sexta-feira, 4 de maio de 2007

Sarkozy, legitimidade e contestação: umas notas

Zèd, tocaste em dois pontos-chave, mas acho que fui mal compreendido no que escrevi no post anterior. Já tinha pensado em dizer umas coisas sobre este tema, aproveito agora a tua interpelação para me alongar um pouco.

1. "Se Sarkozy ganhar é porque os franceses o querem, é assim a democracia. Claro que podemos sempre questionar a democracia, e devemos. A democracia é tão questionável como outra coisa qualquer."
Calma, eu não questionei nada disto; não está em causa a legitimidade democrática de Sarkozy, nem escrevi nada que apontasse nesse sentido. A questão não é essa.

2. Ela é, antes de mais, esta: é que as reformas legítimas e eficientes não se fazem nas ruas. A França tem o péssimo hábito de compensar (estou a exagerar um pouco, mas este é o ponto central do argumento) a incapacidade de reformar as instituições por dentro pelas explosões de contestação, mais ou menos rotineiras, nas ruas. Isto evita seguramente o ennui, mas não garante nada de bom no resto. E o resto é a reforma contínua e gradual das instituições políticas, administrativas, económicas, laborais, etc.

3. É verdade que, por exemplo, o movimento operário, desde o fim do século XIX, começou a ganhar nas ruas alguns dos seus primeiros direitos. Existe aliás uma interessante teoria de que, quanto mais pequenos os países, mais concentrado o poder político, e menor a capacidade militar dos governos, maior a capacidade para o movimento operário "enconstá-lo às cordas" e obter concessões ao nível eleitoral e laboral (daí que nos EUA, país gigantesco, o movimento operário nunca tenha conseguido grandes concessões, por exemplo).
Mas este tipo de procedimentos fazia sentido num contexto em que o sufrágio universal estava ainda longe, let alone qualquer dinâmica institucionalizada de diálogo e cooperação entre poder político, capital e trabalho. É por isso que é preciso ver com frieza o contexto dessas revoltas e a sua eficácia relativa. Se elas permtiram ganhos ao longo de décadas, não há garantia nenhuma que esses ganhos fossem óptimos, do ponto de vista da eficiência. Elas sempre precisaram, para serem efectivas e duradouras, de espaços e de uma intermediação negocial solida. Foi isso que os sindicatos reformistas e a sua ligação aos partidos trabalhistas/socialistas/sociais-democratas conseguiram. E conseguiram-no muito mais eficazmente depois do diálogo entre capital e trabalho ter sido institucionalizado do que antes, quando as reivindicações se ficavam pela rua (e passaram a poder, com o tempo, a ser facilmente esmagada por exércitos mais bem equipados). A rua pode fazer pressão, mas sem capacidade de mobilização, organização e agregação de interesses, essa energia perde-se na atmosfera do momento.

4. Esta questão não deve ser descurada, do ponto de vista empírico, como o é muitas vezes à esquerda. É que, sem querer retirar importância às conquistas da rua - repito: num contexto histórico no qual a democracia era inexistente, logo não havia canais de pressão que não passassem pelo protesto -, os reais ganhos do ponto de vista distributivo realizados pela classe operária, representada (porque a negociação envolve representação e delegação; não é a massa urbana que vai aqui mudar o que quer que seja) pelos sindicatos e pelos partidos de esquerda, foram feitas em espaços instituicionais de negociação com o capital.

5. Em França as coisas são diferentes do resto de quase toda a Europa Ocidental. O pensamento de esquerda radical, interessantíssimo do ponto de vista intelectual, nunca, et pour cause, encontrou tradução no apoio popular nem na sindicalização dos trabalhadores franceses. Certo: o PCF foi o maior partido durante a IV República. Mas depois tudo mudou (como tinha que mudar), e a questão é que o sindicalismo, que foi a grande arma que os partidos de esquerda conseguiram empunhar perante o patronato pela Europa fora, sempre foi fraquíssimo em França. Hoje, rondará, como acontece desde os últimos 20 anos, os 10%: o valor mais baixo da UE. Mais: se a memória não me falha, apenas em 1967/8 passou a ser legal a representação sindical dos trabalhadores nas empresas francesas, quando na vizinha Alemanha, por exemplo, já era habitual o sistema de co-determinação que envolvia representantes sindicais na gestão das empresas. Claro, o Maio de 68 foi o que foi. Mas essa "energia libertária" não tem necessariamente tradução na capacidade negocial da esquerda sindical na defesa dos trabalhadores franceses - e, já agora, dos desempregados.

