quarta-feira, 28 de março de 2007

Multiculturalismo (II) - Os heróis que vêm da banlieue

Há quem ache que a política francesa de integração falhou, eu não. Acho que não sendo excelente foi até bastante boa, e estou a falar dos últimos 30-40 anos. A par de alguns erros, nomeadamente de urbanismo nas periferias das grandes cidades, as banlieues, a França é hoje um país multicultural e cosmopolita. Talvez por essa integração ter realmente acontecido, mesmo contra a vontade de uma parte da população conservadora e reaccionária, a extrema-direita tenha hoje algum peso político. Aliás o principal perigo de uma eventual eleição de Sarkozy é precisamente o mais que certo retrocesso nessas políticas de integração, e as tensões sociais que isso vai causar. Coincidência ou não duas das figuras públicas, ou talvez mesmo AS duas figuras públicas fora do mundo da política que mais oposição têm feito a Sarkozy nos últimos tempos (leia-se 1-2 anos) são dois exemplos de sucesso da integração, dois "heróis" saídos da Banlieue: o futebolista Lilian Thuram e o comediante Jamel Debbouze.

Lilian Thuram é "só" o jogador com mais internacionalizações da história do futebol francês, e continua aí para as curvas, depois de ser campeão mundial e europeu, ter ganho tudo na Juventus, aos 34 anos ainda joga no Barcelona e na selecção francesa. No fim-de-semana passado foi - finalmente - capitão de equipa no jogo contra Lituânia. Lilian Thuram é francês nascido nas Antilhas, mais precisamente na Guadeloupe, mas veio para a metrópole ainda com 9 anos, e começou a carreira nas camadas jovens do clube "Portugais de Fontainebleau". Mas Thuram é mais que o seu futebol, é membro do Alto Conselho para a Integração, e toma posições políticas geralmente com bastante impacto. Quando estava na ordem do dia a crise dos sans-papiers de Cachan, numa atitude simbólica ofereceu-lhes bilhetes para irem ver o jogo França - Itália (contei a história aqui), ou a seguir ao campeonato do mundo deu uma entrevista de fundo ao InRockuptibles (a provar a sua inteligência, mostra que conhece o seu público alvo) em que lançou a expressão "La Sarkoïsation des esprits", como referiu na altura o peão Hugo. Quando Thuram fala em público, Sarkozy ressente-se.

Jamel Debbouze é um comediante hilariante, é o descendente de imigrantes de sucesso, árabe nascido em Paris de família marroquina, passou até uma parte da infância em Marrocos. Começou a carreira da radio, passou para a televisão e para o cinema ("O Fabuloso destino de Amélie Poulain", "Astérix e Cleópatra", "Angel-A", etc...). O talento não é só como comediante, mas também como produtor, foi co-produtor do filme "Indigènes" nomeado para os óscares e produz vários jovens comediantes. Jamel não esquece de onde vem, e os comediantes que tem lançado vêm do mesmo meio que ele, o caldo cultural da integração francesa. O seu espectáculo mais recente "Jamel Comedy Club" é um show de "stand-up" em que participam os mais novos talentos que Jamel está a lançar, vindos das banlieues, oriundos das mais diversas origens culturais, o que o Libération chamou "Jameltting Potes" (fantástico jogo de palavras). Naturalmente a sua vivência das banlieues, e o tal caldo de cultura é um dos temas, senão o tema que mais usa para fazer humor. Outro tema é Zidane, com quem Jamel tem uma relação especial, Jamel marcou um golo no jogo contra a pobreza a passe de Zidane, e já lhe fez uma declaração de amor em cena (não é preciso perceber o que diz Jamel, veja-se a reacção do público e de Zidane). Fica aqui para amostra um vídeo em que Jamel relata um golo de Zimzou - perdão - Zizou, podem ver o referido golo no fim para comparar.


9 comments:

Hugo Mendes disse...

"Há quem ache que a política francesa de integração falhou, eu não. Acho que não sendo excelente foi até bastante boa, e estou a falar dos últimos 30-40 anos. A par de alguns erros, nomeadamente de urbanismo nas periferias das grandes cidades, as banlieues, a França é hoje um país multicultural e cosmopolita"

