sábado, 3 de fevereiro de 2007

Investimento em R&D


Dados relevantes, retirados da base de dados da OCDE (clickar para aumentar a foto), para acompanhar a discussão que se seguiu a esta posta do Zèd, com contributos dele, do Renato e meus.


21 comments:

Zèd disse...

Sim, são dados relevantes que não contesto. Mas eu gostaria mesmo era de saber quanto dinheiro gastam especificamente as empresas farmacêuticas na investigação em ciências biomédicas.
Pode ser puro palpite (aliás, é puro palpite) mas parece-me que estes números são devidos principalmente à investigação nas áreas das tecnologias, tipo informática, comunicações e afins, aí acredito que sejam os privados quem financia a investigação.

Hugo Mendes disse...

Tenho aindas mais dúvidas no que toca a essa divisão, dado que a investigação farmacêutica é a mais cara e simultaneamente a mais lucrativa. Mas vou ver se encontro dados sobre isso.

Hugo Mendes disse...

Por ex., aqui http://www1.oecd.org/publications/e-book/92-2003-04-1-7294/PDF/A62.pdf

podes encontrar dados sobre o peso do investimento da indústria farmacêutica (atençao: excluindo biotecnologia) em R&D sobre o total do investimento privado em R&D (ultimo quadro): em alguns países ela já representa mais de 20 por cento (nos EUA é mais baixo mas isso deve-se ao peso desmesurado da pesquisa militar, que baixa o peso relativo da investigação nas outras áreas), e isto sao números há de 2001; independentemente da expressividade destes dados, as patentes têm crescido imenso nestas áreas, e ela são quase todas depositadas por empresas. Isto demonstra a dinâmica deste sector, sobretudo hoje onde a horizontalização dos processos nas empresas gigantescas (e o peso das empresas a trabalhar nesta área é muito forte no raking das maiores coroporations mundiais) é muito forte (da investigação pura aos clinical trails).
Resumindo: não acho que possamos falar (como se calhar podíamos há cerca de 30 ou 40 anos) de uma apropriação sistematicamente (e este é um qualificativo impiortante) indevida do conhecimento produzido em laboratórios públicos e/ou financiado por dinheiro público. Isto não significa que a biopiracy não seja um problema grave e que não haja transferencias do sector público para o sector privado (como aconteceu com o projecto Genoma Humano) que levantam grandes dúvidas tanto económicas como político-morais (como o facto do Craig Venter ter liderado o consórcio internacional público e depois ter passado num piscar de olhos para o sector privado), e é sobre bounday-work que a regulação política deve debruçar-se.

Zèd disse...

Hugo, obrigado pelos dados estatísticos. Não sei se se pode dizer que nos EUA o sector militar tenha esse peso desmesurado, pode ver-se nos números que é o NIH que recebe a grande fatia do orçamento do estado para esta área. Junta-se a isso que o segundo grande financiador da investigação biomédica nos EUA é o Howard Hughes Medical Institute (benemérito privado), cujo orçamento não deve andar muito longe do NIH. Não me parece que os EUA devam ser considerados à parte, por causa do sector militar.
Globalmente o que se vê é que em apenas três países (Dinamarca, Reino Unido e Bélgica) o sector farmacêutico contribui com mais de 20% para a investigação em ciências biomédicas, em todos os outros países é menos do que isso. Considerando que, como já referi, as farmacêuticas fazem, porque têm que o fazer, os ensaios clínicos, o desenvolvimento do produto comercial, e as tais alterações triviais, 20% parece-me muito pouco (repara que nos outros sectores, como se vê pelo teu post, esse valor anda pelos 50-60%). Isto vem de encontro ao que eu dizia.

O meu post inicial focava dois ponto, o primeiro é que a industria farmacêutica não paga a investigação mas beneficia com ela através das patentes. O segundo ponto é a questão da propriedade que refere o Renato. O interesse público, no caso dos medicamentos, a meu ver justifica plenamente que a propriedade intelecutal tenha regras diferentes. De certa maneira esta segunda questão pode tornar a primeira irrelevante. Aqui é uma questão de princípio. O aspecto que me parece crucial é que uma patente é um monopólio, e numa questão como é a saúde, e sobretudo a saúde em países em desenvolvimento onde não há segurança social, em que os pacientes pagam os medicamentos do seu bolso (ou na melhor das hipóteses as ONG pagam por eles) não é aceitável que existam monopólios.

