1. Sempre que há reformas que racionalizam os recursos do Estado - que, ninguém de bom senso coloca em causa a necessidade - há inevitáveis ondas de descontantamento. Dentro da função pública, os inúmeros estatutos criados ao longo dos anos e os múltiplos regimes de excepção que protegem os insiders não podem deixar de produzir milhares de outsiders que são os primeiros a sofrer as medidas de restrição orçamental. Não sejamos hipócritas: o Estado que multiplica a precaridade e alimenta a geração "recibo verde" é o mesmo Estado que alimenta os privilegiados com estatutos de excepção, pagos, proporcionalmente, como os seus colegas dos países mais ricos da Europa, apesar de viverem num dos mais pobres. Porque os segundos são intocáveis, e porque o Estado precisa de apertar o cinto, quem sofre são os primeiros, não os segundos. Mas como estes segundos também estão organizados em "sindicatos", também têm toda a lata de se queixar de precaridade (por vezes "precaridade" significa que deixam de se poder reformar aos 52 ou 55 anos, condições que dão por adquiridas e invioláveis, não lhes passando pela cabeça quão escandaloso isto é para quem tem de trabalhar mais uma década para se aposentar - muitas vezes o seu colega de trabalho diário, pago a recibos verdes). Por curiosidade, eu gostava de saber quem esteve em maioria na manifestação, se os primeiros ou se os segundos.
2. Os números do desemprego têm estado instáveis e por vezes pouco animadores, mas a mim não me espantava que subissem mais. Quando a Espanha atravessou um processo de modernização do Estado e do tecido industrial não muito diferente daquele que atravessamos agora, há cerca de uma década, eu não sei se se lembram dos números de desemprego, mas convém recordar que durante alguns anos eles andaram na casa dos 20%, por vezes um pouco acima, outras vezes um pouco abaixo.
3. O que eu gostava mesmo, mas mesmo de saber era que política laboral propõe a CGTP. Partindo do princípio que ela tem uma, ou muito me engano, ou se o Governo a seguisse, o desemprego ia subir ainda mais. Mas não havia problema; depois dos números subirem, voltavam para as ruas para dizer que a culpa era do Governo. E assim por diante, do género de "pescadinha-de-rabo-na-boca".
No pós-II Guerra Mundial, o maior sindicato sueco tinha um gabinete de investigação de economistas de primeira água, interessados em construir políticas laborais progressistas e exequíveis para um sindicato interessado na co-gestão das empresas e do país. Criticar e denunciar não chegava; era preciso construir. Ajudaram a construir uma das economias mais dinâmicas e igualitárias do mundo.
O nosso sindicalismo, em termos de competência, seriedade e responsabilidade parece estar nos antípodas do exemplo sueco.
sexta-feira, 2 de março de 2007
Algumas notas sobre a contestação social
Posted by Hugo Mendes at 23:54
Labels: contestação social, precaridade, Sindicatos, trabalhadores do sector público
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12 comments:
Ó Hugo, face à K7 dos sindicatos e do PCP o teu disco também já está um pouco riscado.
Há pelos menos 3 motivos de fundo para as pessoas se manifestarem:
- a tx de desemprego é a mais alta dos últimos tempos;
- a nossa estrutura social é das mais assimétricas da Europa;
- o poder de compra tem diminuído continuamente o que tem provocado o aumento exponencial do endividamento.
As políticas levadas a cabo pouco tem contribuido para inverter estas tendências estruturais.
Nem sequer falei do PCP. Mas vais negar a ligação entre a CGTP e o PCP? Se negares, entao eu volto ao disco riscado, porque se não percebermos isso, entao perdemos metade do argumento da novela; se assumires isso como um dado assente, entao podemos continuar a discussão no patamar seguinte.
Renato, vamos ver uma coisa: os dados que apresentas sao uma coisa; nao os nego, ninguém os nega. Mas a questao, vamos ser sérios, nao é essa. É como saimos desta situação, caramba. Eu nao disse que as pessoas não têm motivos para estar descontentes. Isso é um dado, e em democracia as pessoas descontentes manifestam-se.
Quanto às questoes subtantivas que mencionas - e que correspondem a uma parte do diagnostico macroeconomico que é razoavelmente consensual - entao tens que dar razão a muitas das medidas que o Governo está a querer implantar.
A taxa de desemprego é mais alta da Europa? Entao tens que liberalizar o mercado de trabalho, uniformizando os estatutos existentes e melhorando, a prazo, a protecção social dos desempregados (o problema é que há pouco margem de manobra financeira).
