segunda-feira, 19 de março de 2007

Como a argumentação neo-liberal justifica a existência de um sistema nacional de saúde

"Era o que mais faltava que hospitais privados não pudessem decidir, dentro das suas portas, que intervenções médicas estão dispostos a fazer."

Adolfo Mesquita Nunes, no "Arte da Fuga".

21 comments:

Anónimo disse...

Claro, o bom velho estilo soviético. O Estado necessita de obrigar a que os hospitais, mesmo que não sejam sua propriedade, a fazerem o que o grande timoneiro deseja...

Hugo Mendes disse...

Há quem olhe para a defesa instransigente dos direitos de propriedade. E há quem olhe, em primeiro lugar, para o direito dos pacientes e para saúde das populações (caso não tenha percebido, é isto que está que está em causa, não a omnipotência estatal). São escolhas políticas e morais; cada um faz a que lhe convier.

Anónimo disse...

"O facto de eu me preocupar com as criancinhas, faz com que eu tenha razão!"

Caro Hugo, obrigado pelo julgamento moral, mas não aceito esse tipo de lições de si.

Se tenha as posições que tenho, é porque acho que são as mais justas e livres. E surpreenda-se, sim de facto preocupo-me com a saúde das pessoas!

Zèd disse...

Era o que mais faltava, que as escolas privadas não pudessem escolher os programas que ensinam aos seus alunos.

Hugo Mendes disse...

Caro anónimo, eu não moralizei em abstracto: a sua ideia de justiça é a defesa dos direitos de propriedade - estejamos a falar de hospitais, garagens ou mercearias -, independentemente do que isso significa do ponto de vista das consequências do ponto de vista da saúde pública e económico. Tem todo o direito de achar que o seu modelo de justiça é melhor; simplesmente, isto significa que não percebeu o meu argumento: é que se os hospitais privados podem excluir quem lhes apetece, isso então é um argumento fortíssimo para que haja um sistema público que não possa excluir ninguém. Caso não tenha percebido, eu não argumentei a favor da nacionalização dos hospitais privados.

Ricardo disse...

Hugo,

Partilho da tua perspectiva e parece-me que não estavas a defender nenhuma "nacionalização" da saúde. É evidente que a única garantia que podemos ter duma saúde o mais próxima possível do conceito de universal é utilizando critérios que o sector privado, pela sua natureza, não está disposto a utilizar.

Abraço,

Anónimo disse...

"Era o que mais faltava, que as escolas privadas não pudessem escolher os programas que ensinam aos seus alunos."

Qual o problema com isso? Os pais poderiam escolher as escolas que preparassem os filhos da melhor forma...

Anónimo disse...

"que se os hospitais privados podem excluir quem lhes apetece, isso então é um argumento fortíssimo para que haja um sistema público que não possa excluir ninguém."

Hugo, também compreendeu o meu argumento mal.

Se é verdade que um hospital se recuse a fazer determinados procedimentos, excluindo dessa forma pacientes, garanto-lhe que o mercado encarregava-se de preencher essa lacuna.

A solução estatal pode sempre existir, mas o mercado seria capaz de funcionar.

Hugo Mendes disse...

Tal como funciona no caso dos 45 milhões de americanos sem seguro de saúde?

Anónimo disse...

"É evidente que a única garantia que podemos ter duma saúde o mais próxima possível do conceito de universal é utilizando critérios que o sector privado, pela sua natureza, não está disposto a utilizar."

Such as?

É certamente bonito falar em saúde universal, sob a alçada do Estado. Voçês que defendem esse modelo, expliquem-me como fazer face aos problemas que começam a existir. Um aumento brutal dos impostos? Despedir médicos? Se me explicarem bem, quem sabe, posso ser convencido.

Anónimo disse...

"Tal como funciona no caso dos 45 milhões de americanos sem seguro de saúde?"

Já existem modelos para fazer face a isso. Li há pouco tempo, a proposta de Massachussets. Aguardo para saber os resultados.

Tem piada que cite os 45 milhões. Os candidatos às eleições americanas, principalmente os democratas, já afirmaram que querem acabar com esse número. Tornar a saúde universal. Porém, ainda estou à espera de saber como o vão fazer.. Hugo, tem ideias? Eles bem precisam...

Hugo Mendes disse...

