terça-feira, 27 de março de 2007

Notas sobre a necessidade de uma política económica concreta

Este post de fundo do Hugo é excelente no que concerne à definição e descodificação dos dois modelos de economia dominantes no pós-guerra (o keynesiano e o neoliberal). No essencial concordo com ele e até aprendi com a sua análise. Parabéns (não é todos os dias que se aprende com um blogger)! Contudo, discordo em relação aos últimos pontos, nomeadamente este:
É por isso que a mudança vai demorar tempo, (...) temos que saber esperar pelo aumento da produtividade; e como esta depende em boa medida do aumento das qualificações, não podemos esperar fazer num par de anos o que não foi feito em vinte. A questão certa e séria, aqui, é saber se as coisas estão a correr na direcção certa.

Esperar que os níveis de qualificação subam generalizadamente para só aí introduzir as verdadeiras reformas que nos levarão à subida da produtividade, ao aumento dos salários e da riqueza nacional, parece-me insuficiente. O Hugo concebe a reforma política como uma espécie de sementeira cuja colheita levará tempo a ser colhida. Parece-me que para além deste tipo de reformas se podem apontar outras que tenham em conta a especificidade da nossa economia. Considero que se do ponto de vista paradigmático faz sentido posicionarmos perante os dois modelos económicos, já ao nível da política concreta estes tornam-se um pouco redutores e excessivamente dicotómicos. Há uma margem de intervenção política que me parece estar a ser descurada pelo Hugo.
A base produtiva da economia nacional assenta em grande medida nas PME’s. O que representa uma desvantagem em termos, por exemplo, de economia de escala, mas também pode significar uma vantagem. Na verdade, no contexto de capitalismo informacional o modelo PME pode ser muito competitivo, na medida em que as empresas são mais flexíveis e mais aptas à mudança. O problema é que a maioria das nossas empresas são retrógradas. No entanto, parte poderá incorporar algum potencial desde que enquadradas por políticas públicas nas quais o Estado pode deter um papel de mediador. O que é que o Estado pode fazer para incentivar o investimento privado particularmente nas PME’s?
1) Mais tarde ou mais cedo o governo terá que de descer os impostos, não há outra maneira de incentivar o investimento. É muito difícil as empresas competirem com as respectivas congéneres internacionais com o IVA e o IRC tão elevados.
2) É fundamental apostar na formação direccionada para as necessidades destas empresas. Aqui o governo tem um papel activo enquanto agente mediador entre a oferta dos centros e das empresas de formação e as PME’s. Em muitos casos estas estão de costas voltadas, há um verdadeiro curto-circuito entre oferta e procura.
3) É imprescindível criar parcerias efectivas entre as empresas mais modernas e as universidades de modo gerar factores competitivos de inovação. No actual estado de coisas nem as empresas, nem as universidades tomarão a iniciativa de implementar essas parcerias. É necessário proporcionar o ambiente material e institucional capaz de gerar tais sinergias de forma generalizada.
4) Muitas das políticas públicas deverão ser capazes de imergir na realidade concreta (aquilo que certo pensamento económico tem designado por embeddedness) e deter um papel potenciador ao nível da produtividade de maneira a criar condições para o bom investimento, para a formação aplicada ao contexto e para a inovação gerada pela sinergia entre diferentes parceiros organizacionais.
Tendo por base estes pontos, talvez o Hugo responda dizendo que isto já está a ser feito, ou que é intenção do governo fazê-lo, ou que é tudo uma questão de articulação e cosmética política. Mas concretamente acho que o governo ainda não foi capaz de incorporar esse papel de mediador (que é mais do que regulador), como não produziu os canais e os instrumentos necessários para o fazer devidamente. É esta perspectiva de um Estado próximo do concreto e do terreno, dando, no entanto, espaço necessário para os agentes funcionarem em autonomia, que falta à visão do Hugo. O Estado não deve só lançar as boas sementes e gerir os mínimos (sobretudo através do controlo orçamental) até que estas dêem frutos. Na minha perspectiva, o Estado deve imergir-se na economia concreta e fazer algumas enxertias de modo a que as árvores cresçam mais rapidamente e autonomamente. Estes são os traços fundamentais para uma política económica de esquerda.

5 comments:

Hugo Mendes disse...

