"Não é fácil decifrar este mistério. Mas uma das pistas possíveis é a de que os zénites da oposição e do apoio ao Governo - até pela sua permanente e perturbadora simetria - decorrem do vazio de referências e valores sólidos a que chegou a vida política portuguesa. Um vazio que o Governo socialista tem sabido explorar, ocupando quase todo o terreno ao centro e à direita e deixando para a sua esquerda - uma esquerda radical e sem vocação governativa, dividida entre o PCP e o Bloco - o território restante. Essa deslocação territorial é, aliás, também confirmada pelas sondagens: enquanto toda a direita - PSD e CDS - continua a cair, as várias componentes da esquerda - PS, PCP, Bloco - vão-se reforçando.
Mas o apoio cada vez mais explícito da direita mais avisada e pragmática (com a bênção solene do Presidente da República) à «via reformista» do Governo não só torna redundante e até anedótico o papel da direita parlamentar e respectivos partidos (seja com Marques Mendes ou sem ele, seja com Ribeiro e Castro ou com Paulo Portas) como coloca também um grave problema identitário ao PS, enquanto partido da esquerda moderada. Não é apenas a direita que se debate hoje com um vazio programático - que o déjà vu dos soundbytes de Portas não conseguirá iludir. É também o lugar da esquerda social-democrata que corre o risco de ser esvaziado, reduzindo o PS a um mero suporte decorativo do pragmatismo governamental. Entre o zénite das manifestações da esquerda de protesto e o zénite da popularidade de uma esquerda de poder que retirou utilidade política à direita, que espaço ficará?"
Vicente Jorge Silva
(«Zénite e vazio», DN, 7/III)
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21 comments:
«Se quer dizer que em cada época a política tem os seus mistérios, dou-lhe toda a razão. A literatura que tratava a arte da política como uma ciência oculta floresceu na época do absolutismo, quando, devido aos frequentes conflitos entre autoridade civil e religiosa e devido também à decadência da teologia, já não era útil nem cómodo insistir em fazer provir a soberania das mãos de Deus. Não podendo porém substituir a investidura divina por uma investidura popular (…) a autoridade foi levada a envolver-se em mistério. (…) Gustav Freytag reproduz um dos manuais então em voga sobre os segredos da arte de governar, a Ratio Status, de 1666, e faz dele uma divertida paródia. O jovem considerado apto para as funções de conselheiro de príncipe é introduzido nos aposentos secretos em que são ciosamente conservados os Arcana Status inerentes à sua nova e altíssima função: uniformes de Estado, óculos de Estado, pó para os olhos, etc. Há uns mantos especiais de Estado que conferem a quem os enverga a devida autoridade e reverência e se chamam salus populi, bonum publicum, conservatio religionis, conforme servem para extorquir novos impostos aos súbditos ou para mandar para o exílio e expropriar os opositores, sob o pretexto sempre eficaz de que eles são difusores de doutrinas heréticas. Um outro manto, completamente coçado pelo uso quotidiano, chama-se intentio, boa intenção, e serve para justificar o que quer que seja. Com os óculos de Estado entra-se em pleno ilusionismo: permitem eles ver o que não existe e não ver o que existe, aumentam os factos sem importância e encolhem os acontecimentos graves. Mas actualmente obtêm-se idênticos resultados com encenações mais simples. »
Silone, Ignazio (1966). A Escola dos Ditadores. Lisboa: Morais Editora
Eu acho curioso o título da crónica "Zénite e Vazio" quando é o próprio discurso do Vicente Jorge Silva que, se não é vazio, é no mínimo vago. O único dado concreto que dá é as sondagens (sempre as sondagens, dá-se demasiada importância às sondagens, mas isso é outra conversa) que são favoráveis a toda a esquerda. A explicação que VJS é que o PS está a deslocar-se para a direita (estarão o BE e o PCP também a descolcar-se para a direita?, seguinto a mesma lógica é essa a conclusão). Há outra explicação possível, que é a do eleitorado se está a deslocar para a esquerda. VJS não considera sequer essa possibilidade, e usa os dados que lhe convém como lhe convém para argumentar aquilo que quer dizer. Na realidade este artigo do VJS é apenas uma maneira mais palavrosa de dizer o populista "Isso PS e PSD é tudo igual, é tudo farinha do mesmo saco". Não que o VSL não possa ter razão, mas convém concretizar um bocadinho. Ele apresenta uma realidade concreta à partida - aliás um fenómeno bastante interessante -, o tal paradoxo do aumento da popularidade do governo ao mesmo tempo que aumenta a contestação social, e depois quando chega à altura de discutir conclusões fica-se por um discurso vago da crise identitária, da esquerda de poder que vira à direita, e bem expremido a coisa não dá muito sumo. É aliás um bocado demagógico, e é um discurso recorrente sempre que a esquerda está no poder (o que é o mesmo que dizer PS no poder), seja qual for o primeiro-ministro na circunstância. Também é um discurso que cheira um bocadinho a cassete.