6. Dai que o que Ségolène disse várias vezes seja tão trivial - para quem vive em países europeus com regimes de negociação social-democrata institucionalizados - e, ao mesmo tempo, tão radical no que toca à realidade francesa: a necessidade de melhorar a qualidade do diálogo social, primeiro, e de trazer as pessoas para dentro dos sindicatos, depois. Isto torná-los ia mais democráticos, mais accountable, mais responsáveis (representar 80% da população como na Dinamarca ou na Suécia não e a mesma coisa que representar 10%; esta situação permite a sua tomada por minorias sectárias e puristas e incentiva ao radicalismo irresponsável) e colocaria pressão sobre o patronato, que teria que aprender a lidar não com grupúsculos pequenos que conseguem colocar milhares de pessoas na rua para dizer "não" à medida A ou B, mas não conseguem ter um poder organizacional e político suficiente para ser um parceiro na construção de medidas reformistas que melhorem as condições dos trabalhadores franceses. Ségolène podia, talvez, conseguir mudanças a este nível, não apenas porque me parecia genuinamente interessada e porque o disse, mas porque me parece que a ala que representa dentro do PSF finalmente percebeu a "alavanca" disto tudo: o sistema institucional de relações laborais, que permite funcionar - ou não - uma política de emprego, uma política de redistribuição de salários e tempo de trabalho, uma política de combate à inflação, e uma política de efectiva formação profissional, ligada a uma política educativa nos domínios vocacionais. É por tudo isto que importa ter sindicatos inteligentes, robustos e (minimamente) democráticos e autónomos. É porque sem eles isto não funciona decentemente.

7. Como não funciona decentemente, o regime fica bloequado, a meio caminho de lado nenhum. Trata-se de um regime que não é nem social-democrata (um modelo que funciona, com bom crescimento, baixo desemprego, níveis baixos de desigualdade e grande capacidade adaptação laboral à inovação) nem um regime (neo-)liberal (outro modelo que funciona, com bom crescimento, mas com elevadas desigualdades e os trabalhadores entreguesaos humores do mercado, com as externalidades negativas que conhecemos (criminalidade, baixo capital social, etc.)). Ao contrário dos regimes social-democrata e (neo-)liberal, o regime económico de relações laborais francês é um regime incoerente, feito de corporatismos descoordenados e institucionalmente egoístas, cuja ausência de complementaridades institucionais afecta letalmente os níveis de crescimento, emprego e a distribuição do rendimento. Ségolène tentaria a social-democratização do regime, incorporando os sindicatos na negociação. Sarkozy vai deixar tudo na mesma. E isso, creio, vai-lhe custar caro. A ele, aos sindicatos, e, a médio prazo, à França. Os ricos, esses, claro, surfarão nas baixas de impostos e outros presentes que Sarkozy terá para lhes oferecer.

8. Para finalizar: enquanto a esquerda continuar a pensar que é nas ruas que se ganham as batalhas, eu não acho que a França vá mudar muito - para melhor, e aqui falo dos que precisam que ela melhore, e não dos ricos a quem Sarkozy vai estender a passadeira encarnada. Está mais que provado que ninguém bate os franceses na constestação. O problema é que eles são batidos por quase todos na capacidade de organização e negociação. Ségolène sabia disto. Mas, quase de certeza, não vai conseguir fazer nada para efectivar o changement.

6 comments:

Zèd disse...
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Zèd disse...

Hugo,
Eu é que me expliquei mal. Não vi no teu post a contestação à legitimidade democràtica da eleição do Sarkozy. Simplesmente aproveitei a réplica ao teu post para escrever mais umas coisas que tinha pensadas.

Sou eu proprio que ponho em causa, e assumo-o, a democracia. Não a democracia como ideal, que não passa de uma abstracção e ao mesmo tempo uma meta a atingir, para não dizer utopia. Mas ponho em causa o sistema politico que se pertende democràtico, mas que é sempre imperfeito, e pode sempre ser melhorado. Quando politicos como o Sarkozy (ou Bush) são eleitos democraticamente não posso deixar de pensar que hà ainda algo a melhorar.

Quanto à contestação, como dizes "França tem o péssimo hábito de compensar (...) a incapacidade de reformar as instituições por dentro pelas explosões de contestação". Partindo desta simples constatação tudo aquilo que dizes que seria desejàvel fazer em França não é realista. Eu aceito (cinicamente) como um facto que em França apenas a partir das ruas se pode fazer reformas. Não que não tenhas razão naquilo que dizes, mas não é assim que funciona.

Para além do que estou convencido de que se as reformas se fizerem a partir de movimentos de contestação fortes vão sempre mais longe do que as reformas negociadas, mais ponderadas e de feitas de forma institucional, porque acabam sempre por ser feitas concessões aos que se opõem às reformas. Para além disso é quando se trata de fazer reformas profundas de forma negociada é sempre muito fàcil chegar a um acordo sobre o que não se quer, mas dificilmente se chega a um acordo sobre o que se quer, e dai ao imobilismo é um passo.

