quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Pelo direito à opção consciente

A mulher, a vida, a pessoa humana, o contexto e a política. São estes os eixos do actual debate sobre o referendo.
No entanto, a pergunta do referendo é muito concreta e circunscrita, apenas nos interpelando sobre a despenalização da IVG até às 10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Os defensores do Não agarram-se de modo demagógico a uma certa concepção de vida (ameaçada do embrião/feto), que querem impor como um princípio absoluto e, portanto, descontextualizado da realidade humana, donde, desumanizado.
Para muitos e muitos cidadãos, porém, um embrião/feto até às 10 semanas não é um indivíduo humano, não é pessoa humana, é um projecto, uma possibilidade. Assim apontam argumentos científicos (vd. Teresa Joaquim), jurídicos (a pessoa individual), religiosos (a vida como projecto, relembra oportunamente o pe. Anselmo Borges; o enterro religioso só para os indivíduos) e, sobretudo, sócio-culturais (só se é pessoa após o nascimento; a vida é para ser uma vida condigna).
Ou seja, a prossecução da vida humana pressupõe um mínimo de condições sócio-económicas, emocionais, psíquicas e pessoais da mulher e/ou do casal. A maternidade deve ser consciente, desejada e responsável. E essa via possível é sempre sopesada no concreto contexto pessoal, conjugal e sócio-cultural. Como diz S. Tubert: "A identificação da maternidade com a reprodução biológica nega que o mais importante na reprodução humana não é o processo de concepção e gestação, mas a tarefa social, cultural, simbólica e ética de tornar possível a criação de um novo sujeito humano" (cit. aqui).
Tal não significa que não exista um conflito de interesses sério e irreversível, mas sim que se aceita a decisão consciente e responsável de quem já está no mundo (i.e., o potencial gerador de nova pessoa) e pelo entendimento que faz da sua vida, das suas possibilidades, do seu futuro.
A dimensão política surge quando uma parte da sociedade quer impor a sua perspectiva, neste caso, a mais proibicionista. Todavia, aquele conflito de interesses já é seriamente ponderado nos próprios limites legais e sócio-políticos consensualizados nas sociedades mais liberais e que são admitidos pelos defensores do Sim: entende-se que a partir dum certo momento da gestação o processo dum projecto de vida humana já está muito adiantado; daí que, nesta fase, a IVG só deve ser permitida em caso de manifesto perigo ou traumatismo grave para a vida da mulher grávida, de malformação do feto, etc. É isso que está previsto no quadro jurídico da generalidade dos países mais avançados (como bem referem André Pirralha no Diplô, e Vital Moreira, 1 e 2).
O que é saudável para a comunidade é a capacidade de se perceber que a IVG é um assunto sério principalmente para as mulheres que a praticam e os seus próximos, e que o melhor modo da sociedade lidar com a IVG é criar condições para que quem necessite de a ela recorrer possa dirigir-se aos agentes de saúde pública sem receio de represálias ou recusa, e assim atenuar os riscos presentes e futuros, pela informação e planeamento sexual. Assim se possibilitará a redução da IVG, dos riscos e custos associados, assim se reforçando a coesão social e a relevância das políticas públicas.
Uma sociedade aberta e plural tem o dever e o direito não só de compreender, como de amparar e informar. Assim ajudando a que se possam percorrer distintos caminhos dignos por distintas pessoas.
Pugno por uma sociedade assente na solidariedade, na humanidade e na aceitação da pluralidade de opções conscientes e contextualmente compreensíveis. Por isso, vou votar Sim no próximo domingo.

18 comments:

Hugo Mendes disse...

Daniel, concordando com muito do que dizes e sem ter qualquer vontade de desencadear polémica espúrea, eu acho que é irrelevante o facto de a opção ser "consciente" ou "inconsciente". Eu explico: é logico que no debate político, e numa matéria delicada como esta, o apelo à moderação é sensato e inteligente. Mas a verdade é que se o aborto é livre até às 10 semanas, nós não sabemos quão consciente a opção da mulher abortar é; não sabemos, nem temos forma de saber, nem sei se isso interessará minimamente. Isso não quer dizer que ela não deva pensar, discutir com os seus, etc. Mas apresentar o sim ao aborto como o sim ao aborto "responsável" ou "consciente", não sei qual é o papel que o responsável ou consciente estão aí a fazer para além, passe a expressão, de adorno retórico ou "wishful thinking". Não são requisitos para a mudança de lei - embora talvez sejam requisitos para uma campanha moderada.
(isto é um bocado como o direito à greve: é lógico que a greve deve ser utilizada inteligentemente, mas ninguém defende o direito à greve apenas desde que ele seja exercido de forma consciente ou responsável; that goes without saying, e muitas vezes ela será feita "sem consciência", e mesmo assmi o direito nao será posto em causa por causa disso - mal estaria se assim fosse; e o mesmo com o aborto)

Hugo Mendes disse...

Por outras palavras, o teu post devia ter o título de "Pelo direito à opção" :)

Daniel Melo disse...

