sexta-feira, 23 de março de 2007

Do pacifismo, para a mudança social

Juro que não se tratou de 'provoquismo', antes, como dizia o Renato, de tentar animar a malta. Dado o adiantado da hora, já não deu para fazer texto prenunciador, que só vem agora, mea culpa. Entretanto, isto ficou bem animado, valha-nos isso.
A corrente mais ‘visível’ do pacifismo tem uma génese concreta: o pós-II Guerra Mundial, quando emergiu um movimento pacifista que, anos depois, e dado o contexto da Guerra Fria, lançaria campanhas mediáticas pelo desarmamento/ não proliferação de armas. O eixo principal era o anti-nuclear, mas não se ficava por aí: a corrida aos mísseis e às minas anti-pessoais, a proliferação de armas em geral. A imagem do post é o símbolo original para o Direct Action Committee Against Nuclear War, de 1958 (vd. aqui; a outra imagem colorida, que se eclipsou, é uma variante recente, há dezenas delas).
Algumas das mais importantes ONG’s na área dos direitos humanos e cívicos surgiram neste contexto: Peace Action e a Amnistia Internacional. Algumas das mais importantes convenções internacionais foram criadas por pressão da opinião pública organizada.
O pacifismo tem várias correntes, algumas bem antigas, como a moral judaico-cristã do “não matarás”, dando origens a vários seguidores (anabaptistas e Amish, etc.); o jainismo de matriz indiana; etc..
No século XIX, dentre as várias correntes internacionalistas firmou-se a da defesa da paz: vd. o International Peace Bureau (f.1891, Prémio Nobel da Paz em 1910), que tinha ligações com outros movimentos emancipadores. Filantropos como o norte-americano Andrew Carnegie tentaram reforçar a paz com leis e organizações internacionais (em 1910 fundou a prestigiosa Carnegie Endowment for International Peace).
Mais recentemente, Gandhi preconizava que não havia uma via para a paz, a paz é que era a via ela mesma. A mudança e a luta são os fundamentos da boa acção humana, e ele foi um bom exemplo disso. A acção directa é, pois, um dever ético, político e social, devendo ser uma acção orientada para melhorar as condições dos desfavorecidos e para salvaguardar a segurança e sustentabilidade de todos.
No pós-II Guerra Mundial surgiram outras ONG’s relevantes, como a Pax Christi International (f.1945), a Physicians for Social Responsibility (f.1961, Prémio Nobel da Paz em 1981), etc..
Há correntes que concebem a paz com programas de desenvolvimento e cooperação comunitários, que podem ir até ao nível nacional (ex. da Foundation for P.E.A.C.E., f.1979) ou mesmo internacional (ex. da Foundation for Self-Sufficiency in Central América), ou através de fundações como a de Carter ou as ligadas a instituições universitárias, como a Joan B. Kroc Institute for International Peace Studies (f.1986), integrada na Univ. Notre-Dame/ Paris, o MA-Peacestudies da Univ. Innsbruck, ou o United States Institute of Peace.
A auto-defesa e o recurso à violência para defesa em situações extremas de grande conflitualidade são aceitáveis, mas isso não quer dizer que a principal preocupação não seja tentarmos neutralizar as causas dessa violência: a intolerância, as ideologias da violência, os ultranacionalismos e fundamentalismos, a ausência de condições condignas de vida, etc..
O pretexto foi a guerra no Iraque, mas ultrapassa claramente essa questão: o Iraque foi ocupado supostamente por ter armas de destruição maciça (quando a via devia ter sido as inspecções e o mandato da ONU); hoje, o Irão e a Coreia do Norte estão à beira de terem armas nucleares e a comunidade internacional preocupa-se legitimamente com isso. O Paquistão já as tem e é uma ditadura, etc., etc.. É a ONU e mediadores respeitados que devem ser apoiados com vista à resolução de graves conflitos, e não os agentes mais belicistas.
Enquanto pacifista estou ao lado dos que denunciaram a mortandade devastadora das Guerras Napoleónicas (sim, já vem daí esta história), a «carne para canhão» da I Guerra Mundial, a ameaça nazi a que os Aliados não ligaram até terem a serpente a entrar-lhes casa adentro (foram dos 1.ºs a fazer esta denúncia); ao lado dos que denunciaram a Guerra Fria e a sua vertigem belicista; ao lado dos que denunciam hoje a nova corrida armamentista, com os EUA de novo a querer gastar rios de dinheiro para criar escudos anti-não sei o quê no espaço, a China e o Japão a aumentarem brutalmente o arsenal bélico, etc.. Estou ao lado da ONU e de todas as ONG’s e iniciativas que pretendem conciliar, ir para as negociações, pressionar para conversações.
A ONU tem uma University for Peace, na Costa Rica, e instituiu o Dia Internacional da Paz, que calha a 21 de Setembro. Até lá teremos muito tempo para debater.
Nb: para mais informação vd. historial internacionalista ap. IPB, Nonviolence.org e Wikipedia.
PS: não vejo ligação entre pacifismo e multiculturalismo e o lamentável caso referido pelo Hugo é sinal de ultraconservadorismo, mais do que de multiculturalismo: já por cá tb. ocorreram casos similares, bem recentes até, do marido agressor ‘poder’ bater na mulher porque era tradição, era costume, era o chefe de família e não consta que Portugal seja um país multiculturalista, é mais multimarialvista. Já a interculturalidade parece-me um conceito mais interessante para se debater, não achas Hugo?

