de outros mais importantes; imagina que tu achas que a tua vida condigna passa por não estares com uma certa pessoa. Tu podes dasfazer-te dessa pessoa em nome do teu projecto de vida, da tua autonomia, e da tua vida condigna? Não podes. Parece-me muito simples. Mas podes se essa pessoa não for exactamente uma "pessoa". Para mim a discussão bifurca-se aqui, e torna o argumento da "vida condigna" desnecessário e irrelvante; e na medida em que ele é perigoso e escorregadio (onde acaba afinal?), ainda bem.

No que toca à eutanasia, nos casos em que a pessoa nao tem autonomia para decidir, envolve/depende de facto da decisao de terceiros. Mas estás a partir do principio que sou contra a eutanasia, mas não sou. Acho que é justificável em inúmeros casos. A diferença entre isto o aborto é que a eutanasia se refere (na maior parte das vezes) a um ser humano em fase terminal que nao tem possibilidades de recuperar uma série de funções vitais (ou seja, está em causa a vida condigna do PROPRIO), e o aborto se refere à suposta vida condigna de um OUTRO ser, que, tirando provas em contrário, não tera as limitações de que o outro ser mais velho extremamente limitado padece. Por outras palavras, se eu decidir pela eutanásia de um familiar meu em sofrimento extremo, eu ajo para libertar aquela pessoa, verdadeiramente diminuida (e falo aqui em questoes biológicas/físicas, não sócio-económicas, como se invoca no aborto), de sofrimento extremo; se eu decidir fazer um aborto eu decido evitar a evolução do que - atenção - UM DIA será uma vida independentemente das suas limitações biológicas/físicas. Há uma diferença substancial. Limitações biológicas/físicas não são o mesmo que limitações económicas. O que não quer dizer que eutanasia e aborto nao sejam permitidos (concordo que o sejam), mas são-no sob justificações diferentes. Daí dizer que não são a mesma "coisa".

Zèd disse...

"Estou a propor uma definição para ser votada, ou melhor, para para funcionar como um pilar argumentativo de uma posição que vai a votos."

Podemos discutir ad eternum que nunca vamos chegar a uma definição de consense que possa servir de pilar ao que quer que seja. É por isso mesmo que deve ser uma decisão individual e pessoal, porque não há consenso possível (contrariamente à questão do companheiro da mulher que se opõe ao seu projecto de vida, em que é perfeitamente consensual que é uma pessoa, um ser humano, com direito inalianável à vida). O próprio César das Neves reconhece que às dez semanas o feto não é uma pessoa, sabemos o que não é mas não conseguimos um consenso sobre o que é. Como disse o Daniel Oliveira (no debate com o César das Neves) "onde não há certezas o estado não pode legislar", e é o mesmo argumento do Zé Diogo Quintela no post que escreveu do "Sim no Referendo" (http://sim-referendo.blogspot.com/), que é das melhores coisas que eu já li a favor do SIM.

Pessoalmente não percebo o teu argumento Hugo, este argumento (onde não há consenso vale a liberdade individual) é para mim o argumento último para votar SIM, tudo o resto lhe é secundário.

Hugo Mendes disse...

Zèd, repara, este argumento está na base de todos os outros, pelo menos para mim, e é uma questão de o tornar explícito, e não entregar à direita o monopólio da questão do início da vida. O SIM demitiu-se, estrategicamente, de discutir isto, ou seja, de dizer que, por não sabermos quando começa a vida, é legítimo o feto ter um estatuto inferior ao de uma pessoa. Os outros argumentos sócio-políticos são, para mim, de importância inferior a este. Se o feto fosse de facto uma "pessoa", eu provavelmente estaria pelo Não, tal como - imaginando o paralelismo - ninguém concorda com a liberalização do homicídio só porque não podemos condenar e apanhar todos os homicidas e porque a lei não é eficaz. O facto de as leis não serem eficazes não é motivo suficiente para serem mudadas - sobretudo em questões tão sérias como a vida e morte (pode haver maior flexibilidade se estamos a falar da criminalização do acto de conduzir embriagado ou de sar um cheque sem cobertura; aqui, eu acho o pragmatismo legal mais aceitável, dado que não sao questoes, se quiseres, civilizacionais). A rationale para as leis existirem é, antes de mais, serem normativamente correctas e justificadas.

Hugo Mendes disse...

Zèd, escreveste: "onde não há consenso vale a liberdade individual".

Isto não é nem pode ser verdade em sociedade com regras jurídicas, ou, se quiseres, num Estado de direito. Imagina que há 49% (um número elevado de discordantes da maioria, portanto) que acha que matar alguém (um adulto) não é crime. Vale a "liberdade individual" (faz o que a tua consciência manda) ou vale o que os outros 51% votam? A minoria tem que submeter ao quadro jurídico formada a partir da opinião da maioria: é a definição de democracia.

Zèd disse...

Não está em questão que o feto não tem o mesmo estatuto do que o um adulto, foi por isso que referi que qté o César das Neves aceita que um feto não é uma pessoa. Isso é aceite por todos. Agora se quisermos entrar por uma discussão de o que é então o feto, e quando é que merece ter direitos, e que direitos, então nunca mais saímos, porque essa tal definição objectiva que procuras não existe, ou melhor, cada um tem a sua, e ninguém pode impô-la aos outros. Ninguém conseguiu ainda apresentar um argumento que refute todos os outros pontos de vista discordantes, a partir daqui é uma questão de consciência. E isto não é dar a discussão à direita, basta-nos argumentar isto mesmo, a definação que os do NÃO nos querem impôr não é absoluta.

Quanto ao exemplo que dás do matar ser ou não crime, a realidade é que não vivemos nessa sociedade. Há que confiar que o ser humano tem apesar de tudo uma moral e uma étca, se vivêssemos nessa sociedade hipotética eu nem sequer acreditaria na Democracia.