Hugo Mendes disse...

"Eu aceito (cinicamente) como um facto que em França apenas a partir das ruas se pode fazer reformas. Não que não tenhas razão naquilo que dizes, mas não é assim que funciona."

Mas repara, Zèd, é por isso que a direita ganha tantas vezes em França: é que uma larguíssima parte da população não tem confiança na esquerda, seja a socialista, seja aquela à esquerda do PSF. É porque tentos associam a esqurda com cultura da constestação e do voluntarismo estatista - a que o votante médio associa a irresponsabilidade, autismo e idealismo. As pessoas estão cansadas disso, acho (entre outras coisas, claro). E a prova é que Sarkozy vai ganhar.
Eu não acho que os franceses, à esquerda, devam aceitar as coisas como elas são, cinicamente ou não :). À conta disso, estiveram fora do poder entre 1954 e 1981, e agora arriscam-se a estar - ao nível da presidencia - mais 5 ou 10 anos, ou seja, entre 1995 e, no pior dos casos, 2017. É tempo demais de fora das instituições. É preciso perceber o que está errado.

"Para além disso é quando se trata de fazer reformas profundas de forma negociada é sempre muito fàcil chegar a um acordo sobre o que não se quer, mas dificilmente se chega a um acordo sobre o que se quer, e dai ao imobilismo é um passo"

Discordo. E a história do movimento operário na Europa do século XX aponta em sentido contrário. O que conta é saber muito bem o que se quer, é as reivindicações serem realistas, para capitalizar na base efectiva de apoio, que é, caricaturizando um pouco, as pessoas que pagam as quotas nos sindicatos e não aquelas que decidiram fazer barulho nas ruas no dia A ou B. É que aqui a questão-chave não se trata das reivindicações serem "fortes" ou não; elas precisam, antes de mais, de serem as reivindicações certas, as mais inteligentes. Isto não é como o jogo de puxar a corda, mas está mais ao nível do xadrez. As questões laborais e económicas não se resolvem com voluntarismo e barulho, mas com medidas cirúrgicas e de difícil compreensão para a maioria.

CLeone disse...

Apesar de tudo, e sobretudo das debilidades histriónicas da esquerda francesa (Mme Royal incluída), a França continua uma grande potência económica. E, como social-democrata, nem por isso vejo que país é neoliberal tal com descrito acima. OS EUA? só se deixarmos de lado os estados e pensarmos apenas na sua federação...

Hugo Mendes disse...

Sim, continua a ser uma grande potência, mas podia ser maior. E absorver os 10% de desemprego que estão a criar uma "underclass" à americana.

Quando falo de "modelo neo-liberal" falo de ideais-tipo. OS EUA e o Reino Unido são os que mais de aproximam. Claro, há diferenças entre os diferentes Estados americanos, em particular entre o Sul e o Norte; mas também há regras federais que limitam fortemente o pender intervencionista dos Estados e que dão alguma coerencia ao modelo.

Zèd disse...

Hugo, é certo que hà contestação e contestação. Jà escreveste aqui no blogue vàrias criticas em particular ao sindicalismo francês com as quais concordo. E é verdade que a irresponsabilidade dos sindicatos dà argumentos à direita populista com Sarkozy à cabeça. Mas não é so dessa contestação que falo. Por exemplo no que toca à integração, aos guetos das cités dos suburbios, hà decadas que se sabe que o problema existe e não se têm tomado medidas politicas de fundo para resolver o problema. Depois dos tumultos de Novembro de 2005 despertaram algumas consciências, e o problema tem um peso muito maior hoje na agenda politica do que tinha antes. Mas continua a não se fazer nada (talvez porque a direita esteja no poder) para resolver o assunto. Só com uma contestação ainda mais forte esse problema vai ser resolvido. A sociedade civil com muita força, e até alguma classe politica, têm tentado fazer pressão para resolver o problema e não se tem feito nada. Se houver novos tumultos, e de maior dimensão, e se a contestação tomar uma forma organizada que não tomou em 2005, e deixar de ser acções violentas avulsas estou certo que o problema vai avançar. Mas as instituições, està à vista, não estão a funcionar.

Convém também não esquecer que não estamos a falar da contestação em geral, estamos a falar da contestação que previsivelmente vai haver às politicas de Sarkozy. Cà para mim qualquer contestação às politicas de Sarkozy é boa. Tudo o que permita pôr um travão ao Sarko é bem-vindo :-)