terça-feira, 13 de março de 2007

A percepção e a realidade dos problemas

Nos últimos tempos tenho pensado por que é que muitas pessoas - isto é um impressão pessoal, não vem de nunhum estudo científico - altamente qualificadas, e mesmo politicamente à esquerda (no blogue o Daniel e o Renato já colocaram a questão algumas vezes, mas não estou a falar deles, o meu universo de referência é mais alargado - e isso tem-se visto por exemplo sistematicamente na imprensa nos últimos meses), se preocupam tanto com o desemprego dos licenciados e parecem razoavelmente insensíveis, a não ser de forma ritual, à questão do abandono escolar no ensino secundário. Sendo o desemprego da mão-de-obra qualificada muito baixo do ponto de vista estatístico (e abaixo da média europeia) - e provavelmente o existente é efeito de uma conjuntura de lenta abertura de mercados em certas áreas onde o crescimento permitirá, a prazo, uma mais firme absorção da mão-de-obra qualificada - e o abandono escolar, pelo contrário, um verdadeiro problema nacional (Portugal está nesta questão na cauda do universo OCDE), parece-me que a atenção (e a agenda) pública está realmente biased em favor da primeira questão.


Entretanto, tropecei, nas minhas leituras, nesta interessante e plausível explicação de Harvé Hamon, no seu Tant qu'il y aura des élèves (edição poche, 2004, Paris: Seuil, pp.14-15). Ele está a falar da realidade francesa, mas a análise servirá perfeitamente para Portugal:


«C'est désormais fait: le 'collège unique' est mis à mal, la pierre angulaire est fragmentée. Cela, on sentait venir. Ce qui était moins prévisible, c'était que l'affaire se déroulerait sans anicroche, presque sans protestation, sinon rituelle. Quand le contrat d'embauche des rejetons issus des classes moyennes est insatisfaisant, c'est l'émeute. Quand on chasse de la sphère scolaire les 'irréductibles' qui sont aussi les plus pauvres, c'est l'indifference. Le phénomène révèle aussi que la critique du monde politique, de son inaptitude à penser long, à viser le bien public par-delà les alternances, est à son tour insuffisante. Après tout, l'abandon du collège unique ne gène en rien les couches moyennes et supérieures qui contournent la plus élémentaire mixité sociale, gavent cord pour transformer les examens en concours. Il ne gêne pas non plus les enseignants qui préfèrent inscrire les carences des élèves au compte de ces derniers plutôt qu'à celui de l'institution».

3 comments:

Zèd disse...

Hugo, concordo contigo em que a questão do abandono escolar é bem mais preemente que a do desemprego dos licenciados.
Permita-se-me até dizer que o desemprego dos licenciados é uma questão pífia. O tal artigo do DN citado outro dia num post aqui do Peão se servisse para debater alguma coisa seria para o mau jornalismo e não o desemprego dos licenciados (a sério, ninguém quer debater o mau jornalismo?). A espectativa que se cria em relação à obtensão de uma licenciatura é perfeitamente depropositada, trata-se "apenas" de uma qualificação avançada para depois se entrar num mercado do trabalho que é necessariamente competitivo. Não é, nem deve ser, o passaporte para o El Dorado. É engraçado, isto parece-me correlacionar-se com o absurdo hábito de em Portugal se chamar "Drs." aos licenciados, que eu saíba só em Itália existe também esse hábito, em qualquer outro lado é simplesmente ridículo. Tudo isto só é possível porque em Portugal a licenciatura é ainda visto como algo de estra-ordinário porque raro, quando devia ser perfeitamente banal, ou seja é um reflexo de um défice de formação suprerior no país.
Dito isto, é preocupante que ainda não esteja a acontecer a tal abertura do mercado e absorção da mão-de-obra qualificada de que falas, quer dizer que as políticas de modernização, e inovação e etc e tal não estão a funcionar, ou pelo menos ainda não estão a surtir efeito. Tendo Portugal um défice de mão-de-obra qualificada, numa fase inicial em que houvesse uma diminuição desse défice haveria um aumento das ofertas de emprego para licenciados. De qualquer modo não é para sair da Faculdade a ganhar 3000 por mês.

Não tenho a mesma percepção que tu em relação ao que parecem ser as prioridades. Claro que estando fora do país a minha percepção tem ainda menos significado do que a tua, mas a impressão que tenho tido é que o abandono escolar preocupa mais pessoas do que o desemprego dos licenciados.

Agora a questão é saber o que é que se deve fazer para estancar o abandono escolar. Quem tem propostas? Pela minha parte não acho que o problema se resolva com campanhas de sensibilização. A solução que eu acharia melhor não é praticável, subsídios para ir à escola. Se entrarmos no discurso do é preciso combater as causas do abandono escolar - pobreza, exclusão social, etc... - é uma pescadinha de rabo na boca, confundem-se as causas com as consequências e não se resolve o problema (eu acho até que é ao contrário, combatendo o abandono escolar combate-se a pobreza e a exclusão). Mas há uma coisa que me intriga: o que quer dizer "ensino obrigatório"? Quais são as consequências para quem não cumpre o mínimo obrigatório? Acho que, pragmáticamente, uma medida possível é fazer com que não ter o ensino obrigatório tenha consequências. Por exemplo não se pode entrar no mercado de trabalho (por exemplo celebrar contratos de trabalho, atribuir nº de contribuinte) quem não tiver o ensino obrigatório.

Hugo Mendes disse...

Zé, obrigado pelas questões levantadas relativamente ao abandono escolar e à escolaridade obrigatória. Eu acho que voltarei a elas em forma de post, para ver se se gera debate.

Hugo Mendes disse...

Ah, e discutir o mau jornalismo também era interessante. O mau e o bom, obviamente.