Hugo Mendes disse...

"Não está em questão que o feto não tem o mesmo estatuto do que o um adulto, foi por isso que referi que qté o César das Neves aceita que um feto não é uma pessoa. Isso
é aceite por todos."

Talvez todos à esquerda. Mas assim andamos a pregar aos convertidos. A campanha deve ser para convencer aqueles que estão inclinados pelos argumentos do adversário ou nao?

"Agora se quisermos entrar por uma discussão de o que é então o feto, e quando é que merece ter direitos, e que direitos, então nunca mais saímos, porque essa tal definição objectiva que procuras não existe, ou melhor, cada um tem a sua, e ninguém pode impô-la aos outros".

Não sei se não existe; pode existe se procurarmos chegar a um acordo; como as duas partes em disputa mantêm posições bastante diferentes no que a isto diz respeito, uma estratégia defensável é colocar a questão entre parêntes. De novo, isso à esquerda até pode ser consensual, mas a campanha - e o meu ponto era este - não se debruçou sobre isto e o debate entre o SIM e o NAO é uma constante conversa de surdos, com o facto de o NÂO ter à mão o argumento poderoso de ser a único lado que se preocupa com questões morais sérias.

"Quanto ao exemplo que dás do matar ser ou não crime, a realidade é que não vivemos nessa sociedade. Há que confiar que o ser humano tem apesar de tudo uma moral e uma étca, se vivêssemos nessa sociedade hipotética eu nem sequer acreditaria na Democracia."

Desculpa, Zèd, mas não percebo: não vivemos - não vives - nesta sociedade? Homicídio não é crime? Não há actos puníveis por lei, precisamente porque não podemos "confiar" que os actos de certos seres humanos não vão violar liberdades e garantias de outros seres humanos? Não percebo que o que tenha mencionado seja controverso. Essa sociedade existe, e é protegida por um Estado de direito democrático, em que as leis são definidas e votadas por uma maioria. O que é que nisto é controverso?

Hugo Mendes disse...

Zèd, se quiseres dou outro exemplo menos limite do que o homicídio, onde pode haver um grande consenso sobre a sua necessária punição por lei. Mas imagina agora o caso do trabalho infantil, que quando começou a ser regulamentado no século XIX por maiorias políticas nos parlamentos nacionais era defendida pela maioria dos empresários e aceite, activa ou passivamente, pelos pais das crianças. Havia tudo menos consenso na altura sobre a necessidade de tornar esta pratica ilegal. Vamos aplicar a regra de que se não há consenso deixamos a prática por regular, à medida da consciência de cada um?

Hugo Mendes disse...

Renato, acho que subscrevo na íntegra. Continuo a achar que, para os que estão entre o SIM e o NAO, a ideia fundamental de que o feto não é um vida humana não mereceu o devido tratamento por parte do SIM, que fica relativamente desprotegido perante o que chamas, e bem, o fundamentalismo do NAO.

Zèd disse...

Também concordo inteiramente com o Renato.

Mesmo no lado do NÃO se aceita que o feto não tem o mesmo estatuto que um adulto, se não nem as actuais excepções seriam aceitáveis, mas claro que há contradições, e talvez não tenham sido suficientemente exploradas. Mas foram-no pelo menos nalguma medida.

Hugo, não me expliquei bem, o que eu quis dizer é que não vivo - felizmente - numa sociedade em que 49% das pessoas acham que matar um adulto não é um crime. Mas acho que percebeste.

Hugo Mendes disse...

"Hugo, não me expliquei bem, o que eu quis dizer é que não vivo - felizmente - numa sociedade em que 49% das pessoas acham que matar um adulto não é um crime. Mas acho que percebeste."

Agora percebi :)

vallera disse...

Estive fora dois dias, e só me deparei com este post e comentários interessantes.
Boa síntese Renato!
NÃO - feto = vida humana. Moral = vida humana que se sobrepõe à escolha.
SIM - feto = vida biológica. Moral = a escolha que se sobrepõe à vida biológica.
No entanto, parece-me que o Hugo toca, de facto, no ponto fraco do SIM. Se fizermos um thought experiment à la Hugo, e tentarmos perceber a posição do NÃO, veremos que para o NÃO, embora haja uma diferença entre a vida biológica e a vida humana, a vida se sobrepõe sempre à escolha, ou seja, imaginemos que a vida tem 3 estádios: a biológica (embrião/feto), criança e o adulto, e, que pela mesma lógica, provocar a morte do embrião é quebrar um dos estádios da vida, logo não é uma opção possível (do ponto de vista do NÃO). Este argumento do NÃO,no qual a vida é só uma e a mesma, é muito difícil de rebater, e, de facto, não interessa nada ao SIM, andar perdido às voltas da questão da diferença entre a vida biológica e a vida humana. Porquê? porque a questão à qual vamos responder no referendo não é essa. Ora, o argumento infalível do SIM é precisamente aquele que está a ser mais usado - mudar a lei. A pergunta no fundo é apenas esta: "Quer mudar a lei ou manter a lei actual?"
Se concordamos que a escolha se sobrepõe à vida, ou a vida à escolha, não é a pergunta do referendo. (E não me venham com histórias, de que para alterar a lei, é preciso entrar em debates filosóficos profundos, e sobretudo fazer-se um referendo..)
Pessoalmente, sei que há vida sem escolha, mas não há escolha sem vida, e, apesar disso/ por isso mesmo,sobreponho a escolha à vida. Escolho uma não vida (suicídio, eutanásia, aborto), se a vida viável não for como eu desejo que seja. Sei que é uma escolha complexa e que levanta muitas questões. Paciência. É apenas uma escolha - a minha escolha.