sábado, 17 de março de 2007

A eficiência da ineficiência


Esse post da Cláudia relembrou-me um debate que há nesse blogue. Um estranho liberal (porque escrever num blogue liberal e repetir a propaganda do SNI parece-me paradoxal…mas aqui não é o problema e os defensores do dogma liberal já restabeleceram a ordem) iniciou uma série de posts sobre os presumidos sucessos económicos do Estado Novo. Nem vale a pena repetir o que outros já escreveram, tirando as bases desse discurso pseudo-histórico. Só fico por uma parte do racioncínio que, parece-me mas posso enganar-me, não foi discutida : a probidade e a eficácia dos servidores de Estado naquele período (Os factores 2, 3 e 4 do « novo » decálogo do Estado Novo 2. Em parte como resultado deste exemplo, uma cultura prevalecente na sociedade em que o cumprimento dos contratos (por vezes baseados na mera palavra dada) e, geralmente de todos os compromissos, se tornava uma questão de honra pessoal. 3. Funcionamento exemplar das instituições do Estado, como a justiça e a administração fiscal. 4. Elevado sentido de Estado por parte das pessoas que serviam o Estado quer nos postos da governação quer nos principais postos da administração pública. Tratava-se, em geral, de pessoas com elevado espírito público, que visavam servir o Estado e a comunidade, e não servirem-se do Estado e da comunidade - e que frequentemente o faziam com sacrifício dos seus próprios interesses pessoais).
Se o Estado Novo inspirou confiança a alguém foi aos médios e grandes proprietários rurais, aos industriais, aos comerciantes, aos financeiros, etc., etc. A grande maioria da população, ela, viveu no medo, na desconfiança e na vontade de escapar ao Estado e aos seus protegidos (fugindo por exemplo clandestinamente para França). Donde vinha a confiança dos primeiros ? Eles podiam quebrar os contratos como queriam, deixar de pagar os empregados e, melhor, impor a inexistência de contratos deixando os assalariados (rurais ou industriais) sem protecção. Sem sindicatos, com operários reprimidos à menor desobediência, com um sistema corporativa que era uma fraude como escreveu Philippe Schmitter, com tribunais do trabalho defendendo o patronato, é verdade que os empresários podiam ter confiança no Estado. Isso não há dúvida. E com a repressão do movimento operário, sem sindicatos, com salários que aumentavam menos depressa que a produtividade dos trabalhadores (a não ser no fim dos anos 60 quando o patronato, por culpa da emigração, teve que aumentar os salários), e sem Estado Providência, o tal sucesso económico do Estado Novo não é nada de extraordinário. Eficiência económica é juntar crescimento da riqueza, democracia e bem-estar para toda a população, como aconteceu no mesmo período além-Pireneus.
Quanto à dita eficiência e exemplaridade dos servidores do Estado no regime salazarista é um mito tão falso como as proezas do Stakhanov. Com uma censura que cortava qualquer artigo que apontava uma mais pequena disfunção da administração pública (por exemplo no livro do João Madeira, Irene Pimentel e Luís Farinha há o caso de um desastre de avião que foi censurado, isso podia ser uma fonte de desprestígio para o Estado), com uma polícia política que podia perseguir qualquer pessoa que pudesse levar à cabo uma investigação crítica sobre a administração pública, essa inefiência não era conhecida do público que só podia ler uma narrativa distorcida da situação portuguesa. Mas estudos, nomeadamente aqueles baseados em arquivos públicos ou trabalhos de antropologia, mostram como o Estado Salazarista era inefiente, lento, cheio de corrupção (como se poder ler nos trabalhos do Howard Wiarda ou do José Cutileiro).
E essa ineficácia não era uma anomalia. Era uma das chaves do poder de Salazar. Salazar não precisava dum Estado eficiente, dum sistema que funcionava correctamente. Pelo contrário. O que ele queria era manter-se no poder. E isso passava pela existência de fracções antagonistas que, combatendo-se umas contra as outras, pediam a arbitragem do presidente do Conselho que ficava assim no centro do sistema e tornava-se indispensável. Quantos ministérios ou organismos não mantinham guerrilhas administrativas e burocráticas inúteis que se traduziram por inacção, superposições de competências e, por consequência, despesas acrescidas. Quantos ministérios ou organismos preferiram não fazer nada e resolver alguns problemas para não mudar as suas rotinas burocráticas. Quantos funcionários não se serviram das posições que ocupavam para ganhar uns (muitos) tostões à custa dos Portugueses que tinham que preencher toneladas de impressos burocráticos ?

3 comments:

Anónimo disse...

Existe um cheirinho a Estado Novo precisamente quando hoje se falla na ausência de direitos adquiridos na Função Pública.

Daniel Melo disse...

Confesso que também tenho alguma dificuldade em perceber esta queda de muitos liberais da praça pelo ditador europeu que mais tempo usurpou o poder.
O crescimento económico desigual ia a par do condicionamento industrial, do paternalismo estatal, do receio do risco, da ineficiência corporativa. E esses bloqueios têm consequências ainda hoje, pois não se mudam estruturas e modos de pensar da noite para o dia.
Quanto ao serviço público, acho que disseste também o essencial. E isto independentemente da boa-vontade e do contributo de muitas das pessoas que então trabalharam no Estado. Era um regime ditatorial que durou 48 anos, a questão da perpetuação foi de facto uma obsessão para um tipo de regime que se costuma apresentar sempre no início como transitório. Mas que depois se vai mantendo, mantendo.., sempre à custa de vários elementos fundamentais para a vida em sociedade: as liberdades fundamentais, o desenvolvimento mais equilibrado, a procura da eficiência, o debate e aceitação de alternativas, um poder mais descentralizado, o pluralismo, etc., etc..

Cláudia Castelo disse...

Uma administração pública que não prestava contas aos cidadãos podia ser pouco eficiente e contrária ao bem comum, sem ser penalizada. Só com a democracia, e sobretudo após a entrada de Portugal na CEE, é que a sociedade portuguesa passou a dispor de mecanismos de fiscalização e controlo sobre a gestão da coisa pública.