Obrigado pelos vossos comentários. Por ora, aproveito para me referir ao do Zèd: quando coloquei este post apenas pretendia suscitar o debate desta questão. Sobre o artigo em si, tinha uma opinião que não quis expressar, até porque o texto tenta abarcar tanta coisa e de modo tão definitivo em tão pouco espaço que obviamente teria a fragilidade da análise apressada e dos preconceitos do autor.
Ainda assim, uma ideia essencial que me parece muito importante discutir é a do título do post: a falta de ideias no debate público patrocinado pelos partidos de cá. Ou seja, oscilamos entre uma acção governativa, muito apostada no pragmatismo, e uma alternativa assente, basicamente, na reactividade ou na reivindicação, ou ainda na pressão por uma maior dimensão neo-liberal. Será que não há outras vias? E que não compensará falarmos mais de política, de ideias e de soluções alternativas?
Ou ainda, qual o balanço possível do actual governo? Quais os aspectos mais positivos e mais negativos? Não será que vale a pena aprofundarmos também este debate?
É que, senão, falamos do quê?
Zèd: concordo com quase tudo o que dizes.
Daniel: discordo com quase tudo o que dizes. Essa conversa de que os partidos não têm ideias é uma velha cassete, e um mito infelizmente reproduzido à esquerda e à direita.
Agora, uma verdade importante é que as ideias não chegam, sobretudo quando se está no poder e há obrigações e responsabilidades no domínio da decisão. Há o momento das ideias, e há o momento da implantação, que é necessariamente técnica e burocrática e, obviamente, menos sedutora que o debate de ideias, mas nem por isso menos importante. Aliás, é aí que se joga grande parte das políticas, e não no debate de ideias. E é muitas vezes por não sabermos fazer a ligação entre a dimensão das ideias e a dimensão técnica que achamos que a política é meramente "pragmática", gestionária e oportunista, desligada dos grandes ideais políticos do Olimpo, como se estes fossem auto-suficientes (quer dizer, eles são para quem não tem responsabilidades políticas e pode passar a vida a falar de possíveis vias alternativas sem ter que passar pelo crivo da sua exequibilidade e implementação :)).
"Será que não há outras vias? E que não compensará falarmos mais de política, de ideias e de soluções alternativas?
Ou ainda, qual o balanço possível do actual governo? Quais os aspectos mais positivos e mais negativos? Não será que vale a pena aprofundarmos também este debate?"
Esse é um debate necessário, sem dúvida (mas, já agora, sem as cassetes do costume :)).
Daniel, o que eu não percebo é essa ideia do VSJ de que por se ser pragmático está-se em crise de ideias, ora é exactamente o contrário para se discutir as ideias é preciso ser-se pragmático, ou então o debate é inútil. De pouco serve discutir as ideias se não há uma intenção de as pôr em prática. O artigo do VSJ seria muito mais útil se em vez de divagar entre os vazios da direita e as derivas da esquerda para o centro, ele enunciasse as medidas concretas do governo que ele considera de direita (e com as quais obviamente não concorda) e quais as alternativas de esquerda que propõe. Afinal é de governação que estamos a falar. As ideias são as que estão no programa de governo, e é isso que se deve debater, como dizes Daniel.
É verdade que os partidos não debatem as ideias, o único verdadeiro debate de que me lembro, que levou à elaboração de um programa de governo, foram os estados gerais do PS antes da eleição de Guterres, e o resultado foi o que se viu: a gaveta. Mas não é com este discurso de VSJ que a coisa vai avançar.
"Será que não há outras vias? E que não compensará falarmos mais de política, de ideias e de soluções alternativas?"
Esse sim é o debate que vale a pena.
Zèd, concordo com tudo o que dizes até aqui:
"É verdade que os partidos não debatem as ideias, o único verdadeiro debate de que me lembro, que levou à elaboração de um programa de governo, foram os estados gerais do PS antes da eleição de Guterres, e o resultado foi o que se viu: a gaveta."
Isto não é verdade. Houve, por ex., as "Novas Fronteiras", e há um sem número de documentos, uns oficiais, outros oficiosos, que exprimem reflexão sobre ideias e medidas possíveis. São é menos conhecidas do grande público, e aí podemos discutir se deviam ser mais, e qual o papel dos intelectuais orgânicos e da imprensa nesta questão. Podemos achar que há menos debate na esfera pública do que em países do que Inglaterra e França, aí concordo, mas isso são diferenças naturais de escala e de massa crítica (por exemplo, não existem think tanks em Portugal, que fazem muito deste trabalho).
