terça-feira, 27 de março de 2007

O bolo, as fatias, e a faca

Os tempos não estão fáceis para uma política amplamente redistributiva em Portugal. Se conseguirmos que as desigualdades entre os extremos não aumentem já é capaz de não ser mau. Mas a função pública podia dar um bom exemplo. Aliás, não sei porque é que uma prática deste género não é defendida (já nem digo posta em prática) há mais tempo: em vez de os funcionários públicos verem o seu salário sofrer um aumento indexado a um mesmo valor percentual, o Governo e os sindicatos podiam perfeitamente, para o mesmo bolo, tentar chegar a um acordo para instituir um esquema progressivo. Por exemplo, em vez de serem todos aumentados em, imagine-se, 1,5%, os "pequenos" podiam ser aumentados em 2,0% e os "grandes" em 1% (como dizia o outro, depois era fazer as contas). Será que as aristocracias sindicais aguentavam semelhante radicalismo? :)
Ou, para citar o bom do G.A.Cohen, If You're an Egalitarian, How Come You're so Rich?

4 comments:

Ricardo disse...

Caro Hugo,

Em vez do esquema que propões - que pode ser usado em casos radicais de desigualdades por um tempo limitado - preferia que o salário estivesse indexado à produtividade - nos casos em que é quantificável - ou ao resultado final duma avaliação horizontal e vertical - nos casos em que não é quantificável. A redistribuição visa distribuir os riscos - sociais, de saúde, entre outros - mas não é justo não entrar com outros critérios nos aumentos ou numa componente variável do salário de determinado ano.

Abraço,

Hugo Mendes disse...

Caro Ricardo,

Os esquemas não são incompatíveis. Podes ter uma fracção indexada à produtividade, independentemente de como ela é avaliada.

Discordo firmemente quando dizes:
"A redistribuição visa distribuir os riscos - sociais, de saúde, entre outros - mas não é justo não entrar com outros critérios nos aumentos ou numa componente variável do salário de determinado ano."

Esta é versão, parece-me, extremamente restrita do que pode contar como critério de justiça na redistribuição. A redistribuição, como eu a entendo, não visa apenas redistribuir os riscos (há-os de diversa índole), mas efectivamente reduzir as desigualdades, não aceitando reduzir o valor do indivíduo ao mero velor do mercado de trabalho. No caso de contemplarmos apenas a produtividade, então estamos a reduzir o indivíduo ao valor de mercado das suas competências e do seu desempenho (mais ou menos eficiente) no uso das mesmas. Aliás, não há garantia nenhuma que este teu esquema redistributivo indexado exclusivamente à produtividade contribuísse para diminuir as desigualdades: em tempos em que o valor de mercado do trabalho não qualificado é muito baixo (e vai continuar a baixar), indexar a redistribuição à produtividade pode efectivamente levar - e sancionar - um aumento das desigualdades.
Portanto a redistribuição sempre foi justificada a partir de outros critérios "políticos" e não estritamente económicos.
Por ex., o critério de que os "grandes" precisam do trabalho feito pelos "pequenos" para a sociedade a que todos pertencem - o que Marx chamava,noutros tempos, a socialização do trabalho - funcionar fluidamente continua-me a parecer um critério importante para justificar a redistribuição. E já para não entrar com justificações claramente políticas, como as que se prendem com questões de cidadania.
Este é um debate importante nos tempos que correm e quando a redistribuição fica cada mais sensível a justificações de carácter económico. Elas são válidas, mas, na minha óptica, não podem ser as únicas.

Abraço
Hugo

Ricardo disse...

Hugo,

Apenas um esclarecimento. Eu não defendi que os salários indexados à produtividade, pelo menos numa parte variável do ordenado que podia ou não ter efeitos no ano seguinte, resolvia os problemas da redistribuição. O que defendi é que, para mim, na função pública, seria uma melhor notícia que isso acontecesse ao invés do que estavas a sugerir.

