quinta-feira, 15 de março de 2007

Crítica construtiva; o mito e a fraude

Nota prévia: Lamentavelmente o texto que se segue não é baseado em factos verídicos, e qualquer semelhança com locais, situações ou personagens reais é infelizmente uma coincidência

A cena ocorre durante o julgamento de José da Silva, acusado de homicídio. O Ministério Público não conseguiu apresentar testemunhas ou provas materiais do crime, no entanto baseando-se num presumível móbil, numa série de provas circunstanciais e conjecturas elaboradas construiu uma sólida acusação. João da Silva, testemunha, passível de fornecer um alibi ao acusado, é chamado a depor. Segue-se o interrogatório por parte de Manuel da Silva, delegado do Ministério Público, a João da Silva.
...
MP - Então o Sr. João da Silva encontrava-se com o Sr. José da Silva no dia em que ocorreu o crime?
JS - É verdade.
- À hora do crime?
- Exactamente.
- A 300 kilómetros do local onde se deu o homicídio?
- É isso mesmo.
- O que quer dizer que o sr. José da Silva não pode ter cometido o homicídio...
- Parece-me evidente.
- Portanto na sua opinião a acusação da polícia é falsa?
- Logicamente que sim.
- Então diga-me só uma coisa: quem é que cometeu o crime?
- Hmm !?!?! Isso eu não sei...
- Como assim? Se o sr. João da Silva diz que não foi o sr. José da Silva tem que nos dizer quem foi.
- Mas eu não sei quem foi, sei apenas que não pode ter sido o sr. José da Silva, mais nada!
- O sr. João da Silva não está a fazer uma crítica construtiva, assim sendo não podemos levar em conta o seu testemunho.
- ...
- Sim, porque o sr. João da Silva limita-se a criticar, a pôr em causa a seriedade dos que com a sua dedicação conseguiram os elementos para acusar o sr. José da Silva, não é verdade?
- Não, eu limito-me a confirmar o alibi do sr. José da Silva...
- Mas não propõe nenhuma alternativa séria e credível. Eu pergunto apenas: senão é o sr. José da Silva o homicida então quem é?
- Mas não me compete a mim responder a essa pergunta, eu sou apenas uma testemunha...
- Não compete a si? Então compete a quem?
- Bem..., à polícia.
- Ah! Quando a polícia faz o seu trabalho o sr. João da Silva critica-o, mas quando lhe perguntamos se tem alguma explicação alternativa, não é a si que lhe compete responder, mas é à polícia. É isso?
- É isso, exactamente.
- Portanto o sr. João da Silva recusa-se a fazer um crítica construtiva.
- Eu sou apenas uma testemunha...
- Meretíssimo sr. Juíz António da Silva, o Ministério Público solicita que o testemunho do sr. João da Silva seja retirado dos autos, e não seja considerado para efeitos deste julgamento, devido à recusa intransigente por parte da testemunha em fazer uma crítica construtiva.

3 comments:

Hugo Mendes disse...

Bom tema; mas convém não esquecer - agora saindo da paródia - que a testemunha que é levada coercivamente a dar resposta reactiva não tem as mesmas responsabilidades do que a testemunha crítica que faz uma avaliação a partir de uma base, um "point d'appui" que lhe confira - ou não - legitimdade à sua tomada de posicão.
Ou seja, as responsabilidades da testemunha-reactiva-obrigada-a-responder-via-constatação são muito menores da testemunha-que-faz-uma-avaliação-a-partir-de-um-quadro-normativo-qualquer.
Aliás, no primeiro caso não devemos sequer falar de crítica; apenas no segundo.
Não achas? (ou levei demasiado a sério a tua paródia :))

Zèd disse...

Não, de todo, não levas demasiado a sério.
Apenas acho que não existe crítica construtiva e crítica destrutiva, há apenas crítica.
Metodologicamente (pelo menos em sentido estrito) crítica e propostas alternativas são variáveis independentes. Uma não está ligada à outra. Quando um argumento ou uma proposta têm uma falha, um erro, um ponto fraco, a crítica é legítima independentemente de tudo o resto.
A testemunha-que-faz-uma-avaliação-a-partir-de-um-quadro-normativo-qualquer pode criticar, apresentar propostas, fazer as duas coisas, ou a não fazer nenhuma delas. Ou seja em termos lógicos dizer "não tenho contra-argumentos para a tua crítica, mas como não tens propostas alternativas a tua crítica não é válida" é fazer batota. Claro que no plano ético, quando se entra num debate, há as responsabilidades de que falas, mas aí o essencial acho que é a honestidade intelectual, é que se esteja num debate de boa-fé. Uma pessoa pode num dado momento fazer uma crítica que considera válida, sem ter uma proposta séria a avançar nesse momento.

Hugo Mendes disse...

"Uma pessoa pode num dado momento fazer uma crítica que considera válida, sem ter uma proposta séria a avançar nesse momento."

Verdade: crítica e proposta são momentos independentes. Mas a crítica, para ser crítica e não ser oportunismo, tem de se basear num estado ideal contra-factual. Ou seja, eu apresento uma crítica-enquanto-avaliação-negativa-que-é-negativa-precisamente-porque-viola um-estado-de-coisas-que-seria-desejável/ideal. Ora, esta crítica é valida, sim, mas convém que esse estado de coisas desejável/ideal esteja explicitado. Se o crítico não o fizer, o que é visado pela crítica pode tentar reconstrui-lo - e com isso obrigar o primeiro crítico senão a apresentar uma proposta, pelo menos a refinar o seu quadro de partida.

Se não houver quadro de partida, por muito vago e embrionário que seja, então não estamos perante uma crítica, mas perante oportunismo. Por isso - falando agora no meu caso pessoal - quando eu questiono os críticos não é necessariamente à procura das propostas a montante do que dizem, mas para questionar o seu ponto de partida a jusante, o "point d'appui" que qualquer crítico necessita para legitimar a sua avaliação crítica. Não pergunto necessariamente: "o que propões?", mas "de onde falas?" (se bem que esta separação analitica seja por vezes empiricamente apagada no debate.

Resumindo: se o crítico não tem obrigação de apresentar propostas - aí concordo contigo -, tem obrigação de ter um quadro normativo de partida, e quanto mais reflexivo, construido e solido ele for, mais séria será a crítica - mesmo que, repito, nao seja avançada qualquer proposta alternativa.