Hugo Mendes disse...

Renato: os indicadores apresentados apontam para tendências, não pretendem ser prova irredutível de nada, e sobretudo a discussão para a qual eles podem contribuir não é a que tu queres ter.
Voltemos à discussão sobre a propriedade então. A primeira coisa a fazer, parece-me, é começar por retirar algum pó a preconceitos ideológicos que só faziam sentido quando estávamos presos de noções vagas de como funcionavam a economia. A começar pela ideia de "acumulação", que é sempre invocada com um lastro pecaminoso, como se ela fosse mal em si. Mas não é, pela seguinte razao que nenhuma economia, e muito menos uma como a actual, que depende de constante inovação, inventividade e procura incessante do "ainda-não-existente", pode existir sem ela. O problema não é a acumulação em si, mas o que se faz com ela: se se investe, se se gasta sem sentido, se se põe a render, se se redistribui, etc. etc.. Assente este ponto - hoje trivial mas que os saudosos da teoria marxista da acumulação capitalista continuam a levantar como se fosse um argumento letal contra o sistema -, temos entao de definir o que pode tornar, em certos contextos e a partir de certas práticas, esses mecanismos "grotescos". Grotescos "porquê", "como", e a partir de que limiar? Ou acabamos com a demagogia e passamos e definir bem o que se entende por isto ou então a discussao de principios políticos tenderá sempre a ser um ping-pong de soundbytes. E, gostes ou nao, temos que meter aqui umas percentagens (de acordo: elas têm que ser exuastivas e fiáveis); por exempo, qual é o limiar acima do qual o grau de concentração da propriedade é aceitável? É aceitável que esse limiar seja diferente para a propriedade privada e para a propriedade pública (os que estão muito preocupados com os monopólios privados costumam ser verdadeiramente complacentes com os monopólios públicos, com a corrupção, o desperdício e a ineficácia que isto gera (por ex., muitos estão preocupados com um possível futuro monopólio exercido pela Sonae no sector das telecomunicações, mas se for a PT a continuar detê-lo, ah bom, não há problema nenhum). Se se provar - "se" - um dado monopólio privado por um tempo for um incentivo positivo para se produzir/inovar/etc., não é este um argumento importante - mas não necessariamente decisivo - para que esse monopólio temporário faça sentido? Afinal de contas, a explosão inovacional dos últimos 30 anos aconteceu com um regime de patentes, não fora dele; as patentes protegem quem faz e que arrisca. Tem perversões potenciais? Sim, e então vamos definir as regras do seu funcionamento, os trade-offs implicados, e aqui voltamos às percentagens. Os tempos da teoria política sem escrutínio e confronto com a realidade suja das equações e das contas acabaram. E é por isso que os economistas hoje mandam nas discussões - inclusive nas normativas - e deixam os outros a pregar para os convertidos e a repetir os slogans do passado. Se querem acabar com esta hegemonia, não se pense que podemos voltar ao século XIX e á forma como se discutia política nessa altura. E, por sinal, ainda bem que esse tempo não volta.