Renato, obrigado por este post, acho que assim o debate fica mais tranquilo mas também mais profícuo.
Eu não discordo de nenhum dos teus pontos (o Ministro das Finanças concorda mesmo do teu ponto 1, dado que já prometeu começar a descer os impostos a partir de 2009, que é quando se pensa que a estabilidade orçamental pública pode vir a estar garantida); todos eles me parecem sensatos e necessários.
Acrescentarei apenas algumas coisas, algumas delas apontando para questões dilemáticas:
1) Temos que perceber se queremos concorrer na economia internacional pelos impostos baixos ou pelos impostos altos. A competição pelos impostos baixos parece ser a mais natural, sobretudo quando a competição pelos impostos altos parece suicida. Mas não é: e não o é se a produtividade for alta. Por isso é que o modelo nórdico ainda pode sobreviver nos dias de hoje, mesmo com taxas de fiscalidade próximas dos 50%. Mas a produtividade ser alta é uma condição a priori. No nosso caso, porque ainda vai demorar muito tempo a chegar a esse nível de eficiência económica, teremos provavelmente que durante uns tempos baixar os impostos para permitir o salto. Mas é importante saber qual é o objectivo de uma política destas: par aa esquerda, baixar os impostos é um meio, não é um fim. O fim é permitir que eles possam subir, sendo que essa subida corresponde a um upgrade da nossa capacidade produtiva e comercial.

2) Baixar os impostos vai causar problemas ao Estado social: é absolutamente importante que a esquerda saiba disto. E é importante que é para não pedir que se baixem os impostos num dia, para vir dizer que se está a caminhar para a destruição do Estado social no outro. Em rigor, até nem é necessário que isto aconteça de forma linear e inequívoca, se conseguirmos baixar os impostos aos "pequenos" e aumentar os impostos aos "grandes", tornando o modelo mais redistributivo. Mas a margem de manobra para reforma fiscais muito progressista, nos tempos de hoje e no estado actual do nosso modelo de desenvolvimento, é extremamente "slim". Será preciso muito jogo de cintura e capacidade arbitral para fazer uma reforma fiscal sustentável, que anime a economia mas permita ao mesmo tempo colocar os nossos índices de protecção social mais próximo dos europeus - ou pelo menos não os ver regredir, o que seria catastrófico para um país com o nível de pobreza e desigualdades como o nosso. As fragilidades estruturais aqui são muitas, e é imperioso agir com pinças.

3) Eu acho que os pontos 2, 3 e 4 de que falas estão a orientar uma série de medidas a vários níveis. Todos eles são muito importantes, e gosto em particular da ideia do Estado próximo do terreno. Mas há aqui uma questão que é mais complicada e não se resolve apenas com medidas legislativas. São problemas de cultura de políticas públicas e de contratualização de responsabilidades, a par da competência divergente dos diferentes parceiros para assumir responsabilidades no terreno. A nossa ordenação jurídica está cheia de optimas leis. O problema nem sequer está aí; o problema é quando as leis passam à fase de aplicação, ao tal concreto, e os problemas de desreponsabilização ou, inversamente, de invasão do que são tarefas do parceiro, podem deitar tudo a perder. Tu referes que:
"O Estado não deve só lançar as boas sementes e gerir os mínimos (sobretudo através do controlo orçamental) até que estas dêem frutos. Na minha perspectiva, o Estado deve imergir-se na economia concreta e fazer algumas enxertias de modo a que as árvores cresçam mais rapidamente e autonomamente"

Não há problema nenhum em teoria com isto, mas a questão é que muitas vezes o Estado não sabe agir tão próximo do concreto e depois põe a pata em cima da semente em vez de deixar crescer. Há aqui dois problemas: um é de cultura (e competência o exercício) de políticas públicas e do que o Estado deve ou nao fazer; sem dúvida que precisamos de em muitos campos dar mais iniciativa aos agentes económicos e deixar de andar com eles ao colo, porque corremos o risco de eles nuinca crescerem e ganharem autonomia; o outro problema é epistemológico: é que o Estado, ou os seus agentes, não têm o conhecimento que só os actores locais podem ter. Podes dizer que esse conhecimento pode ser maior se fizerem o trabalho de casa e evitarem tiques centralistas; de acordo. Mas o Estado, mesmo o mais competente e cohnecer do local, não se pode substituir aos agentes. Eu sei que não é isto que defendes, mas é o risco que muitas vezes acontece quando o Estado quer fazer demais pela semente: enterra-a bem fundo em vez de a deixar florescer.
Mas isto são nuances; importantes, mas nuances (embora saibamos que é por vezes por detrás delas que se esconde o diabo nestas coisas). O Estado deve mediar, mas mediar com competência. E para isso precisamos de uma nova cultura de administração pública, com menos preconceitos contra a acção privada, mas isso é outra história.

P.S. - "Esperar que os níveis de qualificação subam generalizadamente para só aí introduzir as verdadeiras reformas que nos levarão à subida da produtividade, ao aumento dos salários e da riqueza nacional, parece-me insuficiente".