13 comments:

Hugo Mendes disse...

Porque não simplesmente "cosmopolitismo"?

Hugo Mendes disse...

"não vejo ligação entre pacifismo e multiculturalismo e o lamentável caso referido pelo Hugo é sinal de ultraconservadorismo, mais do que de multiculturalismo".

Não era para ter ligação, Daniel, isso foi uma justaposição mais a brincar do que quelquer outra coisa (pensei que o ':)))' fosse suficiente para perceber isso!), sem intenção de associar o que não tem associação.

Mas não concordo que esta seja necessariamente uma posição "ultraconservadora": ela pode perfeitamente ser justificada à luz do "multiculturalismo" (se a juíza o faz ou não é outra coisa), de que muitos self-professed progressistas se alimentam. Dado que cada cultura tem as suas regras, quem somos "nós" para impôr as "nossas" regras aos "outros", não é?...

Zèd disse...

Há uma diferença entre o pacifismo de que fala o Renato e do que fala o Daniel, pelo menos pelos exemplos que cada um cita. No caso do Daniel defende um pacifismo que se opõe essencialmente a guerras entre estados, já o Renato fala de exemplos de resistência popular, ou seja individuos que se organizam e lutam fazendo o uso da força, mas não forçosamente fazendo guerra.

Eu revejo-me nas posições tanto do Daniel como do Renato, e esta distinção parece-me importanto para conciliar ambas as posições (ou isso, ou então sou esquizofrénico). Assim de repente parece-me mais fácil aceitar como legítimo o uso da força quando um povo é vítila de uma qualquer forma de ditadura ou opressão do que aceitar como legítima uma declaração de guerra por parte de um estado, indepentemente do pretexto.

vallera disse...

Isso quer dizer que uma guerra civil faz mais sentido do que qualquer outro tipo de guerra?

Daniel Melo disse...

"Há uma diferença entre o pacifismo de que fala o Renato e do que fala o Daniel, pelo menos pelos exemplos que cada um cita. No caso do Daniel defende um pacifismo que se opõe essencialmente a guerras entre estados, já o Renato fala de exemplos de resistência popular, ou seja individuos que se organizam e lutam fazendo o uso da força, mas não forçosamente fazendo guerra."
Não necessariamente, Zèd, daí eu ter falado tanto do Gandhi: ele conseguiu unir a luta duma nação (a indiana) contra outra (a imperial britânica) e a dum povo contra a opressão colonial. No caso dele enquanto líder coincidiram ambas as lutas.
Mas há outros líderes assim: Martim Luther King e a luta pelos direitos civis nos EUA; Mandela e o bispo Desmond Tutu na África do Sul, a líder da oposição na Birmânia, etc., etc..
Em suma, a acção directa que alimenta o pacifismo permite isso: trata-se da questão da autodeterminação dum povo, da defesa dum povo numa situação limite.
Enquanto internacionalismo do séc. XIX, o pacifismo esteve ao lado de movimentos como o feminismo, o sindicalismo, o abolicionismo da escravatura, o sufragismo, o anticolonialismo. Não só a nível dos doutrinadores, militantes e simpatizantes de cada causa, como pelas conexões institucionais e doutrinais.
Todos estes movimentos têm fermentações paralelas, num quadro dum mundo em transformação, em que a cidadania é assumida pelas massas (classes médias e proletariado) à luz dum quadro iluminista, progressista e emancipador do ser humano.
Quanto à situação de guerra civil não tive tempo ainda de ler sobre isso (nem sei se existem textos teóricos sobre esta magna questão), é obviamente mais complexa, mas as causas estruturantes da violência são as que falei no post.
No caso do Iraque, foi a substituição dum regime opressor por um regime de ocupação que radicalizou ainda mais uma situação já de si muito complicada, dando a fracções radicais de cada tendência religiosa e étnica um ascendente que numa situação mais legitimada talvez não fosse tão fácil terem.
Nós cá também tivemos confusão no PREC, ditaduras com grande longevidade significam depois ausência de experiência a lidar com regras democráticas, daí a maior dificuldade na negociação.

Daniel Melo disse...