Podemos estudar e discutir todas estas empiricamente, mas por favor indo além do discurso estereotipado de que os partidos não têm ideias e a governação é um mero ajuste pragmático às circunstâncias.
Agora, convém lembrar uma coisa que se chama "limites económicos à política", que só se colocam normalmente a quem tem responsabilidades políticas e não morde os calcanhares de quem quer discutir propostas alternativas. Se as queremos discutir - e eu acho muito bem -, tenhamos em conta que todas as medidas têm um custo, seja real, seja de oportunidade, e que hoje as contas públicas do país exigem um esforço de racionalização de recursos, para que haja margem de manobra no futuro para se pensar mais em função de políticas activas e menos em cortar nas gorduras existentes. Enquanto não se tiver este constrangimento sério em linha de conta em tudo o que se propõe, vai-se continuar a falar das medidas meramente "economistas" como se o economismo hoje, infelizmente, não fosse uma virtude em si. Temos que fazer com que deixe de ser, para que haja mais margem de manobra económica no futuro, e por definição mais margem de manobra política.
A petição online ( http://www.petitiononline.com/fundacao/petition.html)
para a destituição dos corpos gerentes da Fundação D. Pedro IV vai de vento em popa. Mesmo quem não tenha acesso à internet ou email pessoal, pode assinar indicando o email de um amigo ou familiar - vamos todos assinar!
Os temas que me pareciam de destacar do texto de VJS eram 4: 1) o "grave problema identitário ao PS, enquanto partido da esquerda moderada": como já referiu o André Freire em vários textos, o PS é um dos partidos mais à direita na Europa;
2) "vazio programático", à direita e à esquerda, sim ou não?;
3) qual o "lugar da esquerda social-democrata" em Portugal?;
4) o(s) partido(s) que apoiam o governo em funções têm que se esvaziar por completo como ocorre por cá? Se não, onde está o debate das políticas sectoriais?
Não vi o Zèd nem o Hugo a tentarem responder a estas questões concretas que o texto avança. Não é um tx. muito consolidado e rigoroso, concedo, mas ao menos que tentássemos debater o que se pudesse aproveitar dele. Eu acho que vocês preferiram optar pelo reacção epidérmica às limitações que o tx. tb. tinha.
Por fim, o Hugo alude a oportunismo governamental (do que nunca falei) e não vejo o pragmatismo governamental como uma coisa má em si mesma, apenas acho prejudicial aquela que se centra na performance em si mesma (cortes orçamentais cegos, défice de planeamento e avaliação, etc.), sem cuidar de tentar reflectir, nas soluções adoptadas, o máximo possível a complexidade da sociedade em que vivemos.
A respota não foi epidérmica, Daniel. As 4 questões que enumeras são importantes. Não sei se (dis)concordo com o diagnóstico do André Freire, mas também não o conheço em concreto. Talvez o queiras expor e desevolver.
Vazio programático à esquerda e direita. Na esquerda PS há muitas mudanças em curso, e ainda bem, para ver se a esquerda corporativista dá lugar à esquerda que valoriza a redistribuição. À direita, espera até o PSD se transformar num partido neo-liberal. Vai demorar uns anos mas chegam lá.
Qual o "lugar da esquerda social-democrata" em Portugal"? É quase invisível, porque muitos à esquerda têm-na como sinónimo de Estado e, sendo anti-mercado, têm um preconceito completamente anacrónico contra o sector privado.
"O(s) partido(s) que apoiam o governo em funções têm que se esvaziar por completo como ocorre por cá?"
Acho difícil que possa ser diferente, e em todos os países parece-me que essa é uma questão inevitável.
Quanto ao "debate das políticas sectoriais", este parece-me ser fundamentalmente a altura de colocar as políticas em prática. E as medidas saem de debates que já aconteceram.
Quanto ao resto, os meus comentários correm o risco de se repetir. Daniel, qual é o teu critério para dizeres que os cortes comentários sao "cegos"? Este é daqueles comentários que me parece, esse sim, epidérmico. Mas "cegos" porquê? Porque aqueles que perdem com eles dizem que são "cegos"? (era de estranhar que dissessem que são justificados, né?)...
"Défice de planeamento e avaliação"??? Se um dia quiserem caricaturizar este governo, podem dizer que este foi o "governo dos planos". Há planos para tudo! Não me venham com o défice de planeamento. Quanto a avaliação, qual é o teu indicador para dizeres que há défice? É que eu nunca vi tantos estudos de avaliação em curso....