Isto um julgamento sério e complicado! Eu continuo a pensar que há uma série de perversões e resteiras nestas coisas: imagina agora um exemplo fictício: tens 99% dos elementos pertencendo uma minoria étnica no decil mais pobre da população. E depois tens uma estrela de televisão e jogador de qq coisa conhecido de todo o mundo. O facto de te agarrares aos "heróis" não pode escamotear o resto. O caso francês não será tão grave como o meu exemplo fictício, mas a questão dos banliueus é mais grave do que pareces conceder; porque a residência dita a escola a que se vai, que por sua vez vai estar atulhada de problemas sociais e economicos, que vai ser um ghetto escolar reprodutor do ghetto urbano, que vai limitar abissalmente as perspectivas de vida daqueles jovens e por aí em diante. Resultado: tu não tens hoje em França uma classe média com representação "decente" de magrebinos, outros africanos, etc. (como a geração Kennedy-Johnson conseguiu, através de políticas de affirmative action num curto espaço de tempo, construir nos EUA; mas o processo foi demasiado curto no tempo para ter um efeito mais sustentado). Se não estão todos no tal ultimo decil da distribuição económica, não devem andar lá muiito longe. Conclusão: sim, a sociedade pode ser multicultural, mas lá está: o meu medo é que as pessoas se esqueçam que o multiculturalismo é compatível com os ghettos urbanos, escolares e económicos.

Hugo Mendes disse...

Para completar a última frase do comment anterior: não me parece que seja total coincidência que o multiculturalismo, como "ideologia", tenha inicialmente emergido nos países com mais altos índices de desigualdade económica (falo do grupo dos mais ricos do mundo, claro): EUA e Reino Unido.

Zèd disse...

Um julgamento sério é de facto complicado. Acho no entanto que a situação em França é bastante melhor do que se pinta.
Claro que os exemplos podem ser excepções, mas por exemplo uma amiga francesa o comentário que fez quando lhe falei do que escrevi foi "e dás apenas dois exemplos, com tantos que há para aí?". Parece-me mais provável, por uma questão de lógica probabilística, que estes casos sejam um reflexo de uma boa integração, porque quanto melhor é a integração maiores são as probabilidades de encontrar casos de sucesso vindos das minorias étnicas. De qualquer modo o meu post não tem tanto por objectivo ter representatividade estatística como fazer o elogio das duas figuras mencionadas. E sobretudo o meu post é mais sobre o multiculturalismo mais do que sobre os problemas socio-económicos das banlieues. Mesmo sabendo que todas estas coisas estão obviamente ligadas. Longe de mim dizer que a integração é um problema resolvido, um assunto encerrado, pelo contrário, há ainda trabalho para fazer.
Mas ainda assim deixo algumas notas em defesa do modelo de integração francês.

Convém não confundir Banlieue com Gueto, há Guetos nas Banlieues (os erros urbanísticos que mencionei no post), mas nem todas as Banlieues são Guetos. Na Banlieue que conheço melhor há aliás um classe média de antilheses, árabes, judeus, portugueses, e franceses metropolitanos (ou brancos, como preferirem). Era interessante conhecer um bocado mais da demografia da Banlieue, que não conheço (de qualquer modo há determinadas estatísticas, nomeadamente sobre o aspecto racial/étnico que são proibidas em França por serem consideradas discriminatórias). Há uma parte da população de minorias étnicas, que vive na Banlieue, mas estão integrados na sociedade francesa, e conseguiram alguma progressão social.

Outro aspecto que é complicado analisar é a parte que se deve ao factor "minoria étnica" e aquela que se deve simplesmente ao factor económico. Os imigrantes quando chegam, uma grande maioria é à partida de classes probres, chegam "com uma mão à frente e outra atrás". Claro que vão engrossar as classes desfavorecidas não por pertencerem a uma minoria étnica, mas simplesmente porque esse é o ponto de partida. Nesse caso o problema é essencialmente económico, tal como é a solução, e pode haver uma tendência para confundir as causas devido à correlação entre as duas coisas (este não é um problema exclusivamente francês).

Também é preciso ver que em França e particularmente na região de Paris, há uma certa "discriminação geográfica", quanto mais perto se está do centro mais oportunidades se tem, particularmente no acesso ao ensino. Mais uma vez há uma correlação entre o factor socio-económico e factor étnico-racial, mas o factor determinante é socio-económico, quanto mais rico se é mais perto do centro se pode viver. Isto não é per se um falhanço da política de integração.

Na vivência cotidiana também tenho a impressão que há uma boa integração das minorias, particularmente num certo mercado de trabalho de classe média; na função pública e no comércio por exemplo, mas claro que ainda não nas posições de topo.

Sim, e é verdade que uma sociedade pode ser multicultural e haver discriminação ao mesmo tempo, mas no caso francês foram feitos muitos progressos desde que as primeiras vagas de imigrantes chegaram.

Hugo Mendes disse...