Zèd: a nossa discussão só pode avançar com "accurate data". A investigação militar nos EUA equivale a cerca de 3/4 da investigação mundial nesta área (e, atenção, não é só pública, por isso a comparação com os fundos federais para o NIH pode não dizer muito). Mas a questão não é essa. A questão é que as farmacêuticas não fazem apenas os ensaios clínios (que já custam milhoes e milhoes e demoram anos e anos!, por isso não me parece que não recebam algo em troca por esse trabalho) e outras alterações triviais; por exemplo, a industria farmaceutica gasta imenso dinheiro a produzir e a transformar moléculas; talvez tu nao consideres isto investigação "fundamental", mas "aplicada" (sendo que as proprias fronteiras entre o que é fundamental e aplicado são bastante escorregadias nesta área; que a industria farmacêutica faça boa parte da seu trabalho laboratorial na dimensão aplicada não me parece por si só secundário, e não é sequer seguro que isto seja mais barato); mas sem investigação aplicada não há medicamentos nem qualquer produto final. Por isso quando dizes que "industria farmacêutica não paga a investigação mas beneficia com ela através das patentes", não posso ver como isso possa acontecer; se há patentes, é porque há algum tipo de alteração; se é suficiente para justificar a atribuição da patente, então a decisão cabe ao Patent Office americano ou europeu (ou qualquer outro). Se não há alteração (ou seja, se não há trabalho incorporado), não há patente atribuída.
Haverá casos perversos e de apropriação indevida de conhecimento público (e até mesmo popular)? Sim, provavelmente. Agora dizer que isto acontece numa escala massiva que invalida o regime de patentes, no sentido de monopólios temporários (convém não esquecer que eles são temporários!), per si. Será que o sector privado beneficia excessivamente deste regime? Então podemos tentar impor outras regras que redifinam o processo de transferência do conhecimento de um sector para outro; por exemplo, pode ser proposto que pague mais impostos, ou que garanta a distribuição de medicamentos abaixo de um certo preço, etc. etc. Há aqui um amplo terreno de negociação.

No que toca à questão dos medicamentos e em particular nos países em desenvolvimento, como já referi, não discordo, em teoria e por princípio, da existência de um regime de propriedade especial, e muitos países já produzem os seus genericos, desafiando o poder das multinacionais e colocando na agenda da discussão política precisamente o papel da responsabilidade do Estado em assegurar que os bens primeiros são produzidos e distribuídos.

Hugo Mendes disse...

Já agora, uma achega ao debate ideológico (talvez isto seja mais relevante para o debate com o Renato do que como Zèd): o argumento contra os monópólios (temporários) que as patentes representam é um argumento LIBERAL(como qualquer argumento contra um monopólio). O que mostra que o liberalismo tem muito mais para dar à esquerda do que os "self professed" anti-liberais querem pensar.

Hugo Mendes disse...

Zèd, escreveste: "Globalmente o que se vê é que em apenas três países (Dinamarca, Reino Unido e Bélgica) o sector farmacêutico contribui com mais de 20% para a investigação em ciências biomédicas, em todos os outros países é menos do que isso."

Só uma achega: os dados não são sobre o que dizes serem; estas percentagens não são sobre o investimento total em R&D, mas sobre o investimento privado (BERD = Buisness Entreprise Expenditure on R&D); sigifica que das quase 10 áreas normalmente categorizadas (agricultura, saude, militar, biotech, etc.), nos países de topo entre um sexto e um quarto do investimento na investigação privada é feito na área da saúde (sendo que pode haver mais investigação para ela relevante nos sectores da biotecnologia e agricultura, por exemplo, com resultados com relevância horizontal entre áreas).

Hugo Mendes disse...

"a acumulação é um problema em si, por exemplo, o caso da especulação financeira: não gera riqueza material".

Renato, imagina: jogaste na bolsa, fazendo uso da especulação financeira, e ganhste 100000 euros. Se os investires a seguir na construção de uma fábrica, nao está a gerar riqueza material? O problema é pensar que a especulação financeira só vive e só alimenta a especualação financeira. Ora, isto não é correcto.

Hugo Mendes disse...

"Outro caso flagrante é o da fusão entre grandes grupos económicos, cujo resultado é só esse: a acumulação de capital, à qual se seguem normalmente as medidas restritivas, nomeadamente, os despedimentos."

Isto permite ganhos de eficácia, um upgrade na economia, e o crescimento do emprego disponível pouco tempo depois.
Como o raciocínio anterior, o erro deste é que não vê a médio/longo prazo, imaginando que a economia é estática e um jogo de soma nula.

Hugo Mendes disse...

Quanto ao conceito de "exploração" nao foi deixado de usar simplesmente porque caiu de moda: deixou de ser usado porque a teoria de explração em que se baseava, a marxista, tem pés de barro e é indefensável. Já agora, a direita continua e muito a falar de exploração: a "exploração" dos contribuintes pelo Estado!

Hugo Mendes disse...