Por fim: "sem cuidar de tentar reflectir, nas soluções adoptadas, o máximo possível a complexidade da sociedade em que vivemos".
Qual é o teu indicador que te permite afirmar que não há esse cuidado para tentar reflectir nessas e noutras coisas importantes?...
Tenho que ler os textos do André Freire...
Mas quero deixar só uma nota, não me parece que haja um vazio programático à esquerda (talvez nem sequer à direita), o que há em Portugal é um mau hábito de falta de debate e de escrutínio público. Os programas existem, mas partidos tendem a não "abrir o jogo" e o debate dos programas é feito internamente, e não pela opinião pública. É mais fácil e dá melhores resultados fazer campanhas eleitorais demagógicas do que debater programas. É preocupante que dê melhores resultados, porque quer dizer que o eleitorado também não é exigente a esse nível.
Recordando os 150 mil novos empregos prometidos pelo PS, és capaz de ter razão, Zèd, vem tudo nos programas... Esperemos que seja sobre isto que o PR está a pensar quando estiver a escrever o tal seu Livro de Estilo na Política!
Sobre a análise do André Freire, a 1.ª parte do tx. dele foi publicado no Público de 16-10-2006 e é muito bom. Chama-se «Onde está o reformismo de esquerda do governo PS? (I)» e deixo-te aqui um cheirinho:
"Sobre o próximo Congresso do PS, Sócrates escreveu «Não há hoje, no PS, um problema de identidade, nem de definição doutrinária ou ideológica. (...) (Expresso, 2/9/06).» Vale a pena discutir isto analisando algumas orientações políticas fundamentais do governo.
A questão da igualdade está no âmago da divisão entre esquerda e direita: a primeira é, pelo menos tendencialmente, mais igualitária do que a segunda. Porventura, mais do que inigualitárias, as direitas têm horror ao voluntarismo político para corrigir as desigualdades. Claro que sempre houve diferenças entre as esquerdas sobre as questões da igualdade, mas nenhuma das suas correntes abandonou a ideia de igualdade como questão central do seu ideário. E seria lógico esperar que a questão das desigualdades tivesse um relevo acrescido para a(s) esquerda(s) do país com as maiores diferenças de rendimento da UE25: Portugal (PNUD, 2005).
Sabemos que, seja por causa das tendências demográficas e do fraco crescimento económico, seja por causa dos compromissos europeus e da competição internacional, são necessários ajustamentos dolorosos para promover o equilíbrio das contas públicas e a sustentabilidade futura do Estado Social.
Mas uma questão central que se coloca é qual é o nível de equidade na distribuição dos custos com tais ajustamentos. Defendi num artigo desta coluna, "As velhas desigualdades e a nova luta de classes" (6/6/06), que os ajustamentos que o governo tem vindo a promover têm afectado sobretudo os assalariados, fundamentalmente os do sector público, nomeadamente as classes médias. Pelo contrário, os contribuintes faltosos e, sobretudo, os detentores de capital têm sido relativamente poupados (excepto em sede de IVA e afins).
De então para cá a situação pouco mudou.
(...)
Mas as áreas onde as desigualdades na distribuição dos custos dos ajustamentos (entre trabalho e capital) são mais evidentes são as da Segurança Social e da tributação fiscal. Na primeira, a reforma acordada com o patronato e a UGT faz recair todos os custos sobre os assalariados, isentando quase completamente as empresas. Em matéria fiscal, em 2005 o PS tinha-se proposto acabar com os benefícios fiscais injustificados e que contrariassem a equidade global do sistema. Porém, o Jornal de Negócios de 30/6/06 anunciava que os benefícios fiscais que o Executivo se prepara para cortar são os relacionados com a educação, ou seja, aqueles que afectam sobretudo os assalariados. O patronato e a direita alegam geralmente que o que é preciso é descer os encargos sociais e fiscais das empresas por causa da sua competitividade. Porém, ainda recentemente o DN (13/10/06) revelava que as taxas nominais de IRC em Portugal (28,0 por cento) estão abaixo da UE15 (29,5 por cento). Embora estejam ligeiramente acima da UE25 (27,0 por cento) e algo acima de alguns países da Europa de Leste. Mas não era o PS que se propunha alicerçar a competitividade do país na qualificação dos portugueses e na inovação cientifica e tecnológica? Neste domínio, as medidas efectivas apontam mais para a redução dos custos com o factor trabalho e a redistribuição. Mais: as taxas nominais de IRC são muito enganadoras porque em Portugal os benefícios fiscais são muito elevados e, por isso, as taxas efectivas eram as mais baixas da UE15 (1996-01), exceptuando a Irlanda (praticamente ex-aequo connosco) (Silva Lopes, Ibidem, p. 100). Refira-se ainda que, em 2004, a carga fiscal portuguesa em percentagem do PIB (34,5 por cento) estava abaixo da UE15 (40,2) e da UE25 (39,3) (DN, 18/5/06). E, embora ligeiramente acima da média dos oitos países ex-comunistas (33,5), estava abaixo da República Checa (36,8), da Hungria (39,1) e da Eslovénia (39,7). Contudo, segundo um estudo divulgado em Maio passado ("Dia da Libertação de Impostos"), em Portugal são preciso 21 e 11 dias de trabalho por ano para pagar o IRS e o IRC, respectivamente. E temos assistido recorrentemente a lucros exponenciais de várias empresas: por exemplo, em 2005 os lucros dos bancos aumentaram 30% (DN, 11/6/06). Há vários outros casos!