Não sei se me expliquei bem: o que o Gandhi fez foi uma revolta, mais, levantou todo um povo contra uma dos maiores potências coloniais da altura. E isto de modo não-violento, mas sempre com acções directas, com envolvimento das pessoas, nunca virando a cara à luta. Acho que melhor exemplo de revolta popular é difícil de encontrar no século XX.
Pela atitude e o alcance do feito de Gandhi e do seu povo, este caso foi umas das fontes vitais de inspiração do movimento pacificista do pós-II Guerra Mundial.
As coisas estão encadeadas: Gandhi tinha antecedentes, é óbvio; depois dele veio a luta das restantes colónias, umas mais violentas que outras (mas com líderes bebendo o seu exemplo); veio a luta pelos direitos civis; o fim do apartheid na África do Sul; a resistência da Igreja em Timor-Leste, etc., etc.
As conexões existem pois foram acontecimentos que transformaram o mundo e que tiveram muito eco internacional.

Daniel Melo disse...

Quanto ao multiculturalismo, acho que podíamos aproveitar para um debate mais aprofundado noutra ocasião, porque vale a pena.
Com :) ou sem :))
;)

Daniel Melo disse...

Só para terminar, parece que temos aqui muitos pacifistas, é isso?

Zèd disse...

"Isso quer dizer que uma guerra civil faz mais sentido do que qualquer outro tipo de guerra?"

Vallera, a minha resposta é não, foi por isso também que eu disse "o uso da força, mas não forçosamente fazendo guerra."
Mas em situações extemas até a guerra civil é aceitável, como a Guerra Civil espanhola. Quero dizer, é aceitável que os republicanos, perante o avanço de Franco, peguem nas armas. Nesse caso o pacifismo teria podido muito pouco.

Daniel, quando os meios não-violentos são eficazes acho que são sempre preferiveis, mas parece-me que nem sempre funciona. Acho que não se deve excluir o uso da força. Depende das circunstâncias, principalmente depende da forma como quem tem o poder o exerce, de como é exercida a repressão. O colonialismo britânico e a ditadura franquista fizeram-no de maneiras diferentes, logo as respostas poderão também ter que ser diferentes.

Em suma, sou tão pacifista como o Renato :-)

Daniel Melo disse...

"Daniel, quando os meios não-violentos são eficazes acho que são sempre preferiveis, mas parece-me que nem sempre funciona. Acho que não se deve excluir o uso da força. Depende das circunstâncias".
Zèd, eu não disse nada que contrariasse esta posição.
Por ex., ignoro se existem escritos de pacifistas contra as guerrilhas independentistas.
E em casos extremos, como já disse que se tratam as lutas de auto-determinação, é a questão da auto-defesa dum povo, donde está legitimado.
Ou seja, o pacifismo não é exclusivo doutras atitudes, apenas pretende desenvolver uma determinada via e concepção do que deve prioritariamente orientar a acção humana.
Acho que não devemos cair no perigo de voltarmos à procura duma ideologia que sirva para tudo, ou seja, que tudo explique e resolva.
Mesmo no caso do pacifismo, os casos que dás, colonialismo e franquismo, podem e tiverem movimentos pacifistas a combatê-los.
As associações de defesa dos exiliados e das vítimas do franquismo sempre seguiram métodos pacíficos. Do colonialismo já falei do Gandhi.
As lutas pelos direitos civis e anti-apartheid (aqui excepto um ou outra corrente armada) foram lutas dentro do espírito da resistência e da acção directa não-violenta.
Portanto, num mesmo contexto ditatorial terás sempre correntes diferentes, uma de acção pacífica, outras de acção armada, etc., que não necessariamente conflituantes, ao invés, na maioria dos casos são convergentes.
O pacifismo não corresponde nada a essa ideia de passividade e conformismo, nada, nem sei onde foram buscar isso (ao Woodstock?! Came on, não misturem as coisas). Como já disse, o pacifismo foi um dos movimentos que mais fez pela mudança social e política no século XX: na Índia, na Europa, nos EUA, na Àfrica do Sul, em Timor-Leste, etc., etc..

vallera disse...

"quando os meios não-violentos são eficazes acho que são sempre preferiveis, mas parece-me que nem sempre funciona. Acho que não se deve excluir o uso da força."

É verdade, quase nunca funcionam.
O problema é que o uso da força nunca é comedido.
Na Segunda Guerra mundial, locais como, Colónia, Dresden, Berlim, ao todo 131 cidades alemãs atacadas por bombardeamentos e quase todas arrasadas. 600 000 civis alemães mortos em consequência da guerra aérea. Sir Arthur Harris, comandante-em-chefe-do Bomber Command disse "those who have loosed these horrors upon mankind will now in their homes and persons feel the shattering strokes of just retribution"
Encontrei esta informação, que citei, no livro de W. G. Sebald, História Natural da destruição, guerra aérea e literatura, publicado em portugues pela teorema

vallera disse...

"Só para terminar, parece que temos aqui muitos pacifistas, é isso?"
tu queres é animar a malta :-)))

Cláudia Castelo disse...

Só agora aqui chego. [A minha noite foi de emoção e inqueitação no S. Jorge]
Obrigada, Daniel. Adorei ler o teu post. Somos mesmo cúmplices!