domingo, 4 de março de 2007

A "sociedade da conhecimento" e a política do Humpty Dumpty

Para continuar este debate em torno da sociedade da informação e sobre quem tem a responsabilidade do quê, vamos por partes:

1 - Aparentemente, a sociedade da informação não é um "mito", nem "retórica", nem uma "ideologia de Estado". Existe nalguns países, e a Finlândia parece ser um deles.
2 - O caso finlandês é extremamente interessante. Mostra como uma sociedade que dependia em grande medida comercialmente da existência da União Soviética foi arrastada economicamente pelo colapso político desta e teve que se reconverter em alguns anos. A Nokia, que estava no negócio da produção e transformação do papel - boa parte dos seus lucros vinham da venda de papel higiénico para os soviéticos -, transformou-se em três tempos numa empresa de telemóveis, e é o símbolo acabado desta metamorfose de sucesso.
3 - O Renato equivoca-se num ponto essencial: se foi o Estado finlandês que orientou inteligentemente o processo, não foi o Estado que "convenceu" os sindicatos a participar na sua estratégia nacional. Os sindicatos não precisavam de ser "convencidos": eles conheciam perfeitamente o seu papel e as suas responsabilidades nacionais (tinham aprendido muito atrás com os seus vizinhos suecos, tal como aconteceu com os dinamarqueses e noruegueses), e a tal "confiança" que eles também souberam incutir na população - e que o Renato elogia (e bem) - não tem nada a ver com o catastrofismo a que estamos habituados por cá.
4 - Os sindicatos finlandeses mais importantes são social-democratas, não são comunistas. Não têm medo de meter sujar as mãos na gestão do sistema. São muito mais democráticos que os nossos; quem quiser virar a política sindical para a reivindicação oca não chega longe na sua organização interna.
5 - O argumento do Renato é um exemplo do que eu gosto de chamar política "Humpty Dumpty". Neste caso passa-se mais ou menos isto:
- elege-se um problema;
- depois aponta-se para uma estratégia de saída (políticas públicas, investimento em educação e I&D, etc.);
- depois diz-se que "os vários governos ainda não acharam o trilho";
- depois quando alguém faz alguma coisa para caminharmos nessa direcção (o caminho nestas coisas costuma ser mais ou menos longo), diz-se que ainda estamos muito "longe", e que assim nunca mais vamos lá chegar.
- depois, quando se procura olhar em volta e perceber quem está a faltar às responsabilidades; ou seja, quando se pergunta: "será que «empresários, sociedade civil, sindicatos» estão a fazer aquilo que deviam (dado que o contributo de todos os stakeholders, e não apenas do Estado, é fundamental para atingirmos o objectivo)?" e vemos que a resposta é que alguns não o estão a fazer, então a culpa não é desses stakeholders, mas só pode ser do Estado! Se os sindicatos - ou os empresários, as associaçoes da sociedade civil, etc. - resolverem comportarem como meninos birrentos, então a culpa é do Estado que não os conseguiu "convencer". Os sindicatos - ou qualquer outro stakeholder - pode sempre fazer o que lhe der na veneta, porque não pode ser responsabilizado; só o Estado pode. Se o sindicato resolve embarcar na política do "quanto-pior-melhor", de novo a culpa só pode ser do Estado. E assim por diante.


Renato, vou dizer francamente o que penso disto: esta mentalidade é meio caminho andado para não sairmos da cepa torta. É aliás provavelmente por ela ser tão difundida que ainda não saímos; que a sociedade do conhecimento é para nós um "mito"; e que vai levar muito mais tempo do que países dotados de instituições funcionais e actores inteligentes como a Finlândia levaram. Achar que é o Estado que tem que "convencer" os sindicatos é ter uma ideia totalmente errada - porque desmesurada e exagerada - do poder do Estado e dos seus agentes e da capacidade dos sindicatos em se deixar "convencer" (já pensaste que é preciso eles quererem ou estarem interessados em ser "convencidos"?), como se eles fossem manipuláveis como o cão do Pavlov ou cremosos como manteiga. Mas eu pergunto candidamente: será que os sindicatos não pensam por si próprios? ou são inimputáveis, política e eticamente? É que se são política e eticamente inimputáveis, então mais vale colocá-los de parte numa qualquer estratégia de desenvolvimento nacional. É isto que faz o que se chama "neo-liberalismo": institui os mercados como terapia de choque e parte os sindicatos ao meio. Foi o que fez a Thatcher, legitimada pelo eleitorado inglês, cansado de anos de parvoíces dos trabalhistas. Não foi o que fizeram os finlandeses. É a diferença entre os sindicatos da looney left trabalhista do final dos anos 70 e os inteligentes sindicatos finlandeses do final dos anos 80: os primeiros foram postos de parte; os segundos foram parceiros do desenvolvimento nacional. Os primeiros cavaram a sua própria sepultura e de dentro do caixão bradaram contra o "neo-liberalismo", como se as suas parvoíces não tivessem contribuído para o pôr no poder; os segundos reforçaram a sua importância nacional na gestão das instituições sociais e económicas.
Dado que eu não considero os sindicatos como seres inimputáveis mas como instituições responsabilizáveis - porque são socialmente decisivas e politicamente poderosas - está nas mãos dos sindicatos mudarem a sua estratégia e perceberem se querem fazer de Humpty Dumpty - o "ora agora estou aqui, ora agora estou ali", sem nunca se deixar apanhar nem se comprometer a longo prazo com nenhuma política sustentada - ou se querem investir numa estratégia que beneficie o país e, por arrasto, os seus membros. Está nas suas mãos saberem se querem seguir a via britânica ou a finlandesa. Neste momento têm um governo que, apesar das diferenças nacionais, institucionais e históricas, pretende trilhar o caminho finlandês; amanhã pode ser que encontrem no poder um partido que não os está para aturar e prefere optar pela via britânica. Para quem "vive" da vitimização, o neo-liberalismo é muito melhor companhia do que alguém que os obriga a assumir as suas responsabilidades na governação "informal" do país.
Entretanto, é provável que continuemos no desporto preferido dos portugueses: achar que o Governo é culpado de tudo quanto corre mal, e quando alguém pergunta se mais ninguém com poder institucional tem responsabilidades, assobiar para o lado. Neste caso, vai-se ainda mais longe: defende-se que esses com poder podem e devem continuar a assobiar para o lado, porque é afinal o Governo que tem a responsabilidade de os convencer a deixar de assobiar para o lado. A responsabilidade dos actores sociais puramente não existe, como se fossem crianças pequenas ou adultos inimputáveis. Se isto não Governo-dependência em agudíssimo e patológico grau, então honestamente eu não sei o que é.

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