Os aumentos globais em percentagem diferenciados por nível de rendimento só são defensáveis, na minha perspectiva, em situações em que a redistribuição não garante o mínimo de dignidade (Guterres fez isso, por exemplo, com as pensões). Mas é uma medida conjuntural que nem pode ser duradoura nem vai resolver os problemas estruturais.

Falei em distribuição de riscos por uma razão muito simples. Duas pessoas iguais, suponhamos com salários iguais, podem ter, por exemplo, "sortes" diferentes em termos de saúde. Imagina que um, em toda a sua vida, raramente fica doente e o outro está sempre doente com tratamentos dispendiosos. Redistribuição é distribuir os riscos à partida e assim os dois têm direito a saúde universal apesar de um "perder" e o outro "ganhar" com este acordo no final.

Distribuir riscos é o fulcro da questão (e noutras áreas, desemprego, invalidez, entre muitos outros) para garantir um mínimo de dignidade. Mas já há um esforço absoluto diferente entre quem ganha pouco e quem ganha muito (esforço percentual) e não podemos cair na tentação de duplicarmos esse esforço distorcendo o valor que o mercado estabelece para cada função via redistribuição. Isso cria ineficiência e já há outros mecanismos na área do trabalho que visam um mínimo de dignidade (condições no local de trabalho, salário mínimo). Por isso apenas defendo a redistribuição que sugeres em situações excepcionais e transitórias e, repito, preferia que a função pública começasse era a ter critérios de produtividade indexados à remuneração.

Abraço,

Hugo Mendes disse...

Olá Ricardo,

Na função a nova reforma contemplará, em princípio, uma fracção indexada à produtividade. Portanto, essa questão estará garantida no futuro próximo.

Não discordo minimamente da questão da distribuição dos riscos. Mas eu não me estava a referir a serviços particulares (saúde, educação, protecção social), estava-me a referir ao salário. Nem discordo dos esforços urgentes em situações onde é imperiosos colmatar buracos na protecção social (como o caso que referiaste das pensões).

Mas a questão é que a minha justificação é cariz diferente da tua. A minha justificação é mais "política" e a tua respeita mais a lógica "económica" (não há aqui moralismo nenhum, como espero que calcules). Para voltar ao meu primeiro comentário, o meu objectivo é a diminuição das desigualdades (que é precisamente o mecanismo que garante um mínimo "levelling of the playing field" intra- e inter-geracional) e não apenas a redistribuição dos riscos. Ou melhor: a segunda é apenas um meio para o fim primeiro.
É essa a lógica dos acordos colectivos de trabalho que, para além de distribuírem riscos (como bem dizes), aproxima (ou distanciam) categorias de trabalhadores em função de critérios políticos ou sociais, independentemente, de forma, parcial, da sua produtividade individual/colectiva marginal.

Isto pode ser perfeitamente enquadrado na questão que referes sempre como âncora justificativa, que é a da "dignidade mínima". Sabes tão quanto eu que este conceito é infinitamente elástico. A dignidade mínima há 50 anos tem pouco a ver com a de hoje. Por isso é que não pode ser vista em abstracto, mas está precisamente indexada, do ponto de vista filosófico e político (antes do económico), ao bem estar da sociedade em geral. A dignidade mínima pode perfeitamente colocar a garantia de que um funcionário não possa 10 ou 15 vezes menos do que outro (critérios quase sempre, vais concordar comigo, definidos tendo em conta tudo, mas mesmo tudo menos a produtividade dos mais bem pagos: são questões, as mais das vezes, simbólicas ou outras do género, as que determinam, por exemplo, os salários dos gestores púlicos). E a compressão salarial sempre foi a imagem de marca das economias social-democratas nórdicas. Em causa não estava - pelo menos a partir de um certo grau de desenvolvimento, rapidamente atingido aliás pelas suas dinâmicas economias pós-1945 - tirar os trabalhadores menos bem pagos da pobreza; o objectivo era a manutenção da solidariedade intra-classista. Esse para mim é um critério muito importante.

Quanto às ineficiências que este tipo de medidas podem causar no funcionamento do mercado de trabalho, etc., concordo contigo que devem ser sempre bem monitorizadas.