Tens razão em algumas de "minor corrections" de relevo:

- haverá mais casos, eventualmente muitos casos, de "heróis";
- banlieues e ghettos não são uma e a mesma coisa.

E eu acrecento uma major correction ao que disse, não porque tenha dito o contrário, mas porque é preciso ser explicitado: é que nenhum país, seja de tradições republicanas (como a França), seja de tradições liberais (como o EUA ou o Reino Unido), onde a ideologia do multiculturalismo nasceu e creceu antes de "emigrar" para outras paragens tem um modelo de integração das minorias étnicas que se possa gabar como sendo de "sucesso". Todos estão com problemas sérios e não seria injusto concluir que ninguém sabe muito bem o que fazer com a questão, porque o cobertor é curto demais para o tamanho do "corpo". E o "corpo" na metáfora aqui é o bem-estar objectivo e subjectivo tanto dos elementos das minorias étnicas como da população nacional do país em causa.
Vejamos uma coisa: o desemprego e a ausência de qualificações na população jovem das minorias é superior, nalguns casos muitíssimo superior por comparação à população nacional. Podemos agora estar a discustir o caso X ou o caso Y, ou ideias baseadas em impressões quotidianas. É verdade que o ponto de partida de muitos que chegam com uma "mão à frente e outra atrás" é muito baixo, mas o problema já nem é esse agora. Os que chegaram sabe Deus em que condições eram os pais dos miúdos que hoje ninguém sabe muito bem como integrar. Os pais, na sua época, conseguiram encontrar emprego, uma casa, trouxeram a família, etc., i.e., conseguiram alguma estabilidadade familiar, profissional e financeira que foi entretanto qubrada com a crise do início dos anos 80 e que afecta, desde o berço, a geração que hoje tem 20 anos, mais coisa, menos coisa.
E eu concordo contigo em absoluto que "entre o critério factor socio-económico e factor étnico-racial, mas o factor determinante é socio-económico"; mas é por isso mesmo que eu acho que o multiculturalismo é, em certo sentido, do ponto de vista da emancipação sócio-económica destas pessoas, uma não-solução, uma não-resposta ao problema. Dir-me-ão que ajuda à afirmação identitária, ao reconhecimento pela sociedade francesa do "outro" e ao elogio da diversidade. Eu não tenho nada contra estes processos e acho-os saudáveis e naturais nos tempos que correm. Mas isso não chega, e acho que a partir de um certo ponto pode ser um gasto de energia políticas e simbólicas (que, como tudo na vida, são finitas) atribuir tanta importância a esta questão em detrimento da clasura sócio-económica que vai decorrendo sem que nada inverta efectivamente o processo (isto já para não falar na clasura cultural que o multiculturalismo tantas vezes legitima e acentua nas pessoas pertencentes às minorias étnicas; eu sou da opinião que o nosso universalismo devia permitir a essas pessoas romperem, se quisessem, com essas raízes e construir a sua liberdade e autonomia de forma emancipada às raízes culturais de partida em vez de alimentarmos o reforço destas, mas isso é outra via do debate, e que eu acho que devíamos também levar a sério: a minha chamada de atenção outro dia para a notícia sobre o casal muçulmano na Alemanha e da juíza que evocou o Corão para legitimar a prossecução de um caso de violência doméstica afigura-se-me como o pior que o multiculturalismo pode representar do ponto de vista normativo nas nossas sociedades que devem, convém lembrá-lo, privilegiar o indivíduo, não as culturas. O indivíduo é depositário de direitos; as culturas não devem ser - e isto a bem da autonomia individual).

Zèd disse...

"o multiculturalismo é, em certo sentido, do ponto de vista da emancipação sócio-económica destas pessoas, uma não-solução, uma não-resposta ao problema."

Simplesmente é um problema diferente, ainda que esteja relacionado. Trata-se de uma questão de valores, de cultura, como por exemplo os direitos dos homossexuais, ou muitos outros que não estão necessariamente ligados ao problema económico (e é a questão sobre a qual quis escrever no post).

A "clasura cultural que o multiculturalismo tantas vezes legitima e acentua nas pessoas pertencentes às minorias étnicas", é a antitese do multiculturalismo tal como eu o vejo, e o tal exemplo da juiza alemã é o anti-multiculturalismo, pelo menos o que eu defendo. Revejo-me muito mais (digo completamente) no discurso do Gilberto Gil quando defende a miscigenação como a solução para os problemas do mundo.

No resto estou de acordo com os teus comentários.

Victor disse...