O problema é obviamente que o mercado de saúde funciona de formas diferentes de outros mercados. Para ir à situação mais óbvia, há um conjunto crescente de intervenções que são caríssimas e fora do alcance dos orçamentos familiares; os hospitais privados - o tal mercado que evoca e que se encarreguaria de resolver os problemas - podem simplesmente recusar-se a tratar um sem número de patologias cujo tratamento é muito caro; e as seguradoras, obviamente, recusar-se a oferecer seguros a um conjunto grande da população). Aqui, das duas umas: ou temos um sistema de saúde público ou nao temos. E ou esse serviço público é maximalista e tendencialmente universalista para controlar as despesas, ou entao as contas gastas com medicamentos e intervenções, muitas vezes desnecessárias, vão subir e subir. É que ao contrário do que acontece no caso dos outros bens, no caso da saúde é facílimo a oferta manipular a procura, havendo o incentivo óbvio para os médicos proporem tratamentos caríssimos, mesmo que as pessoas não necessitem.

O caso do mercado da saúde é daqueles em que as perversões - económicas e sociais - são tão grandes que se justifica um sistema universal. Obviamente, isto não siginifica acabar com a medicina privada. Mas esta pode bem ser residual, para quem não queira fazer uso dos serviço público.

O objectivo do post era só um: se querem defender a medicina privada, argumento do género do apresentado não me parece a forma mais bem pensada. Mas suponho que seja a mais "ideologicamente correcta".

Hugo Mendes disse...

"Hugo, tem ideias? Eles bem precisam..."

É curioso fazer ironia com isso. É que o Clinton tinha um plano para isso, que só caiu por terra porque as Health Management Organizations, as seguradoras e os operadores privados boicotaram por completo o seu plano, alias democraticamente legitimado.

Hugo Mendes disse...

"Voçês que defendem esse modelo, expliquem-me como fazer face aos problemas que começam a existir. Um aumento brutal dos impostos? Despedir médicos? Se me explicarem bem, quem sabe, posso ser convencido."

Pode referir os "problemas brutais" a que se refere? É que se há sistema que funciona mal, do ponto de vista da saúde publica e da rentabilidade económica, portanto do ponto de vista da equidade e da eficácia, é o norte-americano. Confesso que não percebi a proposta para "despedir médicos".

Ricardo disse...

Caro anónimo,

Não é verdade que as despesas na área da saúde estejam a disparar a um ritmo descontrolado. É claro que podemos discutir se o Estado deve ou não alargar as responsabilidades e as parcerias com o sector privado mas isso é outra questão, na mesma pertinente. Defender o SNS não é o mesmo que defender a sua dimensão actual nem estar a defender uma escalada de gastos.

Mesmo que o SNS desaparecesse o mercado ia necessitar dum forte apoio directo do Estado para conseguir que a saúde fosse tão universal como é agora. Admito que o sector privado tem mais capacidade de inovação e talvez de controlo de custos (talvez porque as parcerias não têm sido famosas em Portugal) mas não consegue fazer face a uma procura que, muitas vezes, não consegue pagar o custo do preço de mercado do serviço. É incontornável o papel do Estado neste sector desde que todos estejam de acordo que há um patamar mínimo de cuidados de saúde que deve estar disponível para todos até porque a saúde, pelas suas características, não encaixa no modelo do que deve ser o sector privado (a redistribuição dos riscos pode ser feita no sector privado mas dificilmente, a menos que muito deficitária, ou seja, contrária à sua natureza, consegue atingir padrões mínimos de universalidade).

Mas num ponto concordo. O Estado tem o dever de racionalizar os custos e melhorar a qualidade de serviços.

Abraço,

Hugo Mendes disse...

Ricardo, long time no see, sê bem vindo e um abraço.

Anónimo disse...

"É que o Clinton tinha um plano para isso, que só caiu por terra porque as Health Management Organizations, as seguradoras e os operadores privados boicotaram por completo o seu plano, alias democraticamente legitimado."

É esse o plano que desejava ver implementado aqui em Portugal? Era com o plano Clinton que acha que consegue fazer frente ao enorme aumento da despesa na área da saúde no nosso país?

Não me leve a mal, eu acho que isso é muito bonito, embora um pouco injusto, como deverá concordar. Mas como disse, é uma questão de prioridades.

A minha grande dúvida é se este modelo público, de solidariedade estatal coerciva, consegue se manter. Pode responder-me?

Anónimo disse...

"do ponto de vista da saúde publica e da rentabilidade económica, portanto do ponto de vista da equidade e da eficácia, é o norte-americano. Confesso que não percebi a proposta para "despedir médicos"."

Não faz sentido comparar os dois serviços estatais, com o privado em termos de eficácia (presumo que tenha sido a isso que se referiu).

A proposta "despedir médicos", que não é proposta, obviamente, é tentar estimulá-lo a me dar medidas para conseguirem financiar o nosso actual Sistema Nacional de Saúde.

Anónimo disse...

"Não é verdade que as despesas na área da saúde estejam a disparar a um ritmo descontrolado."