Por tudo isto, é incompreensível que os detentores de capital tenham sido tão pouco chamados a participar nos esforços de ajustamento que afectam os restantes portugueses. Portanto, para usar os termos de Adam Przeworski, em matéria de redução das diferenças entre capital e trabalho o PS parece ter passado do "reformismo" à "resignação". Dito de outro modo, o Executivo evidencia muita determinação, urgência e músculo com os assalariados, e muita lentidão e tibieza perante os mais poderosos economicamente (e os contribuintes faltosos). Se isto não representa um reposicionamento ideológico, então o que é? E, ao contrário do que as sondagens parecem sugerir, poderá ter significativos impactos (no médio e longo prazo)..."
"Recordando os 150 mil novos empregos prometidos pelo PS"
Pela recorrência com que se cita essa promessa pergunto se não arranjam entretanto um exemplo novo...É que já lá vão 2 anos, podiam arranjar uma nova.
Pode ser não aumentaremos os impostos?
Neste texto o fundamental centra-se na questão fiscal. O que é dito pelo André Freire é interessante mas as coisas são um bocadinho mais complicadas.
1) É verdade e fácil de compreender que seja mais fácil ao Estado agir sobre o sector público do que sobre o sector privado. Se ataca as classes médias do público, bom, devo dizer que antes as classes médias que as classes baixas! No sentido em que esse "ataque" passa por acabar com uma série de regimes de excepção dentro da função pública que são anacrónicos, sem justificação, e custam caro que se fartam, eu não vejo o mal. É preciso começar aa arrumar a casa por algum lado, e o Estado, que está endividado até ao tutano, tem que começar a fazê-lo. E, digo agora em jeito de ironia, se privatizasse mais umas quantas empresas, deixava de pagar principescamente a uns quantos gestores de topo - aí ja nao estariamos a falar de classes médias.
2) A questão do nível da fiscalidade. Bom, esta é uma daquelas áreas onde é fácil fazer demagogia, e o André cai na tentação - nao pelo que diz, mas pelo que não diz. É que o nível de fiscalidade está altamente correlacionado com o nível de riqueza do pais. Nao espanta que o nosso nível de fiscalidade seja dos mais baixos da Europa: somos um dos países mais pobres. E não espanta que haja uns quantos paises de Leste cujos níveis de fiscalidade sejam mais baixos que o nosso: é porque são ainda mais pobres que nós.
Em segundo lugar, o problema é que hoje o Estado está em condições mais complicadas para impor níveis de fiscalidade elevados ao capital. Em todos os países da Europa central e do Norte as taxas têm vindo a descer; e elas foram colocadas em fasquias que são altas comparadas com as nossas não apenas porque esses paises sao mais ricos do que nós, mas porque foram fixadas em tempos onde o capital tinha menos mobilidade do que hoje, e o seu poder de chantagem era menor. Esta é uma matéria muito sensível, e eu acho que o que separa claramente o nosso tempo do tempo em que esses países fixaram os seus níveis de fiscalidade (na prática, durante os "30 anos gloriosos") é que no passado o 'drive' ideologico tinha espaço para funcionar de uma forma que não pode funcionar hoje, quanto mais não seja porque as finanças publicas estão no vermelho como nao estavam em décadas passadas nesses paises. Para resumir: hoje as condições para fixar niveis de fiscalidade "lá em cima" são más para os Governos, e hostilizar o capital pode ser, a partir de um certo ponto, simplesmente uma atitude idiota e suicida. Ou ainda de outra forma: no passado era mais fácil levar a cabo, por margem de manobra económica, uma política fiscal de esquerda do que hoje. E como chegamos tarde ao comboio da modernização....