Zed, com muito atraso.
1) O Thuram deu uma entrevista à revista Esprit ha pouco num numero sobre "Antilles" : http://www.esprit.presse.fr/review/article.php?code=13967.
2) Parece-me pouco oportuno falar de integração e pegar o caso do Thuram. Thuram é francês, os seus pais, avôs, etc, etc. são franceses. A Guadeloupe é francesa desde o século XVII. Por isso, pode-se falar de integração no caso do Debouzze ou do meu (filhos de imigrantes) mas não do Thuram.
3) Eu também acho que a integração "acontece". Os imigrantes e sobretudo os filhos deles fazem parte da sociedade francesa. Mas não acredito que isso seja o resultado duma boa politica de integração, pelo menos duma politica de integração espicifica para essa população (no caso da escola, ela deve integrar todas as crianças e não somente os filhos de imigrantes).
4) Mas apesar disso, concordo contigo. Não ha um problema da integração como uma parte da direita repete sempre mas ha, acho eu, um problema de racismo e de discriminação.

Hugo Mendes disse...

Victor, para além de concordar contigo com a questão do racismo e da discriminação, qual é o critério - mas esta pergunta é também para o Zèd - usado para saber se há boa integração dos emigrantes? Creio que só podemos responder a uma pergunta tão vasta quanto este se tivermos critérios - e indicadores - bem definidos.

Victor disse...

Boa pergunta.
Eu não gosto muito do termo integração que tenta muitas vezes pôr os problemas do lado dos imigrantes e não da sociedade no seu geral.
Não são somente os imigrantes que devem integrar-se à sociedade mas a sociedade que deve integrar os imigrantes, dando as oportunidades e tratando-os como iguais.
E o termo integração não deve ser exclusivamente empregado com os imigrantes. Também ha problemas de integração de nacionais como antigamente os operarios e agora as elites que vivam numa espécie de separatismo (cf. Eric Maurin) social e geografico.
O outro problema em França é que muita vez confunde cor da pele e religião e integração. Por exemplo, muitas pessoas acham que os portugueses estão bem integrados, sendo até um exemplo de integração. Nisso tenho muitas duvidas. Muitos portugueses falam um francês aproximativo, não votam nas eleições municipais, não são sindicalizados, querem viver parte da reforma em Portugal. E são os imigrantes que menos pedem a nacionalidade francesa (tb porque não precisam, tendo a cidadania europeia, podem ficar em frança sem temer uma expulsão). Mas, muitas pessoas pensam que os argelinos são o exemplo da ma integração. ora, muitos argelinos querem tornar-se franceses, sabem muito bem o francês (passado colonial), etc., etc.
Por isso como saber se ha boa integração dos emigrantes ?
Acho que os critérios devem focar a participação no espaço publico (como o voto, a participação no movimento associativo e politico, a inserção no mercado de emprego). Mas muitas vezes penso que é uma ma questão que pretende sempre mostrar as diferenças dos "outros", em contraponto com o "nos"

Zèd disse...

Victor,
A escolha do Thuram sendo francês há muitas gerações é propositado para dar dois exemplos diferentes de integração. A questão da integração também se põe em relação aos migrantes, porque também os há nas banlieues. Nem de propósito está em cartaz (em muito poucas salas) um documentário sobre as migrações do ultra-mar francês para a metropole: "L'avenir est ailleurs". Fala em particular do BUMIDOM, um gabinete governamental que organizou migrações em grande escala para a metropole para empregos mal-pagos, o que originou problemas semelhantes àqueles gerados pela imigração. Além disso os antilheses (e outros orinudos dos DOM-TOM) são também vítimas de racismo como os estrangeiros, portanto a questão da integração também se coloca.

Quando falei em integração a intenção foi falar em integração das minorias, não apenas imigrantes.

Hugo,

há de facto vários critérios possíveis para aferir a integração. Como falo de multiculturalismo, falo de integração cultural, falo do respeito e tolerância em relação a culturas diferentes, e mesmo aceitação dessas culturas como integrantes da vida social de um pais. Nessa aspecto tenho a impressão, e por isso dou estes dois exemplos, que em França essa integração é relativamente bem sucedida. Para o bem e para o mal a tradição colonial francesa sempre foi uma tradição de assimilação de outras culturas à francesa, o que permite uma certa forma de integração. Se falamos na integração socio-económica, a integração das minorias no mercado de trabalho e no sistema de ensino por exemplo, então a integração não é talvez tão bem sucedida (seguramente, diria eu). Mas voltamos à questão de saber se é um problema de integração de minorias ou simplesmente um problema de pobreza. Os problemas dos imigrantes e migrantes pobres são os mesmos problemas dos franceses (metropolitanos) pobres, é uma questão e integração tanto como é uma questão económica.