Ricardo, the understatement of the week! Olhe, telefone ao Ministro, porque ele aparentemente não sabe disso, dada a pressa dele em criar taxas por tudo e por nada.

"Mesmo que o SNS desaparecesse o mercado ia necessitar dum forte apoio directo do Estado para conseguir que a saúde fosse tão universal como é agora."

É possível. A privatização é apenas o começo. A regulação do sector, seria fulcral para o seu sucesso.

"Admito que o sector privado tem mais capacidade de inovação e talvez de controlo de custos (talvez porque as parcerias não têm sido famosas em Portugal) mas não consegue fazer face a uma procura que, muitas vezes, não consegue pagar o custo do preço de mercado do serviço."

Pudera... Este é um mercado sem uma verdadeira competição. Enquanto isso não for alterado, não podemos fazer esse tipo de comparações e conclusões.

"É incontornável o papel do Estado neste sector desde que todos estejam de acordo que há um patamar mínimo de cuidados de saúde que deve estar disponível para todos"

Uma reflexão, nada mais, para ti Hugo e para o Ricardo: Será que a sociedade não era capaz de absorver em parte, algumas dessas incorrecções do "meu" sistema, caso não houvesse o papel do Estado?

"O Estado tem o dever de racionalizar os custos e melhorar a qualidade de serviços."

Nisso estamos de acordo. Mas para isso é preciso alterar a organização do SNS. E Hugo, descanse, pode ser feito sem alterar o sistema de financiamento...

Hugo Mendes disse...

"É esse o plano que desejava ver implementado aqui em Portugal? Era com o plano Clinton que acha que consegue fazer frente ao enorme aumento da despesa na área da saúde no nosso país?"

O caso dos EUA nada tem a ver com o portugues. E, já agora, ninguem gasta mais recursos, publicos e privados juntos, que o EUA. Portanto não me parece que tenha grande moral relativamente à contenção dos custos.

"Não faz sentido comparar os dois serviços estatais, com o privado em termos de eficácia (presumo que tenha sido a isso que se referiu)."

Claro que não: o privado chuta os casos difíceis para o publico e fica maravilhosamente classificado nos rankings...

"A regulação do sector, seria fulcral para o seu sucesso."

Claro que parte da regulamentação do sector privado iria contra a ideia de que os hospitais privados poderiam recusar o que lhes apetecesse.

"Será que a sociedade não era capaz de absorver em parte, algumas dessas incorrecções do "meu" sistema, caso não houvesse o papel do Estado?"

Claro que era capaz de absorver: de forma bastante assimétrica, deixando uma parte da população ou fora do sistema ou com acesso a serviços de má qualidade. Se chama a isto "resolver" o problema, então teria resolução fácil, não tenho dúvida.

"Hugo, descanse, pode ser feito sem alterar o sistema de financiamento..."

É isso que está a ser feito, não é? Eu estou descançado, porque não sou eu que quero revolucionar o sistema. E vai ver que nem é preciso despedir médicos.

Ricardo disse...

Caro anónimo,

O lançamento de taxas, pelo ministro, não me parece que seja uma medida cujo objectivo principal seja contrariar o aumento dos gastos mas sim para mudar o seu modelo de financiamento. Devo dizer que discordo destas taxas. Aliás esse mesmo ministro estava muito satisfeito com o crescimento das despesas do SNS e da sua comparação (ao nível dos gastos) com a de outros países europeus, numa cerimónia cheia de pompa e circunstância, com a presença do Primeiro Ministro. Mas estamos de acordo que os gastos têm que ser controlados.

Não sei se o sector privado, após a privatização, consegue corrigir alguns problemas fundamentais da saúde, só com regulação. O financiamento directo ia continuar a ter que ser expressivo. E é óbvio que o mercado da saúde não é concorrencial mas isso não invalida a minha preocupação, ou seja, que vai haver sempre procedimentos médicos que considero que devem ser disponibilizados de forma universal e que uma grande fatia da população não vai conseguir pagar o seu preço de mercado, por muito que este baixe.

Eu nunca disse, e por isso faço uma vénia ao teu olhar sobre a sociedade, que não é desumano nem pode ser comparado a qualquer tipo de falta de sensibilidade, que o mercado é incapaz de minimizar algumas das lacunas. Mas é a minha convicção que este é um sector que, ao contrário de outros, não tem vantagens em ser adoptada uma perspectiva de mercado pura ao seu funcionamento. O sector da saúde tem, e vai continuar a ter, enormes vantagens em ser regulado e financiado pelo Estado de forma diferente de outros sectores, até porque a universalidade e a redistribuição dos custos com a saúde parecem-me ideias (podes chamar de ideais) que devemos continuar a defender.

Abraço,