terça-feira, 20 de março de 2007

A árvore e a floresta

"Escolas secundárias vão alugar espaços para casamentos e baptizados".

Esta notícia, que faz hoje a capa do Diário de Notícias (DN), dá um bocado vontade de rir.

Começo pelo essencial, transformado em acessório pelos jornalistas. Pour aller vite, é assim: o Ministério da Educação vai investir cerca de 940 milhões de euros na modernização das escolas secundárias e profissionais do país: 332 das 477 sofrerão obras de requalificação até ao ano de 2015 (ou 2016). O nosso parque escolar está degradado, e em inúmeras escolas em péssimas condições. Basta lembrar que 77% das escolas secundárias foram construídas depois de 1974, em regime de pré-fabricação, e com um prazo de vida a rondar os 25-30 anos. Essas escolas - atenção: 3/4 do total - estão hoje a chegar ao fim da vida. Se não houver um programa robusto de modernização, não há solução sustentada e de futuro para este problema estrutural.

Ora, o que noticia - com honras de capa! - o DN? Que as escolas secundárias vão alugar espaços para casamentos e baptizados. A notícia praticamente ignora quase por completo dados, no mínimo, relevantes: que o parque escolar nacional, em muitos locais em péssimas e inadmissíveis condições, vai ser profundamente requalificado; que o modelo de financiamento vai ser alterado (e só a sua alteração - no qual se inscreve a criação da empresa pública "Parque Escolar", mas não só - permite a modernização das escolas, porque o modelo anterior não pemitia nada disto); e que, como não há dinheiro nacional e comunitário para cobrir todo o programa, as escolas vão ter que contribuir com a sua pequena parte (15% do 940 milhões de euros estão previstos serem cobertos por acções de valorização patrimonial e desenvolvimento de unidades de negócio; mais dados aqui). É aqui que a história dos casamentos e baptizados entra.

Não está em causa, logicamente, os media serem ou não a caixa de ressonância do Governo, mas, como queria discutir há uns dias o Zèd, o 'bom' e o 'mau' jornalismo: praticamente ignorar um programa lançado a nível nacional que me parece ser tão urgente quão consensual para noticiar, em tom quase-panfletário, um pormenor do mesmo parece-me verdadeiramente cómico. É como olhar árvore e ignorar a floresta.

Enfim: quem viu o DN e quem o vê.

P.S. - Já agora: nem vejo onde possa estar a polémica; não anda toda a gente a dizer que é preciso as escolas terem autonomia? pois bem, autonomia significa também ter responsabilidade na arrecadação e gestão dos seus próprios fundos; por outras palavras, a autonomia significa também mais responsabilidade, não apenas mais liberdade - coisa de que muitos proponentes da autonomia das escolas selectivamente se esquecem.

3 comments:

Zèd disse...

Ora muito bem, de facto um excelente exemplo de mau jornalismo. Começa logo na primeira frase. Fico logo dado o tom.
"Mini centros comerciais? Nada disso."

O que faz a notícia são os soundbytes as bizarrarias, os fait-divers. Informação propriamente dita, nada. Não percebo qual seja o problema de ter casamentos e baptizados nas escolas, desde que as activdades lectivas não sofram com isso, é que se é mau então que digam porquê. E pessoalmente até acho muito boa ideia que torneios desportivos e afins tenham lugar nas escolas, nem tanto pelos rendimentos que possam vir daí, mas porque pode ser uma forma de aproximar mais a escola da comunidade.

Tem piada que fales de "os media serem ou não a caixa de ressonância do Governo", porque fazendo mau jornalismo deste até podem estar a fazer um favor ao governo, não são caixa de ressonância mas quase. Notícias destas não abordam vertentes importantes, porventura incómodas para o governo. Por exemplo: "é realista esperar que haja receitas com estas iniciativas?" ou "o dinheiro que o governo avança é suficiente para resolver os problemas?" ou ainda "os prazos são exequiveis?"

Hugo Mendes disse...

"Notícias destas não abordam vertentes importantes, porventura incómodas para o governo. Por exemplo: "é realista esperar que haja receitas com estas iniciativas?" ou "o dinheiro que o governo avança é suficiente para resolver os problemas?" ou ainda "os prazos são exequiveis?" "

Concordo que essas são as perguntas relevantes e centrais num programa como este. Mas duvido que ao apresentar as coisas da forma como o DN o fez beneficie, mesmo que indirectamente, o Governo; o objectivo principal, parece-me, é escandalizar e provocar o sarcasmo, e nesse sentido, potencialmente, aumentar o cinismo dos leitores ("ora vejam só o que estes tipos agora querem fazer!"). E o cinismo - não confundir com a ironia, atenção - é um problema sério da vida pública e política.

Zèd disse...

Sim, é verdade, mas neste caso é a defesa do governo parece-me fácil. Estar a desviar a questão para o acessório em vez de discutir aquilo que (por hipótese) o governo não quer discutir é fazer um favor ao governo.
Mas concordo com o que dizes sobre o cinismo.