sexta-feira, 16 de março de 2007

Escola, fome e doutores

Uma notícia que corria ontem na comunicação social relatava o problema da fome nas escolas. Para alguns alunos, sobretudo os das zonas mais periféricas (não me refiro somente ao interior do país), a única refeição condigna que tomam durante o dia é fornecida pela escola. Pode questionar-se a qualidade do serviço prestado por muitas escolas, e a responsabilidade de algumas autarquias que não têm tido como prioridade política a alimentação e nutrição infantil. No entanto, não é esse o objectivo deste post. Estas notícias revelam que nos sectores mais pobres da sociedade portuguesa a escola tem uma função básica que está para além da sua função primordial. Questiono-me se os índices de abandono escolar não seriam ainda mais volumosos e precoces se as escolas não garantissem estes serviços básicos à população estudantil. Obviamente que não se pode pedir às escolas que resolvam o problema da pobreza e da subnutrição das crianças. Como também não se pode exigir à escola que ela resolva só por si o problema do abandono escolar. Em zonas consideráveis do país o abandono escolar não resulta somente da ineficácia pedagógica e representa muito mais do que um problema (já de si grave) de sub-qualificação.
A nossa sociedade é das mais assimétricas da Europa e, por isso, requer respostas políticas diferenciadoras. Por exemplo, analisar o problema do abandono escolar em alternativa à questão do desperdício de capital humano qualificado, não me parece fazer muito sentido. São problemas muito distintos e que extravasam em larga medida o âmbito das medidas de qualificação. Mas são dois problemas graves! Portugal precisa de pessoas mais qualificadas ao nível do ensino secundário e ensino médio, mas também necessita de rendibilizar todos os recursos humanos altamente qualificados que tem à disposição. Precisa de apostar na democratização do ensino de modo a torná-lo cada vez mais independente da origem de classe dos alunos. Mas também necessita de apostar em nichos de excelência que valorizem o mérito, a criatividade e a atitude crítica. Para tal são imprescindíveis políticas a diferentes velocidades, como já referi noutro post. E, sobretudo, são fundamentais medidas transversais que, por exemplo, não encarem a escola e as condições de formação que esta presta (desde o básico até ao superior) como, simultaneamente, a causa e a consequência de quase tudo o que tem a ver com a falta ou com o excesso de qualificação.

5 comments:

Zèd disse...

Parece-me uma boa ideia melhorar a alimentação nas escolas, como política de combate ao abondono escolar (e à mal-nutrição ao mesmo tempo), mas não sei se essa medida conseguiria atingir todos os que abandonam a escola. Outra medida seria implementação nas escolas de ocupação dos tempos livres, actividades lúdicas fora do horário escolar. Afinal muitos miúdos vão à escola porque podem jogar à bola, poderia tentar-se seduzi-los por aí. Ao mesmo tempo poder-se-ia coordenar as actividades de lazer com o apoio escolar, se se melhorar o aproveitamento escolar é capaz de se reduzir, e muito, o problema. Não tenho dados estatísticos, mas gostaria de saber se há uma relação entre abandono escolar e aproveitamento escolar. Qual será o aproveitamento dos alunos que abandonam a escola? Ficaria surpreendido se a maioria dos que abandonam tiverem boas notas, parece-me mais provável que muitos dos que abandonam o fazem por terem má notas, e acharem - eles e as famílias - que não lhes serve para nada ir à escola.

Concordo que o abandono escolar e o "desperdício de capital humano qualificado" são dois problemas graves, e dois problemas distintos. Não vou comentar o segundo agora, fica para outra altura.

Hugo Mendes disse...

"analisar o problema do abandono escolar em alternativa à questão do desperdício de capital humano qualificado, não me parece fazer muito sentido."

Renato, vamos ser criteriosos e rigorosos no que dizemos e nao forma como interpretamos o que os outros escrevem: eu não analisei o problema abandono escolar EM ALTERNATIVA à questão do desperdício do capital humano.
Eu disse apenas que a percepção pública dos problemas é - parece-me - diferente e, no que toca à dimensão real dos problemas, injusta e perigosamente diferente. E tentei explicar porquê: o desemprego qualificado atinge as classes médias e altas, enquanto o abandono escolar atinge as classes baixas. Ora, sabemos bem como os os primeiras são muito mais capazes de influenciar a agenda pública e mediatica de discussao
de problemas. Se quisermos caricaturar, todos os jornalistas conhecem amigos seus, porventura licenciados, que estão desempregados, e com os quais podem fazer uma reportagem. Mas duvido que privem muito com pessoas da mesma idade que abandonaram a escola quando tinham 15, 16, ou 17 anos. Para os licenciados terem o problema de ficarem momentaneamente desempregados precisam, naturalmente, de se licenciar. Ora, a probabilidade de alguém se licenciar está muito diferentemente distribuida pelo espaço social, e é um problema que afecta, repito, sobretudo, os filhos médias e altas. Mas obviamente que gostava de falar com alguns dados à mão.