Dito isto, a reflexao global do André é pertinente no sentido em que toca na questao da reditribuição do fardo do reajustes económicos. Essa é uma das questões chave dos períodos de transição económica. Quanto mais tarde eles ocorrem, mais dificil é distribuir mais equitativamente o fardo entre capital e trabalho, porque o sentido de urgência e o poder de chantagem jogarão a favor do capital. Mas eu não sou tão pessimista quanto o André quanto a esse "reposicionamento ideológico" à direita. É preciso ter nestas coisas uma perspectiva dinâmica, em que o que se faz de difícil hoje possa ser visto como um investimento no futuro. Explico porquê e dou um exemplo. A explicação possível e plausível deriva do facto de o governo portugues ter que demostrar ao capital que consegue fazer uma administração capaz da finanças do país antes de vir com mais um aumento de impostos e, ainda mais importante no sentido abstracto mas suicida no momento presente, vir com a proposta de uma reforma fiscal. Por isso falei de colocar primeiro a "casa em ordem", ou seja, as finanças do Estado num estado aceitável. Essa, neste momento, é a responsabilidade primeira do governo. Nenhum membro do patronato iria aceitar uma subida de impostos sobre os lucros das empresas para alimentar uma maquina do Estado endividada e cheia de perversões que comem dinheiro inutilmente. Isto parece-me razoável. Se eu tiver um carro cujo motor está a funcionar mal e consome gasolina excessivamente, o que é que devo fazer? Pôr sempre mais e mais gasolina ou mudar o motor? Logicamente, eu tenho qe mudar o motor ANTES de colocar mais gasolina. Ora, é isto que se passa no Estado portugues: é preciso acabar com uma série de irracionalidades para podermos fazer investimentos mais válidos e seguros nas áreas que interessam. Em particular, para fazer uma reforma fiscal mais justa e que permita uma maior redistribuição. Digo isto sem qualquer problema porque no "Veu de Ignorancia" escrevi bastante sobre a importancia da fiscalidade como arma da esquerda do século XXI, muito mais central do que a área da propriedade dos meios de produção, como diriam os marxistas e para-marxistas. Hoje, nao é a propriedade dos meios de produção que interessa; é o uso eficaz e inteligente dos meios de redistribuição. A reforma fiscal é um dos grandes desafios do futuro. Mas acho que é um momento muito difícil para haver grandes avanços reformistas e progressistas nesta área. O diagnóstico do André é muito pertinente mas não me parece que seja justo enquanto sentença final, até porque seria muito cedo para proceder a uma qualquer avaliação desse tipo.
O exemplo empírico existente para suportar a minha tese reporta-se ao que se passou em Inglaterra. Nos dois primeiros anos de mandato pós-1997, a política ecnómica do New Labour não foi muito diferente da de John Major. Porquê? O objectivo era mostrar à City que o New Labour nao era constituido por um bando de loucos que colocaram na segunda dos anos 70 o Reino Unido nas maos do FMI e que, por conseguinte, sabiam o ABC da gestão das finanças publicas. O outro objectivo era prosseguir as reformas no tal motor do Estado antes de injectar mais dinheiro. Reestruturado a forma de funcionamento dos serviços públicos, o New Labour injectou mais dinheiro nestes do que qualquer governo na história britânica. Mas pôs gasolina num motor novo, não a derramou sobre o motor antigo. Algo semelhante poderá e deverá ser feito em Portugal.
Oh Daniel, quer dizer, a tua posição é do Humpty Dumpty: tu não queres cortes em serviços sociais nenhuns (cada corte é "cego"), mas tambem nao queres mais impostos (porque houve uma "promessa")? É a arte de ter sempre razao, argumentando a partir dos dois extremos ao mesmo tempo. Já ouviste falar na teoria do cobertor?...
Já agora, eu evoquei o programa de Governo por causa da ideias e das propostas - nao por causa das "promessas", mais ou menos gordas ou demagógicas. E aqui o Zéd tem toda a razao: diz-se à boca cheia que o Governo não tem ideias, mas quando se quer discuti-las, as pessoas só procuram as promessas....É a isto que eu chamo acertar em cheio, Zèd!
Tenho que ver se convenço o "Gato Fedorento" a fazer um sketch a gozar com esta mania de a mesma pessoa enderçar críticas ao governo ora fazendo num momento de Bernardino Soares, ora fazendo no momento seguinte de Marques Mendes como se não houvesse incoerência nenhuma...