Questão final: a de que a "esquerda (qualquer que ela seja) não pode partir do pressuposto da "lei natural" do mercado, como se este fosse um bem em si". Falar ou invocar o papel do mercado não é invocar a existência de um bem em si nem de qualquer lei natural. As vantagens dos mecanismos de mercado vivem perfeitamente sem a mitificação que vários autores neo-liberais fazem. Ou seja, o mercado nem é nem funciona na realidade como a esquerda anti-liberal e os neo-liberais mais dogmáticos afirmam ser/funcionar.

Hugo Mendes disse...

"O problema é que grande parte da especulação financeira gera mais especulação."

Isso é uma questão empírica (lá voltam as percentagens :). E tudo depende das regras de como a especulação funciona. Voltamos ao ponto de partida portanto: o problema nao é a especulação em si, mas à forma como funciona o jogo a nível (tendencialmente) global.

"O problema é que as fusões têm objectivo imediatos." O que não significa que as fusões sejam todas más, mesmo que no objectivo imediato tragam problemas sérios a curto prazo. De novo, voltamos a uma questão empírica e mensurável estatisticamente, que não pode condenar a "fusão" per si. Acontece que se não houver fusoes pode haver uma quebra brutal de produtividade, as empresas em causa desvalorizarem, e serem comidas por outras que vao fazer o mesmo processo de "down-sizing", por vezes com um pior trade off entre o "económico" e o "social". Não estou a "naturalizar" este processo de forma darwiniana; estou a dizer que não há saida facil para estes dilemas e que nem tudo não consequências negativas.

E quando dizes que "O problema é que a maior parte dos gigantes económicos estão-se nas tintas para "o crescimento do emprego disponível pouco tempo depois"", é fácil: muitas das coisas que a economia de mercado permite acontecem à revelia dos objectivos imediatos dos agentes económicos. Repara no essencial aqui: que o objectivo central nao seja criar emprgo disponível é completamente irrelevante se fizeres as contas e concluires que, efectivamente, foi criado mais emprego! Este é um exemplo simples do funcionamento do mecanismo da "mão invisível" e, como vês, não tem nada de mítico ou extraordinário. Significa apenas que X acontece mesmo que A, B e C não o tivessem em mente de forma individualizada, mas pela forma previsível e coordenada que as suas acções vao previsivelmente (mas nao deterministicamente) tomar.

Hugo Mendes disse...

"Quando nem sequer se questiona as condições de criação de riqueza e de acumulação de propriedade é encarar a leis do mercado como leis naturais".

Desculpa, mas tens de dar uma definição clara de "lei natural".

Hugo Mendes disse...

"Quanto mais diversificada for a economia tanto melhor. E aí estou de acordo sobre a luta contra os monopólios, sejam eles privados ou públicos!"

Sem sarcasmo: um neo-liberal nao diria outra coisa. Isto é uma "lei natural"?

Zèd disse...

(voltando um pouca atrás na discussão)

"A investigação militar nos EUA equivale a cerca de 3/4 da investigação mundial nesta área"
Desconheço os números que mostram isso, e surpreende-me. Quando dizes "nesta área" é as ciências biomédicas?

"que já custam milhoes e milhoes e demoram anos e anos!, por isso não me parece que não recebam algo em troca por esse trabalho"
O que não me parece é que as farmacêuticas tenham prejuízo, logo o investimento está recompensado.

"não posso ver como isso possa acontecer"
Li um artigo há uns anos sobre o assunto nos EUA (lamento mas perdi a refrência, vais ter que acreditar em mim). Segundo esse artigo os sucessivos governo encaram a venda de patentes baratas conseguidas através de investigação financiada com fundos públicos como um incentivo à economia. Ou seja há uma política continuada de transferir o resultado da investigação pública para as farmacêuticas (e não sei se isto acontece apenas nos EUA), e é assim que as farmacêuticas conseguem as patentes.

Zèd disse...