O uso do sim "consciente e responsável" é propositado e justificável, por 4 razões, pelo menos: 1.º) porque pretende acentuar o facto da decisão ser sempre pesada seriamente (ou seja, há não só a consciência do conflito de interesses como a pessoa ponderará até à última da hora a decisão que tomar, pelo menos penso que será assim em muitos casos); 2.º) é uma decisão sobre uma questão muito importante na vida das pessoas, porque ter um filho ou não marca para sempre o projecto de vida de cada um; 3.º) pelo facto do lado do Não deixar retoricamente, e de modo frequente, a suspeição sobre a ponderação da decisão de certas mulheres, tentando passar subtilmente a ideia de que há abortos decididos com ligeireza; 4.º) pelo facto dos defensores do Não pretenderem insinuar que todas as decisões vão lá com uma conversinha, que o interlocutor estava apenas confuso e sem saber pensar bem, como se isto na vida fossem só conversas.
Por isso, não penso que o seu uso seja adorno retórico ou "wishful thinking". Isto que escrevi não é ciência, é uma opinião. Baseada em inquéritos que li recentemente (Público deste mês), no que a vida me mostrou e a pessoas próximas, no que leio, no que vejo. Faz muito sentido dizer isso.

Daniel Melo disse...

Por tudo isto, mantenho o título: "Pelo direito à opção consciente" :)

Daniel Melo disse...

Eventualmente poderia ter um título mais criativo, mas sempre naquela direcção. ;)

Hugo Mendes disse...

Daniel, de novo, nao discordo de nada do que dizes do ponto de vista empírico. Simplesmente, o SIM é o sim porque é um direito, não porque deve apenas ser usado responsavelmente; não está submetido a ou dependente dos resultados de uma escala de responsabilidade da mulher no momento da decisão. Sim, ela sofre, sim é uma decisão pesada, ontológica, existencial, nao duvido (bom, mas e se em alguns casos concretos não for? proibimo-la de abortar) - mas isto não serve nem pode servir, na minha opiniao, para justificar a lei. Isso são factos empíricos a jusante da justificação normativa da lei.
To get to the point, mesmo que a mulher faça isso na maior das ligeirezas, ela tem toda a legitimidade para o fazer. Os direitos valem pela sua legitimidade objectiva, não pelo seu uso subjectivo. É só aí que quero chegar.

Hugo Mendes disse...

onde escrevi entre parênteses:

"bom, mas e se em alguns casos concretos não for? proibimo-la de abortar"

devia terminar com um ponto de interrogação, claro

Daniel Melo disse...

Eu não estou a raciocinar do ponto de vista dum legislador (como tu pareces estar) mas do cidadão. E no teu argumentário esqueces 2 coisas essenciais: 1.º) a lei é feita em abstracto (não para as excepções ou minorias), e caso a maioria fosse por decisão leviana algo estava muito mal e aí tinha que haver ainda maior preocupação social com o rumo da sociedade, o planeamento, o que pudesse ser que levasse a isso, pois esta lei não pode ser tomada como um método contraceptivo; 2.º) falta uma coisa essencial: é que a política (e é isso que aqui está em causa, uma decisão política) não é só feita de perfeitas elocubrações filosóficas ou teóricas, mas também de argumentos mais chãos, do social, da vida prática, dos preconceitos e do seu uso como arma de poder e influência.

Hugo Mendes disse...

Estou a pensar como o legislador ou como o filósofo, tens razao. Mas essa é também a forma mais poderosa de defender a lei, em particular se a prestas a defender como um direito, e não apenas como um "arranjo conveniente" saído de uma negociação política arbitrária. De novo, não discordo do elencar de elemtentos empíricos, mas eles seriam sempre mais fracos e voláteis do que se não tivesses uma ancoragem filosófica (que não é o mesmo que ideológica) justificativa da medida. Não percebo bem o teu ponto 1), porque de novo a questao de ser uma decisao leviana é para mim irrelevante (talvez seja, talvez nao seja, so what?). Para alem do mais, estás perigosamente a abrir a porta a que os que votam NAO argumentem a favor de algo como "testes" de "responsabilidade" ou de "consciencia": "vamos lá ver se a menina é consciente o suficiente para abortar!" (o 10-day cooling off que propunham em Inglaterra é um exemplo light desta atitude).
Já comparei este caso com o direito à greve; posso comparar com o direito de voto. Ninguém argumentou a favor do sufrágio universal a dizer que o proletariado ou as mulheres o usariam responsavelmente (aliás, ele foi adiado durante tanto tempo porque as elites sabiam que ele seria usado irrazoavelmente!). De novo, o uso responsavel de um direito não é relevante para o facto de ele dever existir ou nao. Isso depois logo se vê, e é uma questao empírica. Serve para compreendermos o processo, mas não chega para justificar uma determinada decisão.

Hugo Mendes disse...

Já agora, quando os cidadãos são chamados a votar, está a ser-lhes pedido para se colocarem no lugar do legislador, obviamente. É essa capacidade de role-taking que faz a democracia deliberativa, e não apenas o olhar para os interesses pessoais ou para os detalhes quotidianos.

Daniel Melo disse...