Daniel, obrigado pelo texto do André Freire, é muito bom e dá-nos uma base para o debate. Devo dizer aliás que no essencial concordo com o André Freire (mas ainda tenho que ler o resto), de facto dá argumentos concretos para justificar a ideia do posicionamento do PS à direita. E lá está, o posicionamento à direita não é devido a um vazio de ideias, ou vazio programático, é devido a ideias e a um programa muito concreto. É por isso que eu não gostei do artigo do VSJ, não que não concorde com a ideia de que o PS esteja de facto à direita daquilo que devia.
Não vou defender o governo, pelo contrário, sou bastante mais crítico que o Hugo. Não concordo com a teoria de é preciso começar por algum lado, e vamos pelo mais fácil, acabamos com uns previlégios absurdos que existem na função pública. É preciso, claro acabar com esses anacronismos, que saem caros (se bem que não sei se não serão apenas minoritários ou mesmo marginais quando se considera o todo), mas uma coisa não impede a outra. A ideia de que é preciso primeiro fazer uma série de reformas porque o estado está endividado até ao tutano, e só depois se pode fazer uma reforma fiscal para mim não colhe. É que, usando a tua metáfora - Hugo - do carro, a reforma fiscal faz parte da mudança de motor, aliás é uma parte essencial da mudança de motor. Não me parece realista que o estado português consiga resolver o problema do défice se não fizer uma reforma fiscal, não só em relação à tributação mas também à evasão fiscal. Enquanto não o fizer não vai ter dinheiro para nada.
E a ideia de que também não se pode tocar nos rendimentos dos que têm mais lucros porque assim se vai afugentar o capital me parece levada demasiado ao extremo, ninguém quer repetir os disparates do Labour dos anos 70, mas não se pode assistir impávido a esse tipo de chantagem. Há um meio termo, e seria bom começar desde já com uma política pelo menos progressiva de aumento da tributação das empresas com grandes lucros.
E acho também que o problema não é só fiscal, é económico, e é particularmente importante a questão da qualificação (como mostravam uns posts do Hugo há uns dias). Não sei o que é que o governo tem feito a esse respeito nestes últimos tempos, mas nenhum governo dos últimos 20 anos teve uma política minimamente eficaz nesste domínio, e só uma política de esquerda pode ser eficaz (a direita nem se preocupa com isso).
Hugo, a minha crítica (a tal que acertou em cheio) é dirigida tanto aos críticos do governo que procuram só as promessas, como ao próprio governo que fez essas promessas "mais ou menos gordas ou demagógicas" como tu dizes, o problema é que estão uns e outros no mesmo comprimento de onda.
Zèd, eu não discordo da importância da reforma fiscal, mas continuo a dizer que há momentos e momentos para a levar a cabo.
Quanto ao argumento do motor, acho que a tua análise não é correcta. É que quem paga o mau funcionamento do motor são os impostos. Nenhum detentor do capital vai aceitar de bom senso ser taxado mais se entretanto o motor do Estado continuar a gastar excessiva e irracionalmente. "Vai-nos fazer pagar mais para alimentar o desperdício do costume?"´seria imediatamente o que se ouvia e, já agora, eu partilho desse argumento. Como partilho do argumento de que não faz sentido, como se fez na ultima década e meia, continuar a meter dinheiro na saúde, educação, transportes, etc., áreas essenciais do Estado social, sem rever o que está bem e o que está mal, porque senão o que acontece é que se gasta mais dinheiro todos os anos sem que os problemas sejam resolvidos.
Aqui como na questão fiscal, a prioridade está na racionalização do funcionamento da máquina; e depois vem o modo de financiamento, porque se os fundos fiscais continuam a entrar independentemente da reforma nos serviços já sabemos o que acontece: não há reforma dos serviços nenhuma, e a perversão continua. É o que tem acontecido nos últimos anos, e é este o nó do problema.
Essa dos detentores do capital não aceitarem ser taxados eu não percebo. Qualquer contribuinte, seja quem for, não tem que aceitar nem deixar de aceitar, num estado de direito as leis são para cumprir, aquilo que as instituições (democraticamente eleitas) establecerem que deve ser pago, deve ser pago e mais nada (está-me a fugir outra vez o pé para o coercivo).
"Como partilho do argumento de que não faz sentido, como se fez na ultima década e meia, continuar a meter dinheiro na saúde, educação, transportes, etc., áreas essenciais do Estado social, sem rever o que está bem e o que está mal, porque senão o que acontece é que se gasta mais dinheiro todos os anos sem que os problemas sejam resolvidos."
Não percebo é porque é que a reforma fiscal não faz também parte desta lista, e fica para depois dos outros problemas todos resolvidos. É menos prioritária?
