quarta-feira, 28 de março de 2007

O «Senhor Mais ou Menos»... (2)

Dizíamos num post anterior que Hu Shi foi o papá do «Senhor ‘cha-bu-duo’ (leia: ‘tsá-bú-dó’), isto é, do «Senhor Mais ou Menos». Mas quem era Hu Shi? E do que fala Hu Shi quando fala do «Senhor Mais ou Menos»?

Professor na Universidade de Pequim, diplomado em agricultura pela Universidade de Cornell (EUA) e doutorado em filosofia pela Universidade de Colômbia (EUA) [este percurso cosmopolita era bastante comum entre a elite chinesa de então], Hu Shi (1891-1962) foi provavelmente um dos mais influentes intelectuais chineses da primeira metade do século XX. Hoje, ele é particularmente recordado pelo seu papel de liderança em importantes movimentos culturais e políticos ocorridos logo a seguir ao colapso do velho regime imperial e à Fundação da República Chinesa em 1912, como o Movimento do Quatro de Maio ou o Movimento Nova Cultura.

A melhor maneira de ilustrar a importância destes dois movimentos reformistas [em muitos aspectos precursores da revolução Comunista de Mao] é notar que eles levariam à substituição do ‘chinês clássico’ pelo ‘chinês comum’ (isto é: o mandarim falado comum) na escrita literária, substituição essa que permitiria a qualquer falante de 'chinês comum' com uma educação básica ser capaz de ler textos literários sem grandes dificuldades. Até então, isso não era de todo possível, uma vez que o ‘chinês clássico’ (muito diferente do ‘chinês comum’) tinha de ser estudado a fundo, pelo que só era dominado por pessoas com altos níveis de educação [julgo que existem aqui alguns ecos entre estes movimentos e as ideias de pensadores liberais portugueses como Almeida Garrett].

O «Senhor Mais ou Menos» de Hu Shi surge precisamente no âmbito desta conjuntura de demandas de liberalização, e procura chamar a atenção para o facto de que mais liberdade também implica mais responsabilidade. Observando etnograficamente a realidade à sua volta (a China do início do século passado), Hu Shi nota que o dito «Senhor Mais ou Menos» - o tal que faz o seu trabalho nem bem nem mal, fá-lo mais ou menos - parece estar espalhado um pouco por todo o lado na sociedade. Hu Shi sugere mesmo que ele poderá estar profundamente enraizado na cultura popular, mas que deverá ser encarado como uma espécie de ‘doença social’ que é preciso erradicar em prole do bem comum (isto é, em prole do novo projecto chinês de modernização depois da queda do regime imperial). Para Hu Shi, esta gigantesca tarefa pedagógica deverá ser iniciada pela ‘nova’ classe intelectual e política de então, mas dependerá em última instância do trabalho sobre si próprio de cada um de nós [os paralelos com pensadores portugueses do século XIX como Adolfo Coelho são tentadores].

É provável que Hu Shi não escrevesse em 2007 o que escreveu no início do século passado pois beneficiaria do chamado ‘olhar retrospectivo sobre o passado’, um passado que inclui um século de transformações sociais radicais ao sabor de três projectos centralizados de modernização completamente diferentes: o Republicano, o Maoísta e o Pós-Maoísta. Independentemente disso, julgo que Hu Shi não me convence, nem hoje nem ontem. É que para mim o «Senhor Mais ou Menos» não é um fenómeno restrito aos ‘chineses’ ou aos ‘outros’, como Hu Shi nos faz crer, mas é um fenómeno distribuído um pouco por todos ‘nós’ seres humanos (o que me inclui a mim, a ele e a vocês). Apesar de tudo, julgo que a questão social e política que Hu Shi nos levantou no ‘longínquo início do século passado’ continua hoje a ser tão pertinente quanto perturbadora: será que devemos alimentar, vestir e adorar o «Senhor Mais ou Menos» que temos em ‘nós’, ou será que o devemos guardar para o fim de semana ou para as férias no Rio de Janeiro? Será que a decisão é mesmo só de cada um de nós? Quem paga tanto Mais-ou-Menos-ismo?

3 comments:

vallera disse...

"É que para mim o «Senhor Mais ou Menos» (..) é um fenómeno distribuído um pouco por todos ‘nós’ seres humanos (o que me inclui a mim, a ele e a vocês)."

É isso mesmo.
Bem vindo!

Zèd disse...

Estou mais-ou-menos de acordo. Sê bem mais que menos bem vindo.

A questão do mais-ou-menismo é muito interessante e de anda certo modo na moda. A tão propalada meritocracia, salvadora da sociedade moderna, tem como inimigo principal precisamente o Sr. Mais-ou-menos.

gdsantos disse...

Mais ou menos obrigado a todos pelas boas vindas!