Pois, qualquer voto político é sério, é também aí que eu quero chegar. Dêm aos cidadãos o direito de decidir conscientemente. Que não seja pelos seus interesses particulares ou do grupo mais próximo, mas por um entendimento de bem comum, de tolerância, de aceitação da diferença.
Continuo a achar que é uma decisão séria, que tem de ponderar 2 dimensões, e que tem que ter esta dimensão. Para, justamente, poder também combater algumas das causas da IVG, para poder ajudar a acabar com o estigma social, para poder neutralizar o preconceito sócio-cultural.
Senão, diz-me tu, como é que combates os argumentos do Não que avancei noutro comentário acima: contrapondo que é um direito da mulher e chega? Mas então voltamos à questão de «na minha barriga mando eu», e não saímos desta conversa de surdos.

Daniel Melo disse...

Olha que eu estou aqui a ver se consigo escrever mais um post e tu, desse lado, só mandas vir. Vê lá se também contribues para a causa 'postante', pá :)

Hugo Mendes disse...

Mas pera lá, estás-te a deixar levar pelos argumentos falaciosos do NAO: o SIM no referendo nao combate as causas da IVG nem pretende acabar ou reduzir com a IVG. Isso é fantasia e é a forma errada de defender tudo isto. Não sei se os abortos vao aumentar, triplicando ou decuplicando. Nao sei nem acho que interesse para aqui. Isto é para retirar as mulheres dos vaos de escada e da alçada da lei e, com alguma sorte, sim, do "estigma social", ponto final.
É uma decisao séria? Sim, talvez. Mas mais uma vez, acho que isso nao interessa para esta discussao. Imagina - imagina só - que em 45% (para não irmos para metade) dos abortos, a decisao é de uma leviandade atroz. Elas sao irresponsáveis, bebem, drogam-se, fazem trinta por uma linha (imagina só, e olha que é capaz de não ser uma mentira tão grande. Repito, nao sei até que ponto isto se aproxima da realidade). Voltas atrás no que pensas? Eu não volto porque a questão não é essa. O caminho argumentativo por onde segues é uma espécie de imagem invertido das senhoras do NAO que aparecem com filhos com algum grau de deficiencia a dizer que eles também podem ser felizes e ter uma vida condigna, etc. Quem sou eu para dizer o contrario? Bom, mas de novo, a questao nao é essa! A questao nao é se a mulher é consciente ou nao (talvez seja - é uma variavel empirica), nem se é possivel ser feliz com mongoloidismo (talvez seja - é uma questao empírica).
Agora, sabes que escrevi desde o primeiro momento que no debate político é preciso cautela nos argumentos usados. Mas isso é uma cedência, legítima, mas é uma cedência, e que se se ganha num lado, pode-se perder noutro, porque o que dizes passa a ser empiricamente variável - e quem diz variavel diz vulnerável.

Hugo Mendes disse...

"Olha que eu estou aqui a ver se consigo escrever mais um post e tu, desse lado, só mandas vir. Vê lá se também contribues para a causa 'postante', pá :)"

Pá hoje estou adepto dessa disciplina novíssima que é a "blogologia crítica"!

Daniel Melo disse...

"blogologia crítica" mas na vertente "comentologia infinita"!
Vamos lá encerrar isto: não dá nada armas ao inimigo, já vês defeitos em todo o lado, esses exemplos que tu arranjas sabes que não são razoáveis pelo tipo de situação que é. A IVG não dever ser um método contraceptivo e por isso a decisão dever ser seriamente ponderada não vejo onde está o mal. Sinceramente.
Por outro lado, é o lado do discurso político, que tem que saber neutralizar o estigma e preconceito sociais e políticos. A abstenção, etc. Sim, tendo um discurso que revele esse lado da reflexão, acho importante.
Porque muita gente acha que isto são os jovens que são uns irresponsáveis.
Vê um pouco à tua volta, ouve as pessoas e vê lá se com esse teu discurso vertical que nem uma seta achas que chegas lá (esta da seta não sei donde saiu ;)

Daniel Melo disse...

Até amanhã, que amanhã é outro dia, e bem importante!
Vê lá isso, hein :-))

Hugo Mendes disse...

"A IVG não dever ser um método contraceptivo e por isso a decisão dever ser seriamente ponderada não vejo onde está o mal. Sinceramente."

Para encerrar: estás a misturar o nível empirico com o nível normativo. Eu também acho - nível empírico - que deve ser ponderada; não acho - nível normativo - que a legitimidade da lei dependa disso, como a legitimidade de nenhum direito depende do seu uso empirico e subjectivo. E isto é absolutamente decisivo nesta discussao e nao vale misturar coisas. :)
Fazendo outra separação: um é discurso político, ponderado, para maximizar apoiantes; outro é o discurso justificativo pessoal. Sei que temos que saber ter os dois, o segundo entre nós, o primeiro em público. Mas o que é mais sério é aquele que pode/deve ser defendido independentemente das opiniões alheias! :)

abraço, até amanha

vallera disse...

remeto para o meu comentário ao post do Hugo: Sobre o aborto: the road not taken