Dito isto, permite-me discordar da dimensão dos problemas/fenómenos:
é que se Portugal precisa de mão-de-obra qualificada, o desemprego destes jovens não é um problema nacional (repito: o desemprego está abaixo da média europeia!), enquanto o abandono escolar é - é uma tragédia individual (micro), social (macro), mas também económica, porque representa um subaproveitamente incrível do investimento que o Estado faz no ensino secundário publico.
Mais: enquanto não conseguirmos resolver este problema não vamos fazer quase nada para diminuir as desigualdades sociais em Portugal, porque o abandono escolar entrega os jovens ao trabalho desqualificado, muitissimo mal pago e altamente instável. Ou seja, não vamos conseguir elevar os minimos qualificacionais (e por definição salariais).
Mais: já percebemos que através de políticas robustas temos conseguido formar recursos humanos qualificados, por forma a, aos poucos, a esse nível, nos aproximarmos da Europa. É um processo lento, mas estamos a conseguir, porque vamos no caminho certo. Mas não se passa nada disso no abandono escolar: as taxas são sensivelmente as mesmas de há uma década. Aqui estamos literalmente estagnados. O problema escrustou-se e rotinizou-se, e poucos parecem realmente alerta para a sua dimensao e profundidade.

Mas há mais dois interfaces entre os dois níveis de ensino que não relevam apenas da comparação, mas da interdependência:
1) se não resolvermos os problemas do abandono escolar no secundário não vamos conseguir inverter a tendencia que já começou para afluirem menos estudantes ao superior. Já começou e vai-se acentuar: vai haver menos estudantes para estudar nas universidades e politécnicos, porque as cohortes estão mais pequenas e, claro, não se prevÊ nenhum baby boom nos próximos tempos. E aqui é absolutamente decisivo estancar o abandono escolar, porque senão não vamos conseguir encontrar públicos para formar a tal mão-de-obra qualificada que nos falta em termos internacionais comparativos.

2) A interdependência é também financeira. Por exemplo, há dinheiro para bolsas no ensino superior, mas quase não há dinheiro p a acção social escolar no secundário. Sabendo que aqui as desigualdades são muito mais fortes do que no superior - onde já se procedeu a um creaming socio-económico -, as prioridades do sistema estão efectivamente trocadas: devia haver muito mais bolsas no secundário para apoiar os alunos em dificuldade do que os alunos no superior. Claro que podemos dizer: devia haver bolsas nos dois níveis. Bom, eu também concordo, mas aqui entram os contrangimentos orçamentais e não sei até que ponto nos é possível instaurar esse "melhor dos mundos". O que é provável acontecer é que as universidades passem a recorrer cada vez mais ao financiamento priavdo (via propinas) e algum deste dinheiro passe a ser canalizado para o secundário.
Resumindo: os dois fenómenos são importantes, tens razão, mas procurei dizer por que um tem dimensões dramáticas que faltam ao outro - e como ainda não sabemos bem sair corrigi-lo fortemente. Mas sabemos como podemos comecar a invertê-lo, através da reorganização da política de reorganização do ensino secundário em curso, através da diversificação das ofertas e uma aposta no ensino profissional. Eu quando tiver mais tempo escrevo qualquer coisa a explicar a importância disto no combate ao abandono escolar e na qualificação da população.

Hugo Mendes disse...

"mas gostaria de saber se há uma relação entre abandono escolar e aproveitamento escolar. Qual será o aproveitamento dos alunos que abandonam a escola?"

Zèd, a tua intuição está certa, essa relação é altíssima.

"Outra medida seria implementação nas escolas de ocupação dos tempos livres, actividades lúdicas fora do horário escolar."

Isso foi o que foi feito pelo MEducação, através das actividades de enriquecimento curricular, onde os miúdos aprendem ingles, musica, ou fazem exercicio fisico, dependendo dos recursos e possibilidades de cada escola.

Hugo Mendes disse...

"E, sobretudo, parece-me brutalmente injusto culpar a escola como responsável máximo (e único) do abandono escolar."

Apenas duas questões muito sinceras:
1) Quem o faz?

2) Será que quando falamos em "escola" muitas pessoas não pensam imediatamente nos "professores", quando afinal muitas vezes o que está em causa na (necessariamente parcial) responsabilidade de escola deriva muito mais da organização do curriculo, da gestão das carreiras, da gestão da escola como organização, na relação escola-comunidade, etc. Parece-me que as pessoas assimilam demasiado depressa "responsabilidade da escola" a "resposabilidade dos professores", e isto só pode gerar mal-entendidos desnecessários.

Hugo Mendes disse...

De acordo. Acho mesmo que a questão de separar a "escola" dos "professores" é importante, tal como é fazer a contínua pedagogia desta distinção. E mesmo quando falamos dos "professores" e da qualidade do acto pedagógico, podemos e devemos reconhecer que há "insuficiências" ou "falta de qualidade" no seu desempenho sem que isso qualifique o professor de "mau"; essa "insuficiência" pode ser simplesmente indicador que é mais difícil ser "bom professor" ou obter "bons resultados" em certas condições, como as que referiste no teu post.
Resumindo: em certas condições a educação pode ser de "qualidade insuficiente" sem que isso signifique que as pessoas não sejam "competentes".