Simplificando um pouco a vossa discussão: das duas uma ou há acumulação da riqueza ou há redistribuição. Ou melhor ainda, ou há redistribuição ou não há.
A "lei natural" é que todos (indivíduos ou empresas) procuram acumular riqueza, nem sei se é realista tentar contrariar esta tendência, nem sei se é legítimo.
Por outro lado, o estado deve procura redistribuir a riqueza, pode fazê-lo após a acumulação, ou pode tentar limitar essa acumulução para permitir uma redistribuição. Escolher entre uma e outra é talvez uma decisão a tomar caso a caso, no caso das farmacêuticas na minha opinião deve impedir-se, pelos argumentos que já expus, o monopólio à partida, e não me incomodo nada que digam que uso argumentos liberiais, neste caso concreto concordo com eles.
(eu avisei que ia simplificar...)

Hugo Mendes disse...

""A investigação militar nos EUA equivale a cerca de 3/4 da investigação mundial nesta área"
Desconheço os números que mostram isso, e surpreende-me. Quando dizes "nesta área" é as ciências biomédicas?"

Não, digo na área militar. O que quero dizer com este número é que muitos dos fundos nos EUA sao canalizados para prioridades militares, o que torna os valores relativos investidos nas outras áreas mais baixos do que noutros países que nao atribuem tantos fundos o sector militar (e por isso têm valores relativos mais elevados na saúde, biotecnologia, etc.)

"que já custam milhoes e milhoes e demoram anos e anos!, por isso não me parece que não recebam algo em troca por esse trabalho"
O que não me parece é que as farmacêuticas tenham prejuízo, logo o investimento está recompensado."

Sim, precisamente, recompensado - e provavel e genericamente, bem - pelas patentes e vendas que fazem. Queria apenas sublinhar que a parte que se refere a outras actividades a jusante da investigação pura sao absolutamente essenciais - e não triviais como referes -, custam dinheiro, e por isso, podem merecer uma protecção legal (via, neste caso específico, as patentes).

"Segundo esse artigo os sucessivos governo encaram a venda de patentes baratas conseguidas através de investigação financiada com fundos públicos como um incentivo à economia. "

Na medida em que isto possa ser verdade - e não tenho motivos para não acreditares no que dizes -, há aqui claramente um argumento de eficácia: o tal "incentivo à economia". Podemos discutir a equidade do processo (se é legítimo usar desta forma os dinheiros públicos), mas se se comprovar ("se"...) que este procedimento alimenta a economia - falando em abstracto: criando emprego, aumentando os lucros, estimulando a inovação, permitindo a cobraça de impostos, e com isto o financiamento de multiplas funções do Estado social, and so on -, então não me parece um mau argumento de todo! Aqui quem discorda tem o ónus do seu lado em justificar como melhorar a eficácia dete processo, ou como evitar perdas grandes no caso de optarmos por um endurecimento não-razoável das barreiras na transferencia da propridade sobre o conhecimento do sector publico para o privado. Podemos até ter boas razóes teóricas e ideológicas para o fazer, mas se isso der cabo do processo a jusante, vale mesmo a pena? Isto sao questoes muito complicadas e por isso não se decidem com um golpe mágico de argumentação. Mas continuo a concordar que se deve traçar fronteiras e separar o essencial do acessório, garantindo a todos - e sobretudo aos mais carenciados, seja a nível nacional como internacional - o acesso a bens e serviços de saúde de primeira necessidade. Quando isso está em causa, entao há que mexer na cadeia tal qual ela está montada, sem a destruir. Ora, this is easier said than done!

Hugo Mendes disse...

"Escolher entre uma e outra é talvez uma decisão a tomar caso a caso, no caso das farmacêuticas na minha opinião deve impedir-se, pelos argumentos que já expus, o monopólio à partida".

De acordo: resta lembrar que as situações de monopólio estao contempladas nas leis "anti-trust" (válidas para qualqer área económica), alias muito mais desenvolvidas nos EUA do que em qualquer país ou regiao do mundo. Aqui, a Europa tem muito que aprender com os EUA.

"Simplificando um pouco a vossa discussão: das duas uma ou há acumulação da riqueza ou há redistribuição. Ou melhor ainda, ou há redistribuição ou não há."