As assimetrias são altas? Pois são, significa que é preciso tornar o sistema mais redistributivo, e nesse sentido tens que atender à culpa que o Estado tem nesse processo. Não te esqueças que ao proteger uns quantos em detrimento da maioria o Estado contribui objectivamente para as fortes desigualdades que temos; nao é apenas o mercado que o faz. Se queres diminuir o papel do Estado na assimetria das desigualdades, entao tens de reformá-lo e reduzir os estatutos de excepção da sua "nobreza".
O poder de compra tem diminuído continuamente o que tem provocado o aumento exponencial do endividamento? É verdade, isso significa que temos que fazer um upgrade da nossa estrutura industrial e tecnologica para passarmos a produzir mais e de forma mais eficiente, exportarmos mais, e passarmos a depender menos do endividamento, seja público, seja privado.
Isto sao medidas estruturais que doem a muitos, e a politica implica decisão - e em democracia contestação. Mas olhemos para as politicas primeiro - para a sua margem de manobra e para a sua orientação substantiva. É que señão andamos a cavalgar sempre nas ondas de contestação, o que é uma excelente forma de se ter sempre razao, dado que há sempre perdedores dos processos de decisão politica.
Onde perguntei "A taxa de desemprego é mais alta da Europa?" queria obviamente dizer a "mais alta dos ultimos tempos". Há paises europeus com desemprego superior ao nosso, mas com modelos corporatistas semelhantes, como o francês e o italiano. E o problema estrutural da dualização do mercado de trabalho e a assimtria entre insiders e outsiders é o mesmo.
Claro que não nego a articulação entre CGTP e PCP.
Claro que uma verdadeira política de desenvolvimento dói.
Claro que é preciso tomar decisões e aguentar a contestação.
Claro que "temos que fazer um upgrade da nossa estrutura industrial e tecnologica para passarmos a produzir mais e de forma mais eficiente, exportarmos mais, e passarmos a depender menos do endividamento".
Mas o problema é precisamente esse, ainda não se definiu uma verdadeira estatégia de desenvolvimento, que rompa com o modelo anterior (soarista, cavaquista, gueterrista, barrosista...). Este tem assentado em dois pilares fundamentais: obras públicas grandiosas e industrialização à custa de salários baixos. Em grande medida estes continuam a ser os estandartes do presente governo.
Renato, de acordo. A questão é a margem de manobra que existe para as coisas serem diferentes. As politicas nao se decidem no vazio, mas estão embedded em trajectórias económicas das quais nao podemos sair como nos dá na telha, inventando um pais diferente de um dia para o outro.
As obras publicas grandiosas são uma forma de ocupar o "investimento publico", absorvendo o desemprego nas areas menos qualificadas que explodiria se ele nao existisse, e que daria cabo das finanças da segurança social. Não estou a dizer que sao as estratégias optimais, estou a tentar enquadra-las na janela de oportunidades que se coloca ao pais neste momento.
Agora quando aos baixos salarios...eu pergunto fracamente se andamos a ler os mesmo jornais e se conhecemos o mesmo pais. Repara, os nossos niveis de qualificação sao baixissimos ao nivel europeu; muito mais baixos que os nossos concorrentes do Lestwe Europeu, o que nos vai valer uns belos 15/20 anos para os apanhar ao nível das qualificações do secundário. Diz-me como é que queres que uma economia com este perfil tem salarios altos? Diz-me qual é a economia do mundo com o grau de baixissima escolarização de adultos e jovens vive com altos salarios? Essa critica é espurea, é oca, não diz nada, Renato. É o pais que temos; e é o país que temos de mudar. Os altos salarios não se decretam, conquistam-se. E conquistam-se fazendo o tal upgrade de qualificações, do qual depende o upgrade tecnoeconomico. Essa critica "à la CGTP" de que a merece a devolução da pergunta: tens alguma alternativa que ñão seja lutar contra a falta de qualificação da população? E essa não é uma prioridade estratégica deste governo? É que infelizmente nao há soluções de varinha mágica, e no que toca à educação secundária temos perdido taaaaaaaaaaaaanto tempo...o que nos leva para a discussão já ela familiar...Sem mudança na educação não haverá mudanças na economia. O objectivo do Governo é precisamente o de romper o equilibrio insustentável baseado no tríptico "low skills-low wages-low tech". Agora, isso demora tempo, muito tempo.
Só para que fique claro no que toca às grandes obras públicas (= OTA e etc.): eu tambem tenho dúvidas em relação a elas. As medidas mais importantes a tomar nos anos futuros são ao nível das regras da gestão do sistema económico e outros subsistemas sociais, e não (pelo menos não exclusivamente) ao nível da construção de infra-estruturas. A chave da coisa está na produção/gestão do capital humano, não do capital material - ou não procurássemos entrar na "economia do conhecimento".
