domingo, 4 de março de 2007

Dejà vu

A resposta do Renato ao meu post anterior significa o regresso à estaca zero: é culpa é do Governo que anda "desnorteado" à procura do que fazer. É por isto que estes debates são tão improdutivos, porque vivem sempre do passar das responsabilidades para o vizinho do lado, de forma que ninguém a assume.
Eu não desresponsabilizei os vários governos ao longo do tempo pela situação do país. Aquilo que o Renato chama "inépcia política" existe. O problema para o qual eu queria alertar é outro, e que é a atitude de culpar sempre o Governo, por método, convicção e sistema. Se a educação, a saúde, a economia, a cultura, etc. etc., estão nas ruas da amargura, o Governo ou o Estado são sempre os culpados. Que estes tenham responsabilidades, eu não duvido, ninguém duvida; agora, simplesmente, isto é sempre, mas sempre o alibi para que os actores e parceiros institucionais não tenham que assumir as suas responsabilidades e mudar as suas práticas e acabar com os seus vícios (muitos deles alimentados pelo Estado e pelas facilidades criadas). Culpar o Governo é fácil; pensar que se calhar os professores, médicos, empresários, artistas, cientistas etc., possam também fazer uso errado dos subsídios que lhe são atribuidos, que possam fazer mau uso das condições (por vezes quase principescas) que usufruem, que os seus corporativismos podem levar a uma degradação do que devia ser serviços públicos em nome da comunidade, isso, infelizmente, nunca parece estar o caderno de encargos. Nunca. Há sempre uma forma de passar a culpa para um qualquer ministério ou um qualquer político a dezenas ou centenas de quilómetros de distância que, esse sim, é que tem a responsabilidade exclusiva de mandar em milhares de profissionais como se fossem "animais do campo" e estivessem à sua mercê.
Mas não são e não estão. O Renato assume que o Estado possa pilotar eficazmente a sociedade do centro. Desculpa pôr as coisas assim, mas isso é uma visão completamente naive e errada de como funciona a política, a administração e os profissionais, e as ciências sociais e políticas abandonaram-na há 20 anos, quando todos quantos não estavam amarrados pela ideologia perceberam que isto era impraticável. O mito do Estado todo-poderoso e todo-responsável pelo desenvolvimento do país dá precisamente no que vemos todos os dias e na atitude que o Renato tão bem expressa, desresponsabilizando tudo e todos e colocando toda a responsabilidade do sucesso político nos ombros de um ministro. Ora, meu caro, a cereja em cima deste bolo é que isto é uma profecia que se cumpre a sim própria (ou seja, nunca é falsificável): como isto é uma visão totalmente errada de como as coisas funcionam, e só pode levar à sobre-responsabilização do poder político quando as coisas não correm bem, as culpas são sempre monopólio do Governo, e não têm que ser partilhadas por mais ninguém. Depois sucedem-se ministros em catadupa, claro, que por serem incompetentes, têm ser corridos. E a malta cá fora festeja porque conseguiu "derrubar mais um". Assim vai o país.
Em vez de o caso finlandês, tão bem escolhido, servir de contraponto ao português, não; o Renato afirma que os finlandeses tiveram uma «extraordinária qualidade: olharam para as suas limitações e potencialidades e conseguiram construir um modelo particular que, felizmente, deu certo». Desculpa, Renato, mas não é isto que o Castells diz; isto é psychobabble política da pior; não é nem faz uma política de desenvolvimento. O que fez o sucesso finlandês foram as complementaridades institucionais e políticas e a capacidade dos diferentes actores assumirem as suas responsabilidades e trabalharem em conjunto em prol do país, em vez de se perderem em egoísmos institucionais e de alimentarem a conversa do culpa é do "outro", de preferência do Governo. E quando falo da Finlândia podia repetir os bons exemplos por essa Europa, América do Norte e Ásia fora.
É para acabar com esta conversa de que "a culpa é sempre do Governo" que as políticas públicas presentes e do futuro vão no sentido em descentralizar o poder e conferir mais responsabilidade aos agentes locais, para ver se acaba a "mama" e a concepção do "Estado-torneira-sempre-aberta-que-tem-de-estar-sempre-disponível-dos-pobres-profissionais" e do "Estado-que-tem-que-andar-com-a-malta-ao-colo". Vai haver constestação, e ainda bem: significa que se está a tocar na ferida. Quando médicos, professores, juízes, sindicatos, etc. etc. tiverem que prestar mais atenção aos fundos que lhes são atribuídos e à forma de funcionamento das suas organizações, quando tiverem de atender aos públicos que devem servir em vez de chutar a responsabilidade para os gabinetes ministeriais - ou seja, quando estas mudanças de gestão das organizações e instituições estiverem em prática e obrigarem as pessoas a mudarem a maneira de pensar, então talvez o país possa mudar. Quando o Governo definir as suas responsabilidades e os outros actores definirem as suas; quando cada um acordar naquilo que tem que legitimamente cumprir e espera legitimamente que o outro cumpra; quando as partes forem capazes de pensar contratualmente («eu já fiz isto; agora é a tua vez de cumprir com o que está estabelecido») em vez de os segundos estarem à espera que o Governo transfira o dinheiro para depois virem sempre dizer que o dinheiro não chega (nunca chega, né?), etc. - até lá, a vitimização e a desresponsabilização vão continuar. E a Finlândia vai ficar cada vez mais longe - mas claro, a culpa será sempre, sempre, sempre do Governo.
Fico desiludido por confirmar o que chamei "Governo-dependência em agudíssimo e patológico grau" seja, actualmente, talvez a mais grave doença infantil da esquerda.

P.S. - O Renato escreve a certo ponto que "Segundo ele, de um lado o país tem um atraso estrutural na qualificação que dificulta em muito a tarefa de o modernizar". Não é a minha opinião, Renato; é algo partilhado por toda a gente com responsabilidades pollíticas, nacionais e internacionais, que sabe, como 2 mais 2 serem iguais a 4, que sem Portugal melhorar neste indicador e noutros a nível educativo, boa parte do tecido industrial país está condenado a concorrer com o terceiro-mundo em termos económicos, e a jogar um jogo que não pode ganhar. Dá-me a ideia que as pessoas não se apercebem da gravidade deste problema, que é resultado, infelizmente, da inépcia de muitos actores, políticos, sindicais e profissionais ao longo de muitos anos. Podemos parar de atribuir culpas a A, B e C e perceber o que é que é devido a cada um numa batalha que a todos diz respeito? O Governo já definiu a estratégia (e se for importada de outro país, qual é exactamente o problema, se ela for boa e tiver pés para andar? Ninguém reinventa a roda aqui, Renato). Era bom que agora os outros parceiros definissem a sua e se abrisse uma trégua na conversa da "culpa é do outro".

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