Calma, não estamos a discutir se eles devem ser taxados ou não; estamos a discutir o nível da fiscalidade. É algo bastante diferente.
A reforma fiscal não é menos prioritária, é menos exequível. De novo, é uma questão diferente. É que convém lembrar que o capital foge. Não vale a pena sermos moralistas com isto, e dizer que eles são isto e aquilo. A partir do momento em que o poder de chantagem do capital sobre o Estado sobe, é preciso fazer estas coisas com pinças. Para além do mais, eu estou de acordo que o Estado arrume a casa antes de vir aumentar a fiscalidade, pelo que já disse antes, e por um argumento suplementar. É que o que propoes é meio caminho andado para a paralisia. O Estado diz assim: "eu só reformo a administração pública se voces capitalistas aceitarem uma reforma fiscal mais redistributiva"; e o capital diz: "Na, na, nós só aceitamos uma reforma fiscal se vocês acabarem com o desperdício inútil da administração publica. Depois, falamos". Se aqui ninguém se adiantar - e é o Governo que tem que o fazer, é ele que tem responsabilidades governativas, nao os capitalistas -, então o mais natural acontecer é nao acontecer coisa nenhuma. Um actor fica à espera que o outro avance primeiro e ninguém o faz unilateralmente (isto faz lembrar aquela discussão entre o Estado e os sindicatos e de quem tem culpa do quê; é natural, porque estamos perante o mesmo problema de acção colectiva). Eu considero que o Estado tem responsabilidades de meter em ordem as suas contas acabando com o desperdício. Depois tem mais legitimidade para fazer uma reforma fiscal. Neste momento, essa legitimidade - para além do espaço de manobra, que é reduzido - está fragilizada. Ou seja, a posição do Governo é fragil do ponto de vista fáctico e normativo.
Devo dizer alguma coisa mais, embora tardia, pois só agora pude regressar.
Passando por cima das confusões do Hugo, os 150 mil novos empregos e o não aumento dos impostos foram 2 medidas centrais na campanha das legislativas. Se faziam ou não parte do programa do PS é indiferente, ninguém lhes pediu tais promessas. Donde, fazem parte do programa, ou seja, das propostas dum dado partido. Donde, não se trata da minha posição, antes do que foi apresentado e não cumprido. Não é oscilar entre o PCP ao PSD, é relembrar factos. Eu sei que é duro, mas é a realidade.
Será preciso relembrar que os 2 analistas invocados (VJS e A. Freire) não são desses quadrantes e era sobre textos deles que eu partia?
Passagem histórica do Hugo: "Tenho que ver se convenço o «Gato Fedorento» a fazer um sketch a gozar com esta mania de a mesma pessoa enderçar críticas ao governo ora fazendo num momento de Bernardino Soares, ora fazendo no momento seguinte de Marques Mendes como se não houvesse incoerência nenhuma...". Ironias da história: sucede que pouco antes, esse mesmo programa apresentara 2 rábulas, daquilo que eles acham que vale a pena (pelo vistos tb. estão enganados): a 1.ª com o PR e o PM a fazerem de Dupond & Dupont, cada qual a tentar mimosear mais o colega com salamaleques vários; a 2.ª rábula com o PM numa conf.ª de imprensa ao seu estilo: quando o elogiavam era todo atenções, quando lhe faziam perguntas incómodas passava a bola para o ministro de serviço e punha-se a fazer malabarismos.
Ironias, ironias involuntárias.
2 notas mais: 1) não consegui recuperar a parte do tx. do A. Freire que queria apresentar, sobre o posicionamento comparativo mais conservador do PS no espectro europeu socialista, nem sei se ainda está disponível no Público on-line; 2) quando falava de falta de ideias é claro que me queria referir à ausência de debate de ideias.
Hugo, sabes perfeitamente que tocámos em pontos nevrálgicos de qualuquer política, desde o posicionamento ideológico passando por uma política de emprego, por uma estratégia, pela política fiscal, etc.
Dizes, Hugo, que cabe ao Estado a iniciativa de cortes orçamentais (para só mais tarde incomodar os empresários e especuladores na política fiscal), mesmo se 1.º cortem nas classes méidas, e mesmo se no avanço duma política de desenvolvimento têm que ser os sindicatos a ceder 1.º. Para mim isto é incoerente. É uma política de 2 pesos 2 medidas. Era também sobre isso que tentava contribuir para reflectir.
Não faz sentido dizer que há um momento para avançar propostas e outro para governar: a vida não é assim. O debate deve sempre existir, para clarificar, para aperfeiçoar, para envolver os cidadãos e porque faz parte das exigências duma pedagogia democrática.
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