Não sei se esta é a forma mais correcta de ver o problema. Para mim, é preciso ter a noção de que, a partir de um certo limiar, há um trade-off (e isto nao se decide a priori ou por dedução filosófica: é uma questão eminentemente empirica) entre acumulação e redistribuição; ha diferentes regimes de acumulação, uns mais redistributivos per si, e outros que tendem a ser mais inigualitários se deixados à solta, e é preciso ver os seus contornos, como funcionam, e se sÃo possíveis de instaurar num dado momento historico. Muitas vezes é dificil mudar as regras do jogo institucional e instaurar um regime de acumulação mais redistributivo - mesmo que saibamos em teoria e na prática como.
A real questão de filosofia política é, aceitando a necessidade empirica e normativa da acumulação de capital/riqueza (= aumento da capacidade escolha à disposição dos indivíduos e dos grupos), se a redistribuição deve ser deixada como um remanescente da mão invisível do mercado, ou se deve ser guiada pela mão visível do Estado, que corrige os mecanismos de mercado. Para simplificar, o neo-liberalismo não é contra a redistribuição; só acha que devemos confiar na redistribuição (mesmo que isto corresponda a umas migalhas) que resulta das actividades automáticas das trocas mercantis; à esquerda, a redistribuição, é tida como um princípio, uma prioridade ou um fim em si, e por isso tenderá a construir dispositivos institucionais que garantam que a acumulação reverte para todos. Agora, a criação desses dispositivos podem dar cabo do sistema de acumulação e fazer com que o bolo cresça menos, por vezes drasticamente menos, e é aqui que a porca começa a torcer o rabo.
Portanto a verdadeira questão à esquerda é como compatibilizar (a nivel normativo) o princípio da redistribuição como um fim com (a nível empirico) um dado regime de "acumulação-redistribuição" que tem uma geometria histórica variável.
A duvida pois não é bem SE privilegiamos a acumulação ou a redistribuição (either...or), mas COMO conseguimos compatibilizar as duas à luz de um dado princípio político central.

Hugo Mendes disse...

Renato, escreveste: "desconstruindo e levando os teus argumentos ao limite podemos deduzir que: a) o problema não é a especulação em si porque o homem sempre especulou; b)se sempre aconteceu, isso não é bom nem é mau é um estado (uma lei, o que quiseres) natural; c) o que é mau é o modo como actualmente alguns homens ou grupos especulam; d) daí ser necessário regular a especulação; e) contudo, se ela passa ser regulada deixa de ser especulação, f) mas isso é absurdo porque o homem sempre especulou."

Não, não sei onde vem a premissa a) (e depois, tudo o resto). Nao viste nem podes deduzir da minha argumentação um unico argumento naturalista ou determinista histórico do genero "sempre foi assim...". Nem um. Não invoquei nenhum ciclo fechado nem determinista. Estás a introduzi-lo para legitimar a tua argumentação. É o que se chama o "argumento de homem de palha"; quando ele não existe, coloca-se lá para podermos disparar sobre ele.

Aliás, o facto de eu sublinhar sempre a necessidade de estudarmos empiricamente as questões e não abusarmos das deduções vai precisamente contra qualquer tipo de determinismo, histórico ou conceptual. Não é preciso dizer ou argumentar que as "coisas sempre foram assim" para dizer que elas "hoje, tal como as conhecemos, tendem mais ou menos fortemente a ser assim". O segundo argumento não tem nada de teleológico, e vive bem sem qualquer suporte metafísico ou naturalista. Tu é que o pretendes introduzir pela porta dos fundos para descredibilizar questoes que sao fundamentalmente de conhecimento histórico recente - é aqui neste plano que a discussao se deve manter, e estratégias de deslegitimação epistemológica desse tipo são desnecessárias e inuteis.