Estranhamente a discussão inicial deslocou-se, digo, inverteu-se. O ónus estava do lado dos sindicatos, de repente passa para o lado do governo. Não que essa discussão não seja interessante, pelo contrário, e até me revejo na maioria das críticas que faz o Renato, mas o que o Renato está a fazer é exactamente aquilo que os sindicatos não fazem e deviam fazer. Concordo inteiramente com o post porque expõe a irresponsabilidade dos sindicatos quando optam pela atitude fácil de se limitar a contestar por princípio - o que quer que aconteça os sindicatos vão sempre reclamar salários maiores, menos horas de trabalho, reformas precoces, e muita estabilidade para quem já tem uma situação estável - sem qualquer obrigação de uma participação construtiva e realista na realização de políticas. Mas quando se fala, por exemplo, em tocar nos direitos adquiridos cai o Carmo e a Trindade (retive esta frase na notícia do P sobre o bando de previligiados:"Direitos conquistados não podem ser roubados"), e quando os "direitos adquiridos" se transformam em privilégios o que lhes fazemos?
A política do governo é seguramente criticável em muitos aspectos (nomeadamente na construção de grandes obras públicas, um completo disparate), mas o que dizer do comportamento dos sindicatos? Não terão os sindicatos uma obrigação ética de agir de outro modo?
Sendo assim os sindicatos tornam-se inuteis, podem dizer o que bem lhes apetecer sem terem que ser responsabilizados. Excluem-se a si mesmos do sitema.
Esta conversa pode levar a algum lado, veja-se exemplo da Suécia que o Hugo refere.
O ónus está do lado dos sindicatos porque esse é o objecto deste post.
"Insistir na ideia de que não pode haver uma política reformista com os actuais sindicatos é um logro e uma forma de desresponsabilização política do Estado."
Concordo inteiramente, os actuais sindicatos é que me parece que não, insistem em auto-excluir-se. O exemplo da Suécia não está dependente de mais ou menos assimetrias socias, ou até pelo contrário, quanto mais são as assimetrias maiores as responsabilidades dos sindicatos. E atenção, eu não digo que os sindicatos não devam fazer manifestações ou greves, têm mesmo obrigação de fazê-lo quando as reivindicações são justas (e não digo que não sejam, muitas são). Agora o que acho é que não se podem ficar por aí. Na minha opinião os sindicatos deveriam ter um programa político próprio em vez de um "mero" caderno de reivindicações irrealistas, propostas políticas para contrapôr às do governo, propostas sérias, bem estudadas e realistas. Se fosse assim teriam mais legitimidade para reivindicar e estariam a defender melhor os direitos dos trabalhadores, e teriam provavelmente mais força. A melhor maneira de defender os direitos dos trabalhadores é serem reais interlocutores do governo.
"Este argumento é anti-democrático, nessa lógica de ideias toda a oposição partidária seria inútil."
Não é verdade, a oposição é responsabilizada eleitoralmente por aquilo que diz. Quem fizer uma boa oposição agora tem mais credibilidade nas próximas eleições.
Renato: vamos ver uma coisa, com esta tua frase - "Já não tenho pachorra para a retórica da sociedade ou economia do conhecimento. Os teus argumentos emparelham sem grande capacidade crítica nessa ideologia oca de Estado" - tu acabas de te excluir de qualquer discussão séria de politica de desenvolvimento. Se isto é ideologia oca, qual é a tua alternativa sustentada? Gostava muito de a ler. Mesmo. Propoes o que? O desnvolvimento industrial, como nos anos 50? Gostava efectivamente de conhecer as tuas propostas para o desenvolvimento, se a economia do conhecimento é de facto conversa. Eu já escrevo qq coisa sobre onde nos leva isso de achar que isso do conhecimento é conversa.
Quanto aos sindicatos: não percebo porque é que o onus da responsabilidade está todo no Estado e os sindicatos se limitem a manter "uma capacidade reivindicativa e que resistam face à perda de alguns direitos". Eu acho isto absolutamenre desastroso, porque fecha todas as portas que os sindicatos podiam abrir de postura responsavel e progressista. Os sindicatos ão elementos centrais numa politica de desenvolvimento. Se o são, então assumam a sua responsabilidade em vez de serem meramente elementos de desestabilização irresponsável, cuja funcção é simplesmente de pedir mais dinheiro, como se os direitos não se pagassem. Mas isso nao lhes interessa; o que interessa é manter o egoismo institucionalizado que reina. Que a CGTP defenda isto, eu acho triste mas percebo; mas que o Renato defenda isto com esta facilidade acho verdadeiramente espantoso. Adiante.