Neste ponto não me parece que tenhas muita margem de manobra. Antes do mais, as verdadeiras reformas não serão introduzidas depois dos níveis de qualificação - dado que estes não sobem automaticamente ao ritmo necessário(como temos observado nas ultimas décadas), as verdadeiras reformas começam já aqui, no acelerar deste processo; quanto ao resto, não vale a pena pensar que podemos aumentar os salários de forma desligada da produtividade; como escrevi no post do "lado b", isso é o caminho para o desemprego e para a inflação (ou seja, a combinação de é feita a "estagflação"). Não quer dizer que não haja ajustes pontuais a fazer e uma pequena margem de manobra; como também referi algures, foi negociado um aumento progressivo do salário minimo comos parceiros sociais até 2009, ano em que tocará os 500 euros. Isto é um bom acordo, mas, quanto a mim um acordo arriscado, de que depende uma melhoria sustentada da produtividade e do crescimento da economia. É um desafio, devemos encará-lo como tal. Mas não é a solução milagrosa.
Por isso discordo que as verdadeiras reformas só começam depois do aumento das qualificações e da produtividade: as verdadeiras reformas são, antes, as que a elevam ao ritmo mais acelerado e sustentado possível. Mas, mesmo assim, vai demorar sempre algum tempo - para muita gente, bastante tempo ou tempo demasiado. É esse o custo do tempo perdido no passado - na educação, na modernização da economia, na não liberalizaçao de certos sectores onde a presença do Estado não se justifica, etc. etc.

Hugo Mendes disse...

Deixa-me só acrescentar uma coisa:

O que escrevi, em termos do tempo que precisamos para aumentar as qualificações e a produtividade, é a partir de uma perspectiva de esquerda, que é a mais exigente nesta matéria. À direita, a solução é sempre mais fácil e mais rápida: basta baixar os impostos e encher o país de capital estrangeiro, um pouco como fizeram com a Irlanda (ainda que com um estrutura de qualificações que lhe permitia isso; nós não podemos ser uma Irlanda número 2 de um dia para o outro, mesmo que o dr.António Borges quisesse). Ora, isto seria fácil e rápido, mas levaria a uma subida das assimetrias sociais, porque elevaria a pressão sobre os o emprego e os salários do trabalho do desqualificado, e com os buracos e fragilidade da nossa rede de protecção social, o choque seria fortíssimo para a camada mais desprotegida da população. Mas traria vantagens para as classes altas e média-alta, sem dúvida: com a consequência de uma maior dualização da sociedade, pelo menos no mais breve prazo - e partindo do princípio que depois, no futuro, seríamos capazes de fazer uma reforma fiscal que redistribuisse os lucros entretanto gerados.
Resumindo: quem, ao nível das classes médias e altas, quer soluções mais rápidas que à esquerda, pode bem apoiar o PSD e o seu putativo programa de choque. O choque ia deitar a abaixo uma série de gente que por agora se aguenta na corda bamba; mas seria bom, por exemplo, para o tal desemprego qualificado, porque traria investimento estrangeiro. à esquerda, e para pegar na tua imagem do desenvolvimento a várias velocidades, é bem mais difícil fazer as coisas agindo nos vários pontos da estrutura evitando que ela se parte, e tentando que ela robusteça aos poucos. Mas, realisticamente, isso não chega para fazer nesta legislatura; é um programa que só pode ser levado de forma cabal na próxima. Para já, a prioridade é por as finanças públicas em dia.

CLeone disse...

Apesar de tocarem repetidamente no ponto da Justiça, quer explicitamente quer ao falar de dualidade, regionalização, etc., esta discussão parece(-me) muito económica, apesar de a discordância não ser demasiada, e pouco social, no sentido de não focar o papel que o sistema de Justiça tem (perverso) em Portugal, quer na vida especificamente económica quer na vida social em geral que a enquadra (educação, p. ex.). E, tanto ideologicamente como na concepção de políticas específicas, a divisão Direita/Esquerda no seu sentido mais forte, não partidário mas sociológico, far-se-á em Portugal mais pela visão e relação com a Justiça do que pela abordagem a nível de Economia, quer-me parecer. Ainda que muitas vezes de forma tácita.
(Da demagogia à «Esquerda do PS»,como se o PS recebesse lições de Esquerda de leninistas, nem vale a pena falar, basta ver a posição do PCP sobre a participação de POrtugal na UE, aliás apenas mais audível do que a retórica do BE...)

Hugo Mendes disse...

Carlos, a questão da justiça - seja nas questões sociais como nas de eficácia económica: aqui está mais um obstáculo a uma maior produtividade, algo que o Daniel já tinha sublinhado algures lá atrás num comment a outro post - é sem dúvida muito importante, mas receio não ter percebido completamente o ponto de ligação À questão da divisão esquerda/direita. Podias escrever algo mais longo para apanharmos também essa "costela" da discussão.

Daniel Melo disse...

Só agora pude voltar às leituras postísticas. Excelente post, Renato, estás em forma!
Vais aqui e ali, e acolá, pegas nas pontas e dás os nós certos.