Por isso concordo com a segunda parte da tua resposta: a de que a especulação actual "algo único e específico da globalização actual. Não era possível acontecer no sec. XIX e em grande parte do sec. XX a uma escala de simultaneidade global." (não sei o que é a referencia a Kant nos permite ajudar a compreender o fenómeno, mas isso é outra questao)

A partir daqui, temos uma serie de outras questoes que o simples facto de este processo ser historicamente contextualizado levanta, ou por outro, nao resolve. O facto de ele ser ou nao "natural" (e não é, concordo, contigo) não avança muito, ou praticamente nada na discussao - a nao ser que o teu alvo seja os "neo-liberais metafísicos" (podemos chamar-lhes assim) que invocam a natureza para tudo e mais alguma coisa que legitime o que eles concordam. Mas essa não é a nossa plataforma argumentativa. Sempre que me apresentam essa conversa da "natureza" - seja os seus defensores, seja os seus críticos - penso logo que vamos pelo caminho errado. Estou-me nas tintas para que o fenómeno X é natural ou nao; o que interessa é compreende-lo como ocorre, se é bom ou mau, e se podemos ou queremos corrigi-lo em função dos nossos objectivos e ideais políticos e morais.

"A riqueza gerada a partir de uma base unicamente especulativa deverá ser apontada, sem reticências e sem hesitações, como algo que é negativo para a economia e para o desenvolvimento do Mundo".

Primeiro, duvido profundamente se ha riqueza que pode ser criada APENAS a partir disto (terias a mesma atitude perante alguem que ganhou o totoloto?), nao individualmente, mas a nível global, dado que é o que interessa, e não a conta bancária de X ou Y. A não ser que o mundo inteiro se transforme num paraíso fiscal, não me parece que possamos reduzir a riqueza criada no planeta apenas a esta questao da especulação. Segundo, talvez seja exagero meu, mas o foco exagerado na especulação parece-me sempre o regresso do preconceito do Cristianismo contra a usura. Se a usura permitir acumular para reinvestir noutro sítio e mudar a vida de muitos outros para melhor num momento seguinte, para quê ficarmos prisioneiros deste debate? Isto não define a priori se a especulação é boa ou má; ela existe, não podemos acabar com ela facilmente (não por ser "natural", mas porque algumas boas partes do sistema, e nao apenas as más, dependerem dela - ou já te esqueceste que os fundos nacionais de segurança social, de onde saem as nossas reformas, tambem investem em fundos de investimento para se valorizarem?), e temos é que perceber onde e como podemos corrigir as eventuais perversoes que uma vez identificadas, possam ser isoladas e neutralizadas. Esta parece-me ser uma postura bastante mais relevante - e mais dificil tambem - do que ter uma posição moral (ou se quiseres ideológica) a priori acerca da especulação.

Hugo Mendes disse...

Se quiseres colocar o debate na filosofia, entao estás a jogar o normativismo kantiano contra o consequencialista utilitarista. Eu nestas coisas sou de tendencia consequencialista, porque temo sempre que o normativismo decorra simplesmente de não quereremos (por medo ou rectitude ideológica)admitir que aquilo que pensamos pode ser narrowminded, parcial, e/ou que aquilo que abominamos possa ter consequências positivas a médio prazo. Não é uma lei, é um intuição pessoal.

Quanto ao facto de a vida das bolsas ter consequencias fora delas, isso é verdade, e é por isso que devemos procurar encontrar fronteiras para os excessos especulativos, reforçando alguns poderes dos Estados e de entidades supranacionais que impeçam acções puramente destrutirvas e que tenham uma atitude conservadora, ou seja, proteccionista em relação aos potenciais estragos que venham a ser causados pelos especuladores, etc.. Mas procurar encontrar fronteiras para os excessos especulativos não é a mesma coisa do que identificar a especulação como um "mal" em si. É uma atitude é pragmatista, e o substracto filosófico é o consequencialismo. E a mihna intuição é que o facto de esquerda se querer demasiadas vezes kantiana (tomar posições por princípio, "em si") perde no debate político-económico do dia-a-dia, e acaba por ficar refém de uma atitude de recusa ("ah isso já não, é inaceitável!") sem conseguir - por não querer - explorar as potencialidades dos mecanismos que recusa admitir sequer a existência, acabando por entregar de mão beijada, involuntaramente, a discussao mais pragmática - como se joga o jogo? com que regras e limites? quem pode fazer o que e quando? - seus adversários ideológico-políticos.

Hugo Mendes disse...

"Bem, temos que jogar nesses dois tabuleiros."

Sim, concordo. Abraço, até amanhã.