Aqui estou em absoluto acordo com o Zèd: os sindicatos estão a excluir-se da discussão (tal como o Renato se excluiu com o fantástico argumento da ideologia de Estado), e a caminhar para o fim da sua influencia; daí eu falasse num post atrás sobre o "sindicalismo suicida". O nível de adesao dos sindicatos em Portugal é baixissimo. E quanto mais baixo, mais dogmáticos e irresponsaveis sao, porque acham que trazer 150 mil pessoas para a rua, faz uma politica sindical e demonstra a sua força. Não demonstra. Demonstra a sua fraqueza negocial ao nivel das politicas publicas e a sua incapacidade total de pensar o pais. Mas será que é isso que eles estão interessados? Segundo o Renato, não, eles só demvem estar preocupados é em manter o seu quinhao, custe o que custar. E, já agora, vai continuar a custar - esta é a parte trágtica da historia - aos mais fracos, aqueles que eles dizem representar, porque as elites estão-se nas tintas, e a crise passa-lhes ao lado.
"Infelizmente o Mundo não é assim. Como explicas os valores eleitorais de Berlosconi, de Le Pen ou da extrema direita nos tais países nórdicos."
Renato, isto sim, é anti-democrático. Acontece que aquilo que eu e tu achamos que é "uma boa oposição" ou "credível" não é a mesma coisa que acha quem vota no Le Pen ou no Berlusconi, a Democracia é assim. Se não concordas com isto então o teu segundo argumento da capacidade de mobilização dos sindicatos deixa de fazer sentido.
Também nunca disse que o sindicalismo estava em crise, no que toca à capacidade de mobilização, acho que está numa crise ideológica, mas isso é uma opinião meramente pessoal. Os sindicalistas obviamente têm uma opinião diferente da minha.
"Não são estes os sindicatos que mais desejo para Portugal."
Eu não diria melhor.
Renato, quanto às outras tuas questões substantivas:
"Apregoa-se até à exaustão que é preciso apostar em capital humano e depois diz-se que isso é uma impossibilidade porque não há suficiente capital humano. E que é preciso qualificar... Mas há algum capital humano e este é claramente desaproveitado. Há imensos jovens altamente qualificado cujo fruto do seu trabalho é basicamente desqualificado.Se não se apostam nestes nichos de excelência, vai-se apostar em quem?"
Já pensaste que as pessoas possam estar qualificadas nos ramos errados? Por exemplo demasiadas pessoas formadas em ciencias sociais quando o que precisamos é de engenheiros? Ora, é precisamente isso que acontece. E ja agora, o desemprego dos qualificados é sempre inferior ao dos não-qualificados. Não nos deixemos levar pela cantiga de que temos excesso de qualificações. Ela é um logro e é perigosíssima.
"No post anterior consideraste inevitável que o desemprego aumente em função de uma política de modernização. Agora achas que essa mesma política deve ter como primeiro objectivo a manutenção do desemprego desqualificado."
Nao disse isto. Se não houver má fé da tua parte, percebes imediatamente que estamos perante uma situação de double bind. Se se puxa o cobertor para tapar a cabeça, destapamos os pés. O que é preciso é uma politica de modernização equilibrada e inteligente para evitar excessivo desemprego na base das qualificações, porque é logico que o trabalho pouco ou nao-qualificado vai perder enmpregos. O upgrade de qualificações e tecnoeconomico tem de ser equilibrado para evitar excessivo desemprego, é só isso. Dai a Ota e outros investimentos publicos que possam absorver muita gente que vai continuar desqualificada (a alternativa é deixa-la no desemprego, que não é particularmente boa, né?) e fazer um upgrade de infra-estruturas que o país necessita. Se são opçoes suficientemente boas, eu tambem tenho as minhas dúvidas. Mas do ponto de vista do emprego, ou se quiseres, para evitar o desemprego, são positivas. É o ABC do keynesianismo.
Não há soluçoes mágicas; e não vale a pena criticar as politicas existentes como se essas soluçoes existissem. A não ser que nos estejamos a marimbar para qualquer "obrigação ética", dos sindicatos ou de quem faz a critica. Aí é uma decisao de quão sérios queremos ser, ou se queremos alimentar o criticisimo adolescente do costume. Desculpa se as palavras são fortes, mas eu às vezes fico zangado quando leio determinadas coisas escritas por pessoas inteligentes.